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José Crisóstomo de Souza
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Guerra de Leituras

Haroldo Cajazeira Alves
Depto. de Filosofia
Univ. Católica do Salvador

Podemos imaginar a obra de Hegel como um grande território. Após a morte do filósofo os herdeiros se apoderaram de fatias desse território e se elegeram intérpretes legítimos do legado hegeliano. É essa luta pela propriedade da “maquinaria textual” de Hegel que o livro de Crisóstomo, Ascensão e Queda do Sujeito no Movimento Jovem-Hegeliano, nos conta. Marx e Engels já tinham dado a sua versão da contenda. Porém, segundo o autor do livro, versão suspeita, viciada, pois inteiramente inserida na guerra interpretativa que eles queriam descrever.

Bem, como nosso autor, creio, não tem pretensão em favorecer nenhum dos “bandos” que disputavam o território fundado por Hegel, muito pelo contrário, o interesse da empreitada foi reconstituir as várias falas e tensões que foram recalcadas. Sigamos viagem, então, com ele.
A primeira informação que surpreende na história dos jovens hegelianos é que a questão religiosa foi que deflagrou o conflito. Para nós, que só conhecemos esse conflito de ouvido, parecia que desde o início os jovens hegelianos estavam atolados até o pescoço em questões políticas. Aqui cabe lembrar que Nietzsche, em Para a Genealogia da Moral, demarcou a necessidade de se fazer uma diferença entre a causa do surgimento de uma coisa e sua utilidade final. Isto é, os textos, as instituições e os acontecimentos vão ao longo do tempo sendo reinterpretados por diferentes forças; os seus significados não são essências que ao longo da existência permanecem idênticas a si próprias. E o nosso autor, o narrador das peripécias dos jovens hegelianos, é um atento observador das mutações ocorridas no interior do movimento dos jovens hegelianos.

Estabelecida a natureza inicial do movimento, fica faltando saber qual a peça que desencadeou esse acontecimento. Para alguns, diz o texto, o Pensamentos sobre a Morte e a Imortalidade, de Ludwig Feuerbach, está no começo da esquerda hegeliana, mas é opinião da maioria que tudo se desencadeou com a publicação da Vida de Jesus, Examinada Criticamente, escrita por David Strauss, jovem teólogo hegeliano. A primeira característica dessa operação é a de tomar os evangelhos como mito, desmontá-los, e restabelecer o real sentido desses textos. Num segundo momento, Strauss faz a humanidade se apresentar como o próprio Salvador: são os homens em um processo desalienador que vão restaurar na história uma verdadeira comunidade. Assim, a parafernália teológica ganha cidadania no real, a promessa celeste se encena no mundo. Essa escatologia permeia todos os jovens hegelianos, e, aí, talvez, se possa ver plantado desde o início um desejo de política no movimento dos jovens hegelianos: o vocabulário e as metáforas são de origem teológica, mas a semântica diz respeito aos negócios da polis. Também, como resultado dessa operação de Strauss, se pode acrescentar a promoção do homem ao posto de sujeito de sua própria desalienação: com Strauss o sujeito ganha substância, se centra.

Aceita a obra de Strauss como uma marca de separação entre direita e esquerda hegeliana, se poderia imaginar que a esquerda hegeliana formava um bloco homogêneo. Nada mais falso. O lado esquerdo do território hegeliano se encontrava em plena guerra, uma “guerra santa” na visão de Marx. Os personagens principais dessa guerra são: Feuerbach, Bauer, Stirner, Marx, Engels. No entanto, como a questão fundamental do livro de Crisóstomo é a da ascensão e queda do sujeito, vamos deixar de lado certas minúcias das querelas dos jovens hegelianos. O eixo central do debate é o que vai ser focalizado aqui. Se o movimento dos jovens hegelianos tem seu início com questões de fundo teológico, no seu desenvolvimento o processo ganha outra direção: a oposição entre substância e consciência toma conta da cena. A temática teológica cede lugar à temática gnosiológica-ontológica. Porém, como no primeiro momento o debate de fundo teológico carregava traços de interesses terráqueos, o segundo debate terá conseqüências de natureza política. Pois, segundo o nosso autor, esse debate extrapolava a oposição entre substância e consciência, na medida que tomar o partido da consciência levaria a privilegiar a ação pessoal independente de qualquer influência exterior.

Nessa discussão filosófica a tradição foi mobilizada. Para uma ala da esquerda hegeliana, a substância representa o grande Outro, a lei que, vinda de fora, submete o sujeito, impõe sua lógica. O mundo, a natureza, o estado e deus se colocam ao lado da substância, e por isso mesmo sufocam o sujeito, reduzem-no ao mero acidente. Hoje, conhecida a experiência do socialismo real, podemos perceber o caráter explosivo dessa discussão aparentemente metafísica. Não seria o partido a atualização do homem genérico de Feuerbach? Perdida a causalidade própria, não estaria o homem preparado para entregar-se simplesmente à substância (ao estado)? É evidente o caráter selvagem dessas minhas aproximações...

Um outro aspecto muito interessante na obra de Crisóstomo é que ela reconstitui “a cena primitiva” em que o pensamento de Marx e Engels começou a se constituir. Sabe-se que um texto sempre está em diálogo com outros textos, o sentido de um texto nasce dessa intertextualidade. Assistir a guerra textual de Feuerbach, Bauer, Stirner, Marx e Engels é uma forma de alterar e reavaliar o nosso ponto de vista sobre o marxismo.