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José Crisóstomo de Souza
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Marx e Stirner: o Público e o Privado

Haroldo Cajazeira Alves
Depto. de Filosofia
Univ. Católica do Salvador

Crisóstomo, com o seu livro A Questão da Individualidade: A Crítica do Humano e do Social na Polêmica Stirner-Marx, retorna ao solo onde se constituiu o pensamento de Marx. A polêmica entre Marx e Stirner, ao ser revisitada pelo nosso autor, termina por dar simultaneamente visibilidade a dois acontecimentos: o recalque das questões que dizem respeito ao indivíduo e sua singularidade no pensamento de Marx e o pensamento de Stirner que foi varrido para debaixo do tapete da história.

O método adotado no livro, pelo menos na primeira parte, é curioso. O autor apresenta a teoria de Stirner e paralelamente relata as críticas de Marx a essas idéias. Desse modo, Stirner aparece como a linguagem objeto e Marx como a metalinguagem. Não seria possível a inversão? Que tal um strip-tease de Marx comandado por Stirner? Porém, escutemos, via Crisóstomo, o pensamento de Stirner.

Para esse autor, a criança está presa ao mundo dos objetos, e esse mundo, estranho a ela, alheio ao seu desejo, a domina. A criança de Stirner, ao contrário da de Sartre, que vivia entre as palavras e as coisas, está acuada pelo “mobiliário do mundo”, pela lógica da substância. Assim, liliputiana, tendo que se submeter “à carne do mundo”, a criança não consegue centrar sua existência em si própria. Mas, como nada dura para sempre, a infância um dia acaba, a criança se transforma no adolescente e astutamente se vinga do mundo das coisas. Os signos, os símbolos e outros mais são as armas; em oposição ao mundo, o adolescente erige um mundo paralelo, um mundo do pensamento.

No entanto, a criatura um dia ganha corpo, se proclama autônoma e passa a dominar o criador. Assim, o pensamento, que era uma estratégia contra o mundo (“os signos se manifestam antes de tudo como assassinos das coisas”), se transforma em uma nova substância opressora; seus produtos, como as idéias abstratas de direito, igualdade, liberdade, etc., passam a governar. Quer dizer, o adolescente deixa de falar e passa a ser falado pela linguagem. Todavia o cenário de Stirner não se encerra aí: um outro ser surge desse adolescente aprisionado na própria astúcia: o adulto.

O adulto como que goza do legado da criança e do adolescente; já não se submete às coisas nem às idéias. Ele sabe que o filme do mundo só tem sentido porque seu corpo é o aparelho cognitivo capaz de apreendê-lo. Também sabe que a produção desse aparelho cognitivo é sua propriedade, é secreção de seu corpo. Algo interessante a ser notado nesse modelo de Stirner é que ele descreve a biografia do indivíduo aparentemente do ponto de vista cognitivo, e para Marx esse modelo reproduz a querela da teoria do conhecimento: realismo e idealismo.

Agora, essa estrutura da biografia do sujeito em Stirner também se aplica à história humana. Para Stirner, os antigos, como as crianças, viviam no realismo, submetidos à lógica das coisas. Os modernos (os adolescentes) viviam governados pelo mundo das idéias, pela noosfera chardiniana. É com o pós-moderno que o “egoísmo” se instala e assim o homem pode viver o paraíso no próprio corpo.

Como já foi salientado que na narrativa de Crisóstomo existe o superego de Stirner, quer dizer Marx, nada mais justo escutá-lo também. Parece que, no “mito” criado por Stirner, o que mais irrita Marx é a idéia de um mundo das representações autônomo, mundo esse que operaria sobre os indivíduos, que os submeteria, que não seria um mero reflexo das coisas naturais ou sociais. Essa autonomia do simbólico para Marx não passava de um hegelianismo empobrecido. Conseqüentemente, a proposta de Stirner de derrubada do “ideal” como forma de autonomia do homem adulto seria para Marx a de uma luta contra moinhos de vento. Toda essa vegetação de signos, símbolos e imagens, do ponto de vista de Marx, estava muito bem plantada no real. Formas específicas de sistemas produtivos proporcionariam o surgimento das estruturas de representações convenientes ao seu funcionamento.

Na questão da autonomia das representações, parece que Stirner tinha razão. O pensamento contemporâneo acentuou bastante a chamada “eficácia do simbólico”. As representações, segundo esse ponto de vista, terminaram adquirindo um caráter de substância, e não de mera fantasmagoria. Assim, lutar contra o imaginário de uma sociedade não é lutar contra moinhos de vento.

Todavia, além das falas de Stirner e de Marx, o texto de Crisóstomo é habitado pela fala do próprio Crisóstomo, é óbvio. Na página 45, ele afirma que “sobre essa oposição essencial entre moralidade e autonomia pessoal, coisa que na realidade hegelianamente recusa, Marx nada tem a dizer, pelo menos aqui. Mas é precisamente essa a questão que Stirner está levantando”. Nesse comentário, talvez, esteja precisamente uma oposição fundamental entre Marx e Stirner. Para Marx, a sociedade era o essencial, os sujeitos só se constituíam no espaço social, a própria noção de consciência só é possível em Marx por via da linguagem, instrumento eminentemente social. Imaginar a oposição entre indivíduo e a sociedade seria assim uma mera quimera.

Ao contrário de Marx, Stirner está interessado no que ele “chama hipocrisia moderna, em que as pessoas hesitam entre querer livremente e querer moralmente”. Desse modo, a oposição entre o indivíduo e a sociedade tem cidadania no discurso de Stirner. O indivíduo não seria um mero efeito do tecido social, uma certa tensão entre o corpo singular e a substância do social é parte da visão de Stirner. Esse fato talvez autorize entender a oposição entre esses dois autores como uma oposição entre o público e o privado. É notória a dificuldade do pensamento marxista em lidar com o privado, a lógica desse discurso sempre foi a de submeter a esfera privada à pública. O livro de Crisóstomo mostra que essa dificuldade tem uma longa história.