Folha
de S.Paulo - 10/02/2001
Da militância política à filosofia
Um panorama da filosofia brasileira
Ricardo Musse
Elaborar listas sempre é um ato polêmico. A seleção
de 16 filósofos em
atividade no Brasil não foge à regra. Mesmo levando
em conta o propósito, enunciado na "Apresentação"
do volume, de guardar distância da pretensão de estabelecer
um cânone, privilegiando critérios como a contribuição
para a institucionalização da filosofia no país
ou como a busca de equilíbrio entre diferentes áreas
de especialização e entre representantes de diversas
regiões geográficas, convém examinar os acertos
e os desacertos dessa escolha.
Alguns nomes selecionados são praticamente unânimes
no mundo filosófico brasileiro e constariam obrigatoriamente
de qualquer lista isenta. Creio que é o caso de Henrique
de Lima Vaz, Gerd Bornheim, Benedito Nunes, José Arthur
Giannotti, Oswaldo Porchat, Bento Prado Jr., Raul Landim Filho,
Marilena Chaui e Paulo Arantes. Os demais não são
consensuais, uns pela pouca importância atribuída
à área em que se especializaram, outros por controvérsias
acerca de sua relevância intelectual.Um dos méritos
do livro foi a inclusão de representantes de duas vertentes
banidas da maioria dos departamentos de filosofia do país
(que em geral seguem o modelo do departamento de filosofia da
USP que, por sua vez, excluiu tais áreas por contingências
locais): a filosofia do direito e a exegese marxista. Mérito
ampliado pela adequada seleção de Tércio
Sampaio Ferraz Jr., representante da primeira corrente, e de Ruy
Fausto, Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho, estudiosos da
obra de Marx e da tradição do marxismo.
A gafe do livro, sem dúvida, é a ausência
de Gilda de Mello e Souza. Além de última representante
viva do trio (composto por ela, Lívio Teixeira e João
Cruz Costa) que consolidou a aclimatação da filosofia
universitária
em São Paulo, após o pontapé inicial dado
pela presença da "missão
francesa" na fundação da USP, e de ter encabeçado
a resistência dos
filósofos nos anos mais negros do regime militar, tal ausência
é
injustificável sobretudo pela qualidade ímpar de
sua produção intelectual,
ainda hoje modelo de ensaísmo e de crítica estética.
Inexplicável também a ausência do lógico,
internacionalmente reconhecido por seus pares, Newton da Costa.
Apesar da alegada preocupação com o equilíbrio,
essas duas áreas ficaram sub-representadas, sobretudo se
se leva em conta que também ficou de fora Otília
Fiori, autora de uma reflexão poderosa e original acerca
dos descaminhos da arte moderna.
Opção parcial
A inclusão de Miguel Reale surge como uma opção
bastante parcial, não se justificando por nenhum dos critérios
aventados na "Apresentação". Talvez tenha
sido incluído por ser teórico de uma tendência
política importante na cultura brasileira, o integralismo,
e, posteriormente, de certo conservadorismo que tentou conferir
legitimidade à ditadura militar. Mas então por que
ficaram de fora representantes do nacionalismo agrupados nos anos
1950, no Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros)? Talvez
Reale esteja presente porque os entrevistadores do livro tenham
visto alguma originalidade em sua obra, como dá a entender
uma pergunta feita a Carlos Nelson Coutinho (cf. pág. 381).
Mas que originalidade há num ecletismo sem peias, que insere
em um mesmo movimento pensadores da fenomenologia, do idealismo
alemão e do fim da Idade Média e ainda se define
como "historicismo axiológico"? Por fim, por
que começar o livro com frases como: "Assim como uma
pessoa nasce dependendo de determinados antecedentes biológicos,
também já possui, inerente a sua mentalidade ou
a sua sensibilidade, uma vocação para esta ou aquela
função social"; ou essa: "Eu prefiro manter
a linha tradicional. A beleza, para mim, é uma coisa, e
a feiúra, outra".
Talvez a maior objeção que se pode fazer à
lista seja a inusitada inclusão de Guido Antônio
de Almeida e Balthazar Barbosa Filho. Excelentes professores,
importantes quadros burocráticos da Capes (Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior), possuem
em comum o fato de nunca terem publicado nem mesmo uma coletânea
de artigos. Seriam novos Sócrates? A presença de
Barbosa Filho não se justifica nem sequer pelo critério
geográfico: Ernildo Stein, João Carlos Brum Torres
e Valério Rohden são muito mais representativos
da filosofia que se faz no Rio Grande do Sul, além, é
claro, de terem escrito vários livros. A opção
dos entrevistadores de submeterem os filósofos a uma mesma
bateria de dez perguntas (complementadas com perguntas adicionais
específicas) uniformizou os depoimentos, cristalizando-os
em três blocos distintos: descrição da trajetória
intelectual, reflexões sobre a própria obra e dissertação
sobre temas atinentes às diversas áreas da filosofia.
Tal clivagem nos permite examinar o conjunto das entrevistas,
tomando como fio as constantes presentes em cada um desses blocos.
A comparação e a confrontação das
diversas trajetórias individuais (muitas delas expostas
pela primeira vez sob forma impressa) constituem documento imprescindível
para uma futura história ou sociologia dos intelectuais
brasileiros.
Vínculos políticos
Uma característica comum (e de certo modo insuspeita, tendo
em vista o
tipo de filosofia que se pratica hoje no país) são
os vínculos desses
autores -em geral mais fortes durante o período de formação-
com
movimentos políticos: Miguel Reale foi mentor da AIB (Ação
Integralista
Brasileira); padre Vaz foi um dos teóricos da JUC (Juventude
Universitária
Católica) e da AP (Ação Popular), movimentos
nos quais militaram Oswaldo Porchat, Guido de Almeida, Raul Landim
e Paulo Arantes; Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho foram
parte dos quadros do PCB (Partido Comunista Brasileiro) e agora
do PT, Bento Prado fez parte da antiga Juventude Socialista e
Ruy Fausto se vinculou ao movimento trotskista. Marilena Chaui
e Giannotti estão entre os intelectuais mais destacados,
respectivamente, do PT e do PSDB.
Mas o que teria aproximado esses militantes políticos da
filosofia? Com
certeza o mesmo fator a que Göran Therborn alude para tentar
explicar por que Perry Anderson identificou o marxismo ocidental
com um movimento de filósofos profissionais: a filosofia
constituía, no Brasil, nos anos 1950 e 1960, como na Europa,
nas décadas de 1910 e 1920, a área menos sujeita
a controles institucionais (1). Diferentemente dos filósofos
do marxismo ocidental que reagiram à superespecialização
decorrente da intensificação da divisão do
trabalho intelectual, se dirigindo para a teoria social, a maioria
dos membros dessa geração de militantes brasileiros
fez da institucionalização da filosofia (logo, da
despolitização do trabalho universitário)
seu programa de vida.
Um mero cotejo dos depoimentos mostra como o processo objetivo
de
institucionalização, inerente à racionalização
capitalista, abrange
indistintamente autodidatas, religiosos, militantes e juristas,
ao mesmo
tempo que uma ilusão (socialmente necessária?) faz
com que uns se
acreditem heróis da guerra contra a antiga filosofia de
padres e bacharéis
e leva outros a crerem que estão contribuindo verdadeiramente
para mudar a sociedade por meio da prática rigorosa da
filosofia universitária.
Outro traço comum às trajetórias individuais:
a adesão à filosofia e a
formação escolar foram quase sempre marcadas por
uma relação
discípulo-mestre. Padre Vaz novamente é quem mais
encontrou seguidores (de Raul Landim a Tércio Ferraz),
mas em geral há toda uma geração -Ernani
Maria Fiori (RS), Álvaro Vieira Pinto (RJ), Arthur Velloso
(MG), Gilles-Gaston Granger e Gérard Lebrun (USP)- responsável
pela transmissão da filosofia.
Se a filosofia no Brasil ainda não gerou, como muitos reclamam,
uma
tradição autóctone, pautada, à maneira
do idealismo alemão, pelo diálogo crítico
e pela referência mútua (apesar das tentativas de
Bento Prado Jr. e seus discípulos para apressar esse processo),
já se constituiuentretanto uma corrente de transmissão
que garante ao menos a reprodução de um padrão
filosófico mínimo: certo domínio técnico
no trato com autores e textos, que se disseminou para áreas
limítrofes, como provam, por exemplo, o livro de Gabriel
Cohn sobre Max Weber e a recente incursão de Pérsio
Arida na história do pensamento econômico.
Esvaziamento da filosofia
O projeto de institucionalização da filosofia no
Brasil não se restringiu
porém a tarefas escolares e burocráticas. Marcou
profundamente a obra da maioria desses filósofos, o que
fica patente após uma leitura atenta do bloco que aborda
os textos dos próprios entrevistados. Muitas vezes a discussão
envereda para a explicação do pensamento de algum
clássico (moderno ou não), quando não parte
diretamente daí. Impulsionada pelo esvaziamento temático
da filosofia ao longo do século 20, que transformou a reflexão
sobre a história da própria filosofia em seu objeto
por excelência, o esforço de divulgação
e atualização da tradição filosófica
ainda ocupa o centro da vida filosófica brasileira.
É com esse arsenal que os entrevistados enfrentam o bloco
de questões
acerca das diversas áreas da filosofia -epistemologia,
ética, estética,
filosofia da linguagem, da religião, da história
e social. Aqui, a
heterogeneidade é mais visível, inclusive porque
os esforços foram
díspares. Uns (leia-se Gerd Bornheim) adotaram o tom displicente,
outros questionaram os pressupostos das perguntas, outros responderam
como se fizessem prova de concurso de livre-docência. O
grupo que se autoproclama "de excelência", representado
no volume por Raul Landim, Guido Almeida e Balthazar Barbosa,
foi o que mostrou o resultado mais pífio: quando não
se absteve, mal conseguiu ir além do nível de um
bom aluno de graduação. De modo geral, as respostas
desdobram posições adotadas na própria obra
(Porchat, por exemplo, tenta levar ao pé da letra sua "persona"
de filósofo cético). Essa explicitação
permite classificar a filosofia que se faz hoje no Brasil (no
compasso da filosofia mundial) como uma derivação
(pura ou mesclando as diversas matrizes) de quatro vertentes da
filosofia européia: fenomenologia (nas trilhas distintas
de Husserl ou de Heidegger), neokantismo, marxismo ocidental e
filosofia analítica (Wittgenstein).
Ricardo Musse, doutor em filosofia pela USP, é professor
do departamento de sociologia da USP.
Nota
1. Cf. Therborn, "Dialética da Modernidade - A Teoria
Crítica e o Legado
do Marxismo no Século 20" em: "Dados", vol
38/2. Rio de Janeiro: Iuperj,
1995.
Conversas com Filósofos Brasileiros
Marcos Nobre e José Marcio Rego
Editora 34 (Tel. 0/xx/11/3816-6777)
431 págs., R$ 34,00
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