Ensino
da filosofia na universidade brasileira
Oswaldo
Porchat Pereira
Sempre
acreditei que filosofia e espírito crítico são
inseparáveis. Por que alguém se põe a filosofar?
É porque quer compreender mais. Estou usando aqui a palavra
filosofar no sentido menos técnico possível.
Não no sentido de produzir uma obra filosófica,
mas no de pensar, refletir, indagar, de um modo mais compreensivo
e mais abrangente, sobre as coisas em geral. Neste sentido, quando
temos a preocupação de compreender e nos pomos a
refletir, a pensar, a indagar, a estudar, para obter respostas
que nos possam dar uma visão mais consistente do mundo,
nós estamos filosofando. A palavra filósofo,
vocês sabem, não quer dizer sábio,
mas aquele que gosta do saber. E gostar do saber não
é condenável; nem é preciso ser gênio
ou erudito, para gostar do saber.
Se a filosofia é esse espírito crítico, assim
aplicado à construção de uma visão
mais geral, mais coerente, mais abrangente do mundo, como é
que chegamos lá? O recurso à história da
filosofia me parece essencial. A menos que, como disse o mestre
Victor Goldshmidt, alguém creia na própria genialidade,
de uma maneira absolutamente imune a qualquer dúvida, e
diga, então, Eu sou um gênio, não preciso
estudar história da filosofia, não preciso ler os
filósofos, vou produzir a minha própria obra.
Há quem fez assim e conseguiu fazer obra genial, mas são
três ou quatro exceções na história
do pensamento filosófico. Para os outros, que não
temos essa genialidade, ou essa arrogância, a história
da filosofia nos oferece um caminho necessário. Afinal,
não vamos começar do zero; muita gente pensou antes
de nós, e pensou profundamente, sobre vários problemas,
e podemos e devemos nos apoiar no que eles pensaram.
Os filósofos pensaram uns contra os outros, a história
da filosofia é uma história de polêmicas,
é uma história de incompatibilidades doutrinárias.
Os sistemas filosóficos, na verdade, não concordam
sobre nada, nem sobre o objeto da própria filosofia. O
que é filosofia? Cada um dará uma resposta. Todos
concordarão quanto ao exercício do espírito
crítico, aplicado a uma visão geral do mundo. Mas
isso é muito pouco para definir convenientemente um objeto.
Sobre o que é efetivamente o objeto da filosofia, os filósofos
estão em desacordo. Sobre como proceder para filosofar,
sobre que método utilizar, eles estão em desacordo.
Sobre quais os problemas a serem enfrentados, estão em
desacordo. E também sobre quais as soluções
para os problemas. A história da filosofia é a história
destes desacordos. Entretanto, ainda assim, ela é o caminho
que - me parece -, se queremos filosofar, não podemos deixar
de trilhar. Porque nós aprendemos a pensar com os filósofos,
aprendemos com eles a aprofundar problemas. Embora não
para repetir o que eles disseram.
Claro que é perfeitamente lícito a qualquer um estudar
preferencialmente o pensamento de um filósofo qualquer,
mas não é geralmente com essa intenção
que nós fazemos história da filosofia, que nós
a estudamos. É com a intenção de aprender,
com aqueles que pensaram os problemas filosóficos com profundidade,
a pensar também com profundidade. A pior coisa, é
claro, é ficarmos no estudo de uma só corrente,
de um só filósofo. Da mesma maneira como acontece
no campo da religião, ou no campo da política, também
no campo da filosofia, há infelizmente - os que
incorrem em tão indesejável auto-limitação.
Mas aqueles que correm assim o risco de serem condicionados a
pensar de uma determinada e única maneira, seja por influência
do entorno social, seja por decisão própria, eles
correm também o risco de perderem a liberdade da opção.
De serem afetados por uma espécie de lavagem cerebral.
Nesse sentido, o estudo sério e aprofundado de vários
filósofos, sobretudo de filósofos que pensem diferentemente
um do outro, de filósofos cujas doutrinas sejam incompatíveis
entre si, é extremamente importante. Importante para que
nós percebamos que a solução dos problemas
filosóficos é algo extremamente complicado, que
exige uma boa dose de sofisticação intelectual,
que está e princípio ao alcance de todos nós,
mas que nós temos que progressivamente ir-nos tornando
capazes de construir.
E, aí, como estudar um filósofo? Como estudar esses
vários filósofos que nós temos de estudar?
Parece-me que uma coisa importante (não estou dizendo que
seja a única coisa importante) é tentar entender
esse filósofo a partir do que eu chamaria de lógica
interna do seu pensamento. Tomemos, por exemplo, um Platão,
um Aristóteles, um Kant, um Hegel, um Heidegger, ou outros
filósofos quaisquer. Se é certo que todos eles,
de um modo geral, aceitam em comum certas premissas, é
também verdade que cada um deles constrói seu discurso
filosófico por um método que lhe é próprio,
um método conforme ao qual vai produzindo e articulando
suas teses. A filosofia não é um sistema geométrico,
dedutivo, nem mesmo em Espinosa. Se alguém tentar fazer
uma formalização (em termos das teorias formais
estudadas pela lógica moderna) de uma filosofia qualquer,
não há texto que seja formalizável. Nenhum
texto filosófico se reduz à lógica formal,
isso é impossível. Mesmo quando o filósofo
diz que está deduzindo alguma coisa, em termos rigorosamente
lógicos poucas vezes se trata de uma dedução
rigorosa. Isto é, a lógica da filosofia
não é a lógica formal. Não estou condenando
a lógica formal, fui professor de lógica formal
por muitos anos e sou apaixonado por ela. Mas uma das mais importantes
contribuições do estudo da lógica formal,
para mim, é mostrar que, na filosofia, não se pensa
em termos de lógica formal.
Como eu estava dizendo, cada filósofo vai construindo a
sua filosofia segundo um certo sistema de procedimento, segundo
uma certa maneira de organizar o pensamento e de fazê-lo
progredir, que é diferente de um filósofo para outro.
Assim, cada filósofo vai instaurando a sua lógica
própria. Ele vai definindo, ao mesmo tempo em que ele constrói
a sua obra, quais são os procedimentos aceitáveis
para pensar filosoficamente. Se não se entende essa lógica
interna de cada filósofo, não se é capaz
de compreender a sua filosofia. Para compreender a filosofia de
um filósofo, é preciso descobrir qual o seu método
de pensar, qual o seu método de organizar o discurso filosófico,
como ele pensa que se pode progredir em direção
a novas proposições. Se não se faz isso,
não se entende nada de um filósofo, absolutamente
nada.
Há uma coisa muito freqüente que acontece com aqueles
que não utilizam um bom método de trabalho historiográfico.
Tomam duas ou três proposições de um filósofo,
que aparecem em momentos diferentes de sua obra, tentam conectá-las
segundo um certo esquema e, a partir daí, propõem
uma interpretação, atribuindo ao filósofo
tal ou qual doutrina. Na maior parte das vezes, com um tal método,
não se logra uma compreensão adequada do pensamento
do autor estudado. Isso porque, para bem entender aquelas proposições,
seria preciso saber por que, em cada lugar, cada proposição
foi introduzida, para que fins, conforme que estrutura discursiva.
Tomemos um texto de Platão, por exemplo. Vocês podem
nele encontrar certas proposições aparentemente
categóricas e ser levados a dizer: Platão
disse isso, Platão pensou isso. As proposições
estão lá. Entretanto, se se estuda a filosofia platônica
com rigor metodológico, descobre-se eventualmente que ele
não pensou aquilo, que ele não disse realmente aquilo.
Porque, por exemplo, no estudo da ordenação estrutural
do pensamento platônico, uma das coisas que descobrimos
é que o filósofo entende haver uma dialética
ascendente, um processo que vai do mundo empírico em direção
às Formas, às Idéias. E que, neste processo,
há obstáculos a serem superados. Há coisas
que se dizem, mas que devem ser novamente interpretadas numa etapa
superior. Há afirmações que se fazem, mas
cujo sentido não transparece imediatamente, mas somente
é alcançado numa etapa posterior.
Somente quando essa lógica toda é apreendida,
é que se pode efetivamente entender o que o filósofo
quis dizer. Não cabe tomar as proposições
isoladas de um filósofo e já começar a dizer:
Isso é a filosofia dele, isso é o que ele
pensa, buscando imediatamente explicações
sobre por que ele teria feito tais afirmações (por
tais e tais razões, porque a situação histórica
era esta, ou aquela...). Antes de avançar tais explicações,
é preciso assegurar-se de que se conseguiu, de fato, apreender
o significado mais profundo de seu texto. Ora, para tanto, é
necessário, antes, reconstruir a estrutura
da obra, a sua lógica interna. Quando esta
for reconstituída, aí sim, podemos oferecer uma
interpretação. E, num segundo momento, podemos eventualmente
tentar explicar como e por que tais idéias filosóficas
surgiram em tais ou quais circunstâncias culturais e históricas,
que relações as ligavam a fatores outros de vária
natureza. Esta segunda etapa é perfeitamente legítima,
desde que, num primeiro momento, se tenha conseguido, de fato,
reconstruir adequadamente o pensamento do autor.
A história da filosofia, nesse sentido, é uma ciência
bastante difícil. O que um bom curso de história
da filosofia faz é preparar o estudante para que um dia
ele seja capaz de ler adequadamente um filósofo. Isso não
se aprende em um, em dois, ou em três anos; isso se aprende
em muitos e muitos anos de pesquisa. É somente depois de
pesquisar seriamente um texto, a doutrina de um autor, que se
pode obter um progresso significativo nesse processo de aprendizado.
Nós não aprendemos o pensamento de um filósofo
porque lemos algumas obras, porque lemos alguns de seus livros.
O que podemos aprender aos poucos é como lê-lo, é
como entendê-lo, através do estudo rigoroso da lógica
de seu texto. E quando isso se consegue, aí sim, temos
condições para dizer: A doutrina deste filósofo
é esta.
Quero agora dizer algo sobre os cursos de filosofia. Entendo que
é perfeitamente legítimo que alguém faça
um tal curso com a intenção de tornar-se um historiador
da filosofia. Mas muitos felizmente - vão para a
filosofia, não para se tornarem historiadores, mas porque
têm o anseio de compreender, de conhecer, porque os move
um autêntico impulso filosófico. Eles não
querem ser historiadores, eles querem ser filósofos. A
meu ver, é extremamente importante e necessário
que esta vocação de muitos estudantes seja cuidadosamente
contemplada. Para aqueles que querem ser filósofos, o estudo
dos textos é apenas um instrumento para ajudá-los
a pensar, mas de nenhum modo esgota o âmbito de suas perspectivas.
Infelizmente, por culpa de muitos professores, inclusive de quem
lhes fala neste momento, perdeu-se isso de vista em boa parte
- senão na maioria - dos cursos universitários de
filosofia. Muitos cursos de filosofia, como o da USP, onde fui
professor por mais de vinte anos, dão importância
quase exclusiva à formação do historiador.
Ora, vocês viram que acabo de fazer a defesa do estudo da
história da filosofia. Começar a filosofar sem fazer
seriamente história da filosofia, a meu ver, é insensato.
Mas deixar o filosofar para o dia em que se for um historiador
consumado, é mais insensato ainda. As duas coisas têm
de caminhar juntas, e tenho a impressão de que, na maior
parte de nossos cursos universitários de filosofia, se
tem esquecido essa outra dimensão do estudo da filosofia,
que é estimular a reflexão pessoal e filosófica
dos alunos. Ficou-se só de um lado. Mas os dois lados são
necessários, importantes e complementares. Isto é,
faz-se necessário ensinar um método rigoroso para
ler os autores e entendê-los, porém ao mesmo tempo
faz-se necessário estimular os estudantes a refletir criticamente
e a pensar por conta própria.
Vários colegas meus e eu mesmo, no passado, pensávamos:
de que adianta começar a filosofar quando se é
bastante jovem e ainda não se tem uma formação
historiográfica séria? Necessariamente, um
jovem dirá ingenuidades, dirá coisas toscas, simples.
Mas cabe perguntar: E daí? A criança,
quando começa a falar, diz bá, bá,
bá. Então, não se deixará a
criança dizer bá, não se deixará
que abra a boca? Por quê? Porque ela não sabe falar?
Faça-se isso e teremos monstrinhos. Em filosofia, penso
que, infelizmente, tem acontecido a mesma coisa: Você
não pode falar porque você vai dizer bobagem.
É claro, entretanto, que, assim, se castra a vocação
filosófica; que assim muito estudante, progressivamente
inibido, é impelido a desistir de pensar. Eu conheço
muita gente que tem hoje cinqüenta anos ou mais, que é
inteligente, que é capaz, que é erudito, e que ainda
não começou a pensar filosoficamente por conta própria,
que ainda está esperando completar sua formação
historiográfica. Por esse motivo é que tenho ultimamente
insistido bastante em que se faça o que eu digo e não
o que eu fiz no passado. Eu tenho insistido bastante, nos últimos
oito ou nove anos (eu me aposentei cinco anos atrás), nisso
que eu estou pregando agora, isto é, na necessidade de
estimular a discussão e a crítica nas salas de aula.
Para o professor, o trabalho será certamente bem maior.
Vou dar-lhes um exemplo do que se pode fazer, ao lado de um estudo
sério de história da filosofia (que este não
pode ser abandonado). Embora isso seja bem mais fácil com
turmas de estudantes não muito numerosas, por exemplo,
em disciplinas de pós-graduação ou em seminários
de graduação. Falo de minha experiência. Eu
propunha a meus alunos uma questão, numa turma de doze
ou quinze alunos, no primeiro dia do curso, por exemplo, Qual
a sua noção de verdade? E, na aula seguinte,
todos eram obrigados a trazer uma ou duas páginas, discorrendo
sobre o tema, expondo uma reflexão pessoal. Em pouco mais
de uma hora, todos liam seus trabalhos, e seguia-se uma longa
discussão, que se prolongava por mais de duas horas. Eu
tinha preparadas notas acerca da questão, mas eu não
fazia exposição alguma, eu não as lia, elas
serviam unicamente para orientar-me. Os alunos discutiam entre
si, um fazia objeção ao outro, eu fazia perguntas
e objeções a todos. Ao fim da reunião, escolhia-se
de comum acordo a pergunta a ser respondida nas redações
da próxima aula, a ter lugar na semana seguinte. Na formulação
da nova pergunta, os alunos tinham freqüentemente a última
palavra. E assim prosseguíamos nas semanas subseqüentes.
Se acontecia que alguém em classe exprimia insegurança
quanto a suas próprias idéias, dizendo-se ainda
pouco preparado e manifestando a quase certeza de que iria mudar
sua posição sobre o tema nas próximas aulas,
eu redargüia: Que coisa maravilhosa! Você ser
capaz de dizer uma coisa hoje e de na semana que vem fazer uma
autocrítica, passar a pensar o contrário, isso é
formidável! Porque há gente que passa a vida inteira
sem ser capaz de fazer isso. E eu lhes lembrava, por vezes,
meu próprio itinerário filosófico: antes,
em meus primeiros textos, um crítico feroz do ceticismo,
hoje um filósofo cético. E eu lhes falava de como
se deve, se se é filósofo, ter a coragem de pensar,
de avançar posições, de mudá-las,
de mudá-las outra vez se nos parecer necessário,
numa autocrítica permanente. Até que se encontre
alguma idéia que nos pareça merecer que a entretenhamos
por um pouco mais de tempo.
Posso garantir-lhes que, para uma maioria dos alunos que passaram
por esse tipo de aulas, uma tal experiência foi bastante
útil e tal foi, também, sua opinião.
Foi, talvez, para alguns, a única oportunidade que tiveram,
em quatro ou cinco anos de curso, de dizer o que pensavam e de
discutir com os outros a partir das suas próprias idéias.
Estou convencido da necessidade de que os cursos de filosofia
caminhem nessa direção. O exercício filosófico
e o estudo de história da filosofia devem fazer-se um ao
lado do outro. O exercício do filosofar pode começar
logo no começo, pode começar desde o primeiro ano
de faculdade. É possível estimular, desde o início,
os estudantes a fazerem filosofia. Aliás, é a melhor
maneira de mostrar às pessoas que elas não se devem
tomar por gênios. Pois quem nunca fala, quem nunca abre
a boca, às vezes pensa que é um geniozinho. Os que
não o somos, voltamos todos atrás e corrigimos o
que dizemos e dizemos novas bobagens, mas bem melhores que as
anteriores, bem mais sofisticadas.
Bem, vou parar por aqui, mas estou à disposição
de vocês para responder a qualquer tipo de pergunta.
Pergunta:
Quando seria o momento adequado para começar a pensar em
filosofia?
Resposta: Uma vez, ouvi uma criança de seis anos
dizer: Uma pedra não sabe que existe, nós
existimos e sabemos que existimos, somos diferentes das pedras.
Aos seis anos de idade, é uma maravilha alguém dizer
uma coisa dessas. Pois bem, as crianças, freqüentemente,
sobretudo antes de serem domesticadas pelo sistema
escolar, já têm vislumbres filosóficos, num
certo sentido. Isso poderia ser aproveitado, quando acontece,
e isso acontece com freqüência. É certo que
não podemos reformar o ensino todo, mas falemos do que
nos é mais fácil fazer, por exemplo, modificar o
ensino de filosofia nas faculdades. Sem abandonar o ensino rigoroso
dos textos dos grandes autores, do qual sou inveterado defensor.
Mas, ao lado desse estudo, abrindo caminhos que permitam o exercício
da inventividade filosófica. Como disse, isso exige muito
mais do professor, que, às vezes, não está
o que é mais que natural e compreensível
- preparado para tratar adequadamente e de imediato um tema que
de repente surja na discussão. Em tais casos, cabe manifestar
honestamente a dificuldade sentida e preparar algo mais substancial
para a aula seguinte. Mas induzindo sempre os estudantes a colocarem
problemas, a proporem tentativamente soluções. Mostrando-lhes
que as soluções que propuseram talvez devam ser
completamente reformuladas, que certos aspectos não foram
talvez por eles considerados, que devem ler tais ou quais textos
de filósofos que abordaram tais temas, que eventualmente
já se debruçaram sobre aquelas soluções,
seja para defendê-las, seja para criticá-las.
Esse tipo de diálogo entre os estudantes e os professores
pode ser levado a cabo. Há toda uma técnica a ser
desenvolvida para fazer isso. Mas isso deve ser feito e dá
resultado. Houve estudantes meus, da minha segunda fase (eu já
perto da velhice), que disseram: É a primeira vez,
num curso de pós-graduação, que tenho a chance
de dizer o que penso. E eles gostaram de poder dizer o que
pensavam, eventualmente de dizer o que pensavam para descobrir
que estavam pensando errado. Não se progride em filosofia
sem exposição à crítica e à
refutação. É preciso receber objeções,
considerá-las atentamente, examinar se elas efetivamente
afetam os pontos de vista que defendemos. Isso nos permite formular
novos argumentos em sua defesa, refazer nossas formulações,
enriquecer nossas teses. E, se somos levados a abandoná-las,
porque se tenham revelado incapazes de resistir às críticas
que receberam, não há motivo senão para uma
grande alegria intelectual. Porque livrar-nos do que nos aparece
agora como um erro é certamente um progresso muito confortador.
P:
O que se percebe é que há hoje alguma discussão
sobre essas questões, que o senhor tem colocado quando
questiona esse viés do ensino de filosofia como história
da filosofia. Mas, apesar desse debate ser de certa forma um pouco
mais generalizado do que um tempo atrás, o que a gente
percebe é que, na construção das grades curriculares,
ainda há uma prioridade para a formação histórica
em filosofia. Como a instituição acadêmica
tem absorvido essa discussão, e de que forma essa discussão
pode, de fato, ter um significado prático, na própria
formulação da grade curricular, que até aqui
ainda prioriza exclusivamente esse outro lado, da historiografia?
R: Não me parece que a questão da grade curricular
seja a questão fundamental. É claro que se pode
pensar em grades diferentes, mas não acredito que haja
uma grade curricular ideal. Creio que há vária maneiras
de organizar grades curriculares, melhores ou menos boas. Tenho
a impressão de que o importante está mais do lado
do professor. Por exemplo, eu me sinto culpado por
ter contribuído para (de)formar algumas dezenas de jovens
professores de filosofia. Nós lhes transmitimos uma preocupação
unilateral com os estudos historiográficos e não
os incentivamos a pensar filosoficamente. Quando me dei tardiamente
conta disso e comecei a fazer minha autocrítica, a maioria
dos meus antigos alunos, então colegas, não me seguiram.
Muito pelo contrário, continuaram a fazer o que eu lhes
tinha ensinado. Não sei se pensaram: Os velhos, porque
ficam velhos, começam a mudar, mas o que importa é
o que eles pensaram quando eram moços. O fenômeno
é compreensível. Pois mudar hábitos arraigados
não é fácil para um professor, não
é fácil para ninguém, nem na universidade,
nem fora dela. E autocrítica é a coisa mais difícil
de se fazer. Ser capaz de mudar, sobretudo quando você fez
uma coisa durante vinte ou trinta anos, ser capaz de voltar atrás
e dizer Olha, eu estava errado é muito difícil
psicologicamente. Mas é possível. E creio que não
é um problema de currículo. Pouco importa qual seja
o currículo, o que importa é como o professor trabalha.
O problema não são as instituições,
somos nós, os professores.
Há dois extremos igualmente condenáveis: somente
fazer história da filosofia ou desconsiderar a história
da filosofia. São duas atitudes lamentáveis. É
lamentável não empreender estudos sérios
de história da filosofia, os quais são certamente
trabalhosos e demandam muito tempo, anos de dedicação
e disciplina. Não se adquire de outro modo uma base sólida
para filosofar. Ficar só nisso, porém, é
castrador, é ruim. Ora, na grande maioria das disciplinas,
sobretudo nas disciplinas mais propriamente filosóficas,
tais como teoria do conhecimento, filosofia geral, metafísica,
ética, estética etc., é perfeitamente possível
desenvolver, como parte do curso, seminários que evitem
aqueles dois extremos, ao mesmo tempo desenvolvendo a parte historiográfica
e estimulando a reflexão e a discussão sobre temas
filosóficos relacionados com as matérias das disciplinas.
Não há receitas gerais nem soluções
esquemáticas para isso. Basta que o docente tenha uma certa
inventividade e se disponha a aprender a coordenar de modo adequado
as discussões. Não lhe faltará nunca a contribuição
dos estudantes. Alunos me contaram, certa ocasião, ter
ouvido, em sala de aula, de um de seus professores, historiador
brilhante da filosofia, em resposta a um estudante que teve a
ousadia de fazer uma objeção ao filósofo
que estava sendo exposto, algo assim: Olha, não é
que o filósofo tenha razão só porque disse
isso, mas ele é um dos grandes monstros da
história do pensamento humano. Você primeiro faz
o curso, estuda, lê, desenvolve sua cultura filosófica,
e um dia você poderá fazer uma objeção
a ele. Penso que essa atitude é péssima. O
professor deveria ter considerado com seriedade a objeção
levantada pelo aluno, examinado sua adequação ou
inadequação, mostrado como o filósofo em
questão teria possivelmente respondido a ela, comparado
eventualmente tal objeção com outras que historicamente
foram endereçadas à doutrina do filósofo,
etc. E orientado o estudante para leituras que lhe permitissem
melhor inteirar-se da problemática envolvida em sua objeção.
O estudante eventualmente viria a descobrir que o problema que
levantou já fora levantado, e de maneira bem mais aprofundada,
na própria história da filosofia. Filosofia se ensina
estimulando-se o estudante a pensar. Não lhe proibindo
de pensar. E não esqueçamos que não há
autoridade em filosofia: temos o direito de pensar contra
qualquer grande filósofo.
O que o estudante diz em sala de aula sempre vale, sempre vale
o que uma pessoa inteligente diz, mesmo que eventualmente demonstre
sua ignorância. Aliás, boa parte do que todos nós
dizemos exibe nossa grande ignorância. O professor tem de
valorizar a coragem que o estudante revela ao avançar
alguma idéia, ao dizer alguma coisa por conta própria.
Porque tão pouca gente tem coragem de pensar por conta
própria, quem exibe essa coragem tem de ser estimulado,
nunca reprimido. Mas os professores estão, eles próprios,
deformados por um certo tipo de (de)formação a que
foram submetidos. Sua capacidade de produção original
também foi cerceada. E muitos chegam à aposentadoria
antes de conseguirem começar a pensar com originalidade.
Teriam sido capazes de fazê-lo, mas não o fizeram.
P: Não é verdade que tem havido uma certa
ausência - nos nossos encontros de filosofia, nos nossos
departamentos, nos nossos seminários - de uma pauta de
reflexão sobre o que fazemos no ensino de filosofia? Acho
que não é uma responsabilidade pessoal não
termos melhorado os nossos métodos de formação,
para além da história da filosofia e do comentário
do texto canônico. Pergunto: Não é porque
não há uma discussão em andamento, que dê
ensejo a que as pessoas, com mais naturalidade, cheguem a examinar
seus métodos, a pelo menos tomá-los mais conscientemente,
compará-los com alternativas reais? Eu não vi ainda
um importante encontro de filosofia no Brasil (no exterior sim,
freqüentemente), na nossa comunidade filosófica, onde
o ensino de filosofia fosse um assunto central. Muito menos vi
um seminário dedicado a isso, num encontro que congregasse
alguns dos expoentes da nossa área. Nos nossos encontros
de filosofia, nos nossos departamentos, nos nossos seminários,
a reflexão pedagógica parece ser estranha ao horizonte
de nossos filósofos, parece que os tornaria meros professorezinhos
e não pesquisadores de verdade...
R: Eu acho que você tem integralmente razão
e, ao dizer isto, tenho uma vez mais de assumir, com o resto da
comunidade, uma parte da culpa. De fato, eu organizei dezenas
de colóquios ao longo dos meus quarenta anos de trabalho
como professor de filosofia e nunca organizei nenhum sobre o ensino
da filosofia. Vamos dizer que a minha mudança de paradigma
do ensino filosófico foi há dez, doze anos atrás,
mas já teria tido tempo de organizar algum e ainda não
organizei. Parece-me que você pôs o dedo aí
numa ferida real. Quem sabe se não podemos organizar algum,
ao invés de ficar apenas lamentando o fato de não
termos organizado?
P.:
Você pode nos falar um pouco sobre a sua experiência
de elaboração e discussão filosófica
no seu pós-doutorado na Inglaterra?
R.: Em 1983, passei o ano inteiro num pós-doutorado
junto ao departamento de filosofia da London School of Economics
and Political Sciences. Uma vez por semana, lá se realizavam
seminários de discussão de textos filosóficos,
de que participavam os professores do Departamento e os estudantes
de pós-graduação em filosofia, mais alguns
professores de fora, todos filósofos. Cada seminário
durava britanicamente duas horas, nem mais nem menos. Durante
a primeira hora, um conferencista expunha sua posição
pessoal sobre um tema filosófico de sua escolha, um tema
de interesse geral. Na maioria das vezes as conferências
versaram sobre temas de teoria do conhecimento, ou teoria da linguagem,
ou filosofia da ciência. Os conferencistas eram ou membros
do departamento local (sete, ao todo), ou eram, como na grande
maioria das vezes, professores de outros departamentos de filosofia
de Londres, ou de Oxford, ou de Cambridge, ou de outras universidades
britânicas, ou eventualmente de universidades estrangeiras.
Cada conferência era seguida por uma hora de debates. Debates
elegantes, mas duros, ao modo britânico. Pediam-se
explicações, formulavam-se objeções,
impugnavam-se teses e argumentos, desenvolviam-se contra-argumentos.
Por vezes, objeções e perguntas eram feitas ainda
no meio de uma conferência. E o conferencista tentava replicar,
defendendo seus pontos de vista, explicando melhor suas posições,
propondo novos argumentos. Lembro-me de ter ficado pasmo, logo
num dos primeiros seminários, quando, na seqüência
dos debates, ouvi um dos professores presentes dizer, sorridente
e em tom cortês, ao conferencista algo assim: Seus
dois argumentos para defender seu ponto de vista me parecem totalmente
irrelevantes, eles não sustentam realmente a tese proposta.
E não sustentam pela razão seguinte:.... Não
pude deixar de imaginar qual seria a reação de um
conferencista no Brasil em face de uma tal situação.
É que aqui infelizmente ainda não se tem, infelizmente,
o hábito do debate sério e aberto em filosofia.
Presenciar filósofos britânicos discutindo filosofia
seriamente foi para mim uma grande lição. Fez-me
de vez acordar de um longo sono historiográfico.
Porque pude constatar empiricamente a distância
enorme que existia entre uma tal prática sadia e nossa
insípido e pouco filosófico unilateralismo historiográfico,
que nos faz concentrarmo-nos unicamente no estudo de autores e
sistemas, e nos inibe totalmente para o debate de idéias
filosóficas. Não se tem a coragem de pensar, de
expor posições pessoais, de expor-se à crítica,
de debater com os outros, de criticar e ser criticado. Só
para acabar de contar: Essas reuniões da London School
iam das duas às quatro horas da tarde. Havia um relógio
grande que batia as horas. Quando o relógio batia quatro
horas, mesmo em meio à mais acirrada discussão,
o presidente da seção se levantava, sorria, dizia
Quatro horas! e saia da sala. E todos nos levantávamos
e saíamos também da sala, porque as reuniões
eram programadas para terminar às quatro horas. Também
por esse motivo, os seminários nunca eram cansativos ou
aborrecidos.
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