Marx
e Stirner: o Público e o Privado
Haroldo
Cajazeira Alves
Depto. de Filosofia
Univ. Católica do Salvador
Crisóstomo,
com o seu livro A Questão da Individualidade: A Crítica
do Humano e do Social na Polêmica Stirner-Marx, retorna
ao solo onde se constituiu o pensamento de Marx. A polêmica
entre Marx e Stirner, ao ser revisitada pelo nosso autor, termina
por dar simultaneamente visibilidade a dois acontecimentos: o
recalque das questões que dizem respeito ao indivíduo
e sua singularidade no pensamento de Marx e o pensamento de Stirner
que foi varrido para debaixo do tapete da história.
O método adotado no livro, pelo menos na primeira parte,
é curioso. O autor apresenta a teoria de Stirner e paralelamente
relata as críticas de Marx a essas idéias. Desse
modo, Stirner aparece como a linguagem objeto e Marx como a metalinguagem.
Não seria possível a inversão? Que tal um
strip-tease de Marx comandado por Stirner? Porém, escutemos,
via Crisóstomo, o pensamento de Stirner.
Para esse autor, a criança está presa ao mundo dos
objetos, e esse mundo, estranho a ela, alheio ao seu desejo, a
domina. A criança de Stirner, ao contrário da de
Sartre, que vivia entre as palavras e as coisas, está acuada
pelo mobiliário do mundo, pela lógica
da substância. Assim, liliputiana, tendo que se submeter
à carne do mundo, a criança não
consegue centrar sua existência em si própria. Mas,
como nada dura para sempre, a infância um dia acaba, a criança
se transforma no adolescente e astutamente se vinga do mundo das
coisas. Os signos, os símbolos e outros mais são
as armas; em oposição ao mundo, o adolescente erige
um mundo paralelo, um mundo do pensamento.
No entanto, a criatura um dia ganha corpo, se proclama autônoma
e passa a dominar o criador. Assim, o pensamento, que era uma
estratégia contra o mundo (os signos se manifestam
antes de tudo como assassinos das coisas), se transforma
em uma nova substância opressora; seus produtos, como as
idéias abstratas de direito, igualdade, liberdade, etc.,
passam a governar. Quer dizer, o adolescente deixa de falar e
passa a ser falado pela linguagem. Todavia o cenário de
Stirner não se encerra aí: um outro ser surge desse
adolescente aprisionado na própria astúcia: o adulto.
O adulto como que goza do legado da criança e do adolescente;
já não se submete às coisas nem às
idéias. Ele sabe que o filme do mundo só tem sentido
porque seu corpo é o aparelho cognitivo capaz de apreendê-lo.
Também sabe que a produção desse aparelho
cognitivo é sua propriedade, é secreção
de seu corpo. Algo interessante a ser notado nesse modelo de Stirner
é que ele descreve a biografia do indivíduo aparentemente
do ponto de vista cognitivo, e para Marx esse modelo reproduz
a querela da teoria do conhecimento: realismo e idealismo.
Agora, essa estrutura da biografia do sujeito em Stirner também
se aplica à história humana. Para Stirner, os antigos,
como as crianças, viviam no realismo, submetidos à
lógica das coisas. Os modernos (os adolescentes) viviam
governados pelo mundo das idéias, pela noosfera chardiniana.
É com o pós-moderno que o egoísmo
se instala e assim o homem pode viver o paraíso no próprio
corpo.
Como já foi salientado que na narrativa de Crisóstomo
existe o superego de Stirner, quer dizer Marx, nada mais justo
escutá-lo também. Parece que, no mito
criado por Stirner, o que mais irrita Marx é a idéia
de um mundo das representações autônomo, mundo
esse que operaria sobre os indivíduos, que os submeteria,
que não seria um mero reflexo das coisas naturais ou sociais.
Essa autonomia do simbólico para Marx não passava
de um hegelianismo empobrecido. Conseqüentemente, a proposta
de Stirner de derrubada do ideal como forma de autonomia
do homem adulto seria para Marx a de uma luta contra moinhos de
vento. Toda essa vegetação de signos, símbolos
e imagens, do ponto de vista de Marx, estava muito bem plantada
no real. Formas específicas de sistemas produtivos proporcionariam
o surgimento das estruturas de representações convenientes
ao seu funcionamento.
Na questão da autonomia das representações,
parece que Stirner tinha razão. O pensamento contemporâneo
acentuou bastante a chamada eficácia do simbólico.
As representações, segundo esse ponto de vista,
terminaram adquirindo um caráter de substância, e
não de mera fantasmagoria. Assim, lutar contra o imaginário
de uma sociedade não é lutar contra moinhos de vento.
Todavia, além das falas de Stirner e de Marx, o texto de
Crisóstomo é habitado pela fala do próprio
Crisóstomo, é óbvio. Na página 45,
ele afirma que sobre essa oposição essencial
entre moralidade e autonomia pessoal, coisa que na realidade hegelianamente
recusa, Marx nada tem a dizer, pelo menos aqui. Mas é precisamente
essa a questão que Stirner está levantando.
Nesse comentário, talvez, esteja precisamente uma oposição
fundamental entre Marx e Stirner. Para Marx, a sociedade era o
essencial, os sujeitos só se constituíam no espaço
social, a própria noção de consciência
só é possível em Marx por via da linguagem,
instrumento eminentemente social. Imaginar a oposição
entre indivíduo e a sociedade seria assim uma mera quimera.
Ao contrário de Marx, Stirner está interessado no
que ele chama hipocrisia moderna, em que as pessoas hesitam
entre querer livremente e querer moralmente. Desse modo,
a oposição entre o indivíduo e a sociedade
tem cidadania no discurso de Stirner. O indivíduo não
seria um mero efeito do tecido social, uma certa tensão
entre o corpo singular e a substância do social é
parte da visão de Stirner. Esse fato talvez autorize entender
a oposição entre esses dois autores como uma oposição
entre o público e o privado. É notória a
dificuldade do pensamento marxista em lidar com o privado, a lógica
desse discurso sempre foi a de submeter a esfera privada à
pública. O livro de Crisóstomo mostra que essa dificuldade
tem uma longa história.
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