Guerra
de Leituras
Haroldo
Cajazeira Alves
Depto. de Filosofia
Univ. Católica do Salvador
Podemos
imaginar a obra de Hegel como um grande território. Após
a morte do filósofo os herdeiros se apoderaram de fatias
desse território e se elegeram intérpretes legítimos
do legado hegeliano. É essa luta pela propriedade da maquinaria
textual de Hegel que o livro de Crisóstomo, Ascensão
e Queda do Sujeito no Movimento Jovem-Hegeliano, nos conta. Marx
e Engels já tinham dado a sua versão da contenda.
Porém, segundo o autor do livro, versão suspeita,
viciada, pois inteiramente inserida na guerra interpretativa que
eles queriam descrever.
Bem, como nosso autor, creio, não tem pretensão
em favorecer nenhum dos bandos que disputavam o território
fundado por Hegel, muito pelo contrário, o interesse da
empreitada foi reconstituir as várias falas e tensões
que foram recalcadas. Sigamos viagem, então, com ele.
A primeira informação que surpreende na história
dos jovens hegelianos é que a questão religiosa
foi que deflagrou o conflito. Para nós, que só conhecemos
esse conflito de ouvido, parecia que desde o início os
jovens hegelianos estavam atolados até o pescoço
em questões políticas. Aqui cabe lembrar que Nietzsche,
em Para a Genealogia da Moral, demarcou a necessidade de se fazer
uma diferença entre a causa do surgimento de uma coisa
e sua utilidade final. Isto é, os textos, as instituições
e os acontecimentos vão ao longo do tempo sendo reinterpretados
por diferentes forças; os seus significados não
são essências que ao longo da existência permanecem
idênticas a si próprias. E o nosso autor, o narrador
das peripécias dos jovens hegelianos, é um atento
observador das mutações ocorridas no interior do
movimento dos jovens hegelianos.
Estabelecida a natureza inicial do movimento, fica faltando saber
qual a peça que desencadeou esse acontecimento. Para alguns,
diz o texto, o Pensamentos sobre a Morte e a Imortalidade, de
Ludwig Feuerbach, está no começo da esquerda hegeliana,
mas é opinião da maioria que tudo se desencadeou
com a publicação da Vida de Jesus, Examinada Criticamente,
escrita por David Strauss, jovem teólogo hegeliano. A primeira
característica dessa operação é a
de tomar os evangelhos como mito, desmontá-los, e restabelecer
o real sentido desses textos. Num segundo momento, Strauss faz
a humanidade se apresentar como o próprio Salvador: são
os homens em um processo desalienador que vão restaurar
na história uma verdadeira comunidade. Assim, a parafernália
teológica ganha cidadania no real, a promessa celeste se
encena no mundo. Essa escatologia permeia todos os jovens hegelianos,
e, aí, talvez, se possa ver plantado desde o início
um desejo de política no movimento dos jovens hegelianos:
o vocabulário e as metáforas são de origem
teológica, mas a semântica diz respeito aos negócios
da polis. Também, como resultado dessa operação
de Strauss, se pode acrescentar a promoção do homem
ao posto de sujeito de sua própria desalienação:
com Strauss o sujeito ganha substância, se centra.
Aceita a obra de Strauss como uma marca de separação
entre direita e esquerda hegeliana, se poderia imaginar que a
esquerda hegeliana formava um bloco homogêneo. Nada mais
falso. O lado esquerdo do território hegeliano se encontrava
em plena guerra, uma guerra santa na visão
de Marx. Os personagens principais dessa guerra são: Feuerbach,
Bauer, Stirner, Marx, Engels. No entanto, como a questão
fundamental do livro de Crisóstomo é a da ascensão
e queda do sujeito, vamos deixar de lado certas minúcias
das querelas dos jovens hegelianos. O eixo central do debate é
o que vai ser focalizado aqui. Se o movimento dos jovens hegelianos
tem seu início com questões de fundo teológico,
no seu desenvolvimento o processo ganha outra direção:
a oposição entre substância e consciência
toma conta da cena. A temática teológica cede lugar
à temática gnosiológica-ontológica.
Porém, como no primeiro momento o debate de fundo teológico
carregava traços de interesses terráqueos, o segundo
debate terá conseqüências de natureza política.
Pois, segundo o nosso autor, esse debate extrapolava a oposição
entre substância e consciência, na medida que tomar
o partido da consciência levaria a privilegiar a ação
pessoal independente de qualquer influência exterior.
Nessa discussão filosófica a tradição
foi mobilizada. Para uma ala da esquerda hegeliana, a substância
representa o grande Outro, a lei que, vinda de fora, submete o
sujeito, impõe sua lógica. O mundo, a natureza,
o estado e deus se colocam ao lado da substância, e por
isso mesmo sufocam o sujeito, reduzem-no ao mero acidente. Hoje,
conhecida a experiência do socialismo real, podemos perceber
o caráter explosivo dessa discussão aparentemente
metafísica. Não seria o partido a atualização
do homem genérico de Feuerbach? Perdida a causalidade própria,
não estaria o homem preparado para entregar-se simplesmente
à substância (ao estado)? É evidente o caráter
selvagem dessas minhas aproximações...
Um outro aspecto muito interessante na obra de Crisóstomo
é que ela reconstitui a cena primitiva em que
o pensamento de Marx e Engels começou a se constituir.
Sabe-se que um texto sempre está em diálogo com
outros textos, o sentido de um texto nasce dessa intertextualidade.
Assistir a guerra textual de Feuerbach, Bauer, Stirner, Marx e
Engels é uma forma de alterar e reavaliar o nosso ponto
de vista sobre o marxismo.
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