TEMPO
HISTÓRICO E TEMPO LÓGICO NA
INTERPRETAÇÃO DOS SISTEMAS
FILOSÓFICOS
Victor
Goldschmidt
Parece que haveria duas maneiras distintas de interpretar um sistema;
ele pode ser interrogado, seja sobre sua verdade, seja sobre sua
origem; pode-se pedir-lhe que dê razões, ou buscar
suas causas. Mas, nos dois casos, considera-se ele, sobretudo,
como um conjunto de teses, de dogmata. O primeiro método,
que se pode chamar dogmático, aceita, sob ressalva, a pretensão
dos dogmas a serem verdadeiros, e não separa a léxis
(A. Lalande) da crença; o segundo, que se pode chamar genético,
considera os dogmas como efeitos, sintomas, de que o historiador
deverá escrever a etiologia (fatos econômicos e políticos,
constituição fisiológica do autor, suas leituras,
sua biografia intelectual ou espiritual etc.). O primeiro
método é eminentemente filosófico: ele aborda
uma doutrina conforme à intenção de seu autor
e, até o fim, conserva, no primeiro plano, o problema da
verdade; em compensação, quando ele termina em crítica
e em refutação, pode-se perguntar se mantém,
até o fim, a exigência da compreensão. A interpretação
genética, sob todas as suas formas, é ou pode ser
um método científico e, por isso, sempre instrutivo;
em compensação, buscando as causas, ela se arrisca
a explicar o sistema além ou por cima da intenção
de seu autor; ela repousa freqüentemente sobre pressupostos
que, diferentemente do que acontece na interpretação
dogmática, não enfrentam a doutrina estudada para
medir-se com ela, mas se estabelecem, de certo modo, por sobre
ela e servem, ao contrário, para medi-la. Enfim, o método
dogmático, examinando um sistema sobre sua verdade, subtrai-o
ao tempo; as contradições que é levado a
constatar no interior de um sistema ou na anarquia dos sistemas
sucessivos, provêm, precisamente, de que todas as teses
de uma doutrina e de todas as doutrinas pretendem ser conjuntamente
verdadeiras, ao mesmo tempo. O método genético,
pelo contrário, põe, com a causalidade, o tempo;
além disso, o recurso ao tempo e a uma evolução
permite-lhe, precisamente, explicar e dissolver essas contradições.
Ora, a história da filosofia, assim como Husserl
o exigira da própria filosofia, deveria, e ao mesmo tempo,
ser ciência rigorosa e, entretanto, permanecer
filosófica. M. Guéroult, comentando a obra de E.
Bréhier, lembrou, não faz muito, que a história
da filosofia é, antes de tudo, filosofia, mas que ela não
tem valor para a filosofia senão permanecendo intransigente
sobre a verdade histórica. É para a
elaboração de um método, ao mesmo tempo,
científico e filosófico, que quereriam contribuir
as notas seguintes.
A filosofia é explicitação e discurso. Ela
se explicita em movimentos sucessivos, no curso dos quais produz,
abandona e ultrapassa teses ligadas umas às outras numa
ordem por razões. A progressão (método) desses
movimentos dá à obra escrita sua estrutura e efetua-se
num tempo lógico. A interpretação consistirá
em reapreender, conforme à intenção do autor,
essa ordem por razões, e em jamais separar as teses dos
movimentos que as produziram. Precisemos esses diferentes pontos.
A filosofia é explicitação. Que esta explicitação
proceda de uma intuição original, que
haja, por trás do que está desenvolvido e
exteriorizado, um núcleo, uno, simples, voluntário
e livre que lhe (ao historiador) revelará um sujeito,
é coisa que se pode, certamente, conceder. Mas tendo o
filósofo pretendido dar-nos um pensamento desenvolvido,
o ofício do intérprete não pode consistir
em reduzir à força esse desenvolvimento a sua fase
embrionária, nem em sugerir, por imagens, uma interpretação
que o filósofo julgou dever formular em razões.
O primeiro motor de um sistema, que se chame intuição,
sujeito,* pensamento central, não permaneceu na inação.
Reduz-se ele a isso, cada vez que se toma um sistema assim, às
avessas; ora, a intuição, tão bem denominada
original, tendeu, quanto a ela, a explicitar-se. Além
disso, recorre-se a uma causa inteligível que teria isto
de paradoxal, que, permanecendo oculta, como é preciso,
aos olhos do filósofo, se entregaria ao intérprete.
É que, tanto aqui como em outras pesquisas etiológicas,
o intérprete se coloca acima do sistema e, em relação
ao filósofo, ao invés de adotar primeiramente a
atitude de discípulo, faz-se analista, médico, confessor.
O sistema, entretanto, não é escrito para fornecer
sintomas e índices destinados a uma desvalorização
radical, em troca de sua causa produtora oculta, que eles teriam
permitido inferir, mas, inversamente, para mostrar e para fazer
compreender as produções desta causa, qualquer que
seja ela. Ora, as asserções de um sistema não
podem ter por causas, tanto próximas quanto adequadas,¨
senão razões conhecidas do filósofo e alegadas
por ele. É possível, sem dúvida, colocar,
na origem de um sistema, qualquer coisa como um caráter
inteligível; mas, para o intérprete, esse caráter
somente é dado no seu comportamento e nos seus atos, isto
é, nos seus movimentos filosóficos e nas teses que
eles produzem. O que é preciso estudar é essa estrutura
do comportamento, e referir cada asserção
a seu movimento produtor, o que significa, finalmente, a doutrina
ao método.
Doutrina e método, com efeito, não são elementos
separados. O método se encontra em ato nos próprios
movimentos do pensamento filosófico, e a principal tarefa
do intérprete é restituir a unidade indissolúvel
deste pensamento que inventa teses, praticando um método.
Quando um autor consagrou a seu método uma exposição
teórica, é preciso evitar interpretar esta última
como um conjunto de normas dogmáticas, a serem classificadas
ao lado dos dogmas propriamente ditos. Pode-se generalizar, a
esse respeito, o que Descartes diz de seu próprio método,
que ele consiste mais em prática que em teoria
(a Mersenne, março de 1637); e quando, a propósito
dos Ensaios desse método, Descartes precisa
que as coisas que eles contêm não puderam ser
achadas sem ele, e que se pode conhecer por eles o que ele vale,
é preciso acrescentar que, sem eles, nem mesmo se pode
conhecer o que ele é. Inversamente, tampouco se conhecem
as teses, se abstraídas do método de que resultam.
A pesquisa, em matéria de filosofia, não procede
somente da verdade, mas faz corpo com ela. Assim, para compreender
uma doutrina, não é suficiente não separar
a léxis da crença, a regra, de sua prática;
é preciso, após o autor, refazer os movimentos concretos,
aplicando as regras e chegando a resultados que, não por
causa de seu conteúdo material, mas em razão desses
movimentos, se pretendem verdadeiros. Ora, esses movimentos se
nos apresentam na obra escrita.
Seria ainda separar método e doutrina o achar na obra um
método somente de exposição, e não
de descoberta. Mas, na oposição entre esses dois
métodos, pensada até o fim, ou bem os dois termos
acabam por coincidir, ou então o último destrói-se
por si mesmo, porque sustentar, com E. Le Roy, que a invenção
se cumpre no nebuloso, no obscuro, no ininteligível, quase
no contraditório, é dizer que ela não
é, de modo algum, um método. E é possível,
sem dúvida, na exegese dos sistemas, dedicar-se à
reconstituição de uma tal invenção,
isto é, abandonar o filosófico pelo psicológico
e pelo biográfico, e as razões pelas causas. Sem
dúvida, é preciso também reconhecer que um
autor possui, sob certa forma, idéias, antes de poder pensar
em expô-las. Mas essas idéias não terão
sua forma certa, sua descoberta não estará propriamente
concluída senão com o traço final da obra.
Crendo o contrário, corre-se o risco de ceder à
ilusão retrógrada denunciada por Bergson; admite-se
que uma doutrina preexiste à sua exposição,
qual um conjunto de verdades inteiramente constituídas
e indiferentes a seu modo de explicitação (e não
se deve ter o temor de precisar: à sua expressão
verbal). Mas a opinião não se confunde com a ciência;
a tese simplesmente descoberta, isto é, entrevista
e que flutua livremente diante do espírito, não
estará inventada, de verdade, senão quando for exposta,
isto é, encadeada por um raciocínio
(Menão, 98 a). Este ensaio, escreve Condillac,
estava acabado, e, entretanto, eu ainda não conhecia,
em toda a sua extensão, o princípio da ligação
das idéias. Isso provinha unicamente de um fragmento de
cerca de duas páginas, que não estava no lugar onde
deveria estar (Essai sur lorig. des conn. hum., II,
II, 4).
Os movimentos do pensamento filosófico estão inscritos
na estrutura da obra, nada mais sendo esta estrutura, inversamente,
que as articulações do método em ato; mais
exatamente: é uma mesma estrutura, que se constrói
ao longo da progressão metódica e que, uma vez terminada,
define a arquitetura da obra. Ora, falar de movimentos e de progressão
é, a não ser que fique em metáforas, supor
um tempo, e um tempo estritamente metodológico ou, guardando
para o termo sua etimologia, um tempo lógico . Em nada
se cede, com isso, a um psicologismo qualquer. O tempo
necessário para escrever um livro e para lê-lo é
medido, sem dúvida, pelos relógios, ritmado por
eventos de todos os tipos, encurtado ou alongado por toda espécie
de causas; a esse tempo, nem o autor nem o leitor escapam inteiramente,
assim como aos outros dados (estudados pelos métodos genéticos)
que condicionam a filosofia, mas não a constituem. Porém,
como escreve G. Bachelard, o pensamento racional se estabelecerá
num tempo de total não-vida, recusando o vital. Que a vida,
por seu lado, se desenvolva e traga suas necessidades, é,
sem dúvida, uma fatalidade corporal. Mas isso não
suprime a possibilidade de retirar-se do tempo vivido, para encadear
pensamentos numa ordem de uma nova temporalidade. Esta temporalidade
está contida, como cristalizada, na estrutura da obra,
como o tempo musical na partitura.
Admitir um tempo lógico é bem menos formular uma
teoria, por sua vez, dogmática, que uma regra de interpretação,
de que é preciso, ao menos, assinalar algumas aplicações.
Essa regra, em primeiro lugar, concerne à própria
exegese dos métodos. Refazer, após o autor, os movimentos
de que a estrutura da obra guarda o traçado, é repor
em movimento a estrutura e, desse modo, situar-se num tempo lógico.
Assim, o movimento inicial do método cartesiano dá
às duas primeiras Meditações sua estrutura;
esta estrutura, da maneira mais aparente, exprime-se no fato que
há duas; a razão deste fato é que, para cumprir
esse movimento, é preciso tempo. Descartes escreve sobre
a dúvida universal: Eu não pude (entretanto)
dispensar-me de dar-lhe uma Meditação inteira; e
eu gostaria que os leitores não empregassem apenas o pouco
de tempo necessário para lê-la, mas alguns meses,
ou, ao menos, algumas semanas, a considerar as coisas de que ela
trata, antes de passar adianta, e, sobre o modo de conhecer
o espírito: É preciso examiná-lo freqüentemente
e considerá-lo longamente... o que me pareceu uma razão
suficientemente justa para não tratar outra matéria,
na segunda Meditação ( Seg. Resp., com.).
Esse tempo, sem dúvida, varia segundo o leitor; ele dura
alguns meses ou algumas semanas. Mas a
estrutura das Meditações é dada objetivamente,
o método que a subtende tem pretensões a um valor
universal, e o tempo onde se desenvolve esse método é
um tempo lógico, apreendido pelo leitor-filósofo,
ainda que esse leitor, se ele se chama Pedro, possa gastar com
isso menos tempo físico que se ele se chama Paulo. O erro
de interpretação, que Descartes censura em Gassendi,
consiste em arrancar a dúvida universal ao movimento estrutural
e ao tempo lógico. No método platônico, o
quarto e o último movimento caracterizam-se não
somente por sua certeza, seu desembaraço, mas, ainda, de
uma maneira correspondente, pelo pouco tempo que ela supõe
. Em certas filosofias, o método em ato, não
somente se move num tempo lógico, mas mantém relações,
implícitas ou explícitas, com uma doutrina do tempo
em geral; isto, tentaremos mostrá-lo alhures, acontece
em Bergson, aquilo, nos Estóicos.
De um modo mais geral, repor os sistemas num tempo lógico
é compreender sua independência, relativa talvez,
mas essencial, em relação aos outros tempos em que
as pesquisas genéticas os encadeiam. A história
dos fatos econômicos e políticos, a história
das ciências, a história das idéias gerais
(que são as de ninguém) fornecem um quadro cômodo,
talvez indispensável, em todo o caso, não-filosófico,
para a exposição das filosofias; eis aí,
escreve E. Bréhier, o tempo exterior ao sistema
. A biografia, sob todas as suas formas, supõe um
tempo vivido e, em última instância, não-filosófico,
porque é o autor da biografia, não autor do sistema,
que comanda seu desenrolar-se; mas o sistema, qualquer que seja
seu condicionamento, é uma promoção; como
diz M. Guéroult, a propósito de Fichte: Bem
se pode (pois) transpor na ordem do especulativo o que se passou
na alma do filósofo; seguindo-se o caminho inverso,
impõe-se ao sistema uma desqualificação.
É bastante notável que seja Bergson quem tenha afirmado
a independência essencial de uma doutrina em relação
ao tempo histórico em que ela aparece. Tais ucronias
fazem ver o que é essencial num pensamento filosófico
é uma certa estrutura .
Pondo em primeiro plano a preocupação pela
estrutura que, para citar ainda E. Bréhier, domina
decididamente a da gênese, cuja pesquisa tantas decepções
causou , a interpretação metodológica
pode, pelo menos, quanto a seu princípio, pretender-se
científica; além disso, do mesmo modo
que as outras exegeses científicas, às quais ela
não visa substituir-se, ela supõe um devir, mas
que seja interior ao sistema, e busca as causas de um doutrina,
aquelas pelas quais o próprio autor a engendra, diante
de nós.
Filosófica, ela o é, na medida em que tenta compreender
um sistema, conforme à intenção de seu autor.
Indo mais além, ela poderia fornecer indicações,
ao menos, para o que concerne ao problema da verdade formal de
uma doutrina. Que os movimentos filosóficos se cumpram
num tempo próprio, isso significa, essencialmente, que
a filosofia é discurso, que a verdade não lhe é
dada em bloco e de uma só vez, mas sucessivamente e progressivamente,
isto é, em tempos e em níveis diferentes. Se assim
é, não parece, então, que se possa exigir
de um sistema, o acordo simultâneo, resultando de uma conspiração
intemporal, de seus dogmas considerados, unicamente, em seu conteúdo
material. É o mesmo desconhecimento do tempo lógico
que está na raiz destas duas exigências, a nosso
ver, ilusórias: medir a coerência de um sistema pela
concordância, efetuada num presente eterno, dos dogmas que
o compõem, e realizar o esforço filosófico
por uma intuição única e total, estabelecendo-se,
também ela, na eternidade.
O pleroma das filosofias jamais poderá constituir-se
pela concordância intemporal dos dogmas; eis aí o
contra-senso fundamental de toda tentativa de ecletismo. Para
constituí-lo solidamente, seria preciso unificar os diferentes
tempos lógicos, mas sem recorrer ao tempo histórico
(que não pode contê-los), nem a um tempo universal
à maneira hegeliana (que os desregra e esmaga). Este tempo
único englobante, não se pode conceber ele senão
à maneira da idéia kantiana, tentando-se, unicamente,
transpondo uma indicação dada por Bergson, restituir
fragmentos dele que sejam comuns a duas consciências (filosóficas)
suficientemente aproximadas umas das outras, para
ter o mesmo ritmo de duração (Durée
e Simultanéité 2, pág. 58); tais comparações,
institui-las-á o historiador, sem levar, necessariamente,
em conta o tempo histórico, entre pensadores cujo comportamento
filosófico ofereça estruturas aparentadas. As pesquisas
sobre as formas de pensamento, ou estudos arquitetônicos
vão nesse sentido.
O problema da verdade material dos dogmas, considerado em si mesmo,
não está, com isso, resolvido. Mas, pelo menos,
parece que não se pode ele colocar em si mesmo e separadamente;
toda filosofia é uma totalidade, onde se juntam, indissoluvelmente,
as teses e os movimentos. Esses movimentos, efetuando-se num tempo
lógico, implicam memória e previsão; mesmo
se eles se apresentam como rupturas, são feitos em conhecimento
de causa; são decisões (batalhas, dizia
Descartes); o que, ao mesmo tempo, mede a coerência de um
sistema e seu acordo com o real, não é o princípio
de não contradição, mas a responsabilidade
filosófica .
É o que explica o recurso necessário, da parte do
historiador, à obra assumida. Seja qual for o valor dos
inéditos, eles não são, enquanto concebidos
num tempo unicamente vivido, construídos no tempo lógico,
que é o único a permitir o exercício da responsabilidade
filosófica. Notas preparatórias, onde o pensamento
se experimenta e se lança, sem ainda determinar-se, são
léxis sem crença e, filosoficamente, irresponsáveis;
elas não podem prevalecer contra a obra, para corrigi-la,
prolongá-la, ou coroá-la; muito freqüentemente,
não servem senão para governá-la, e, desse
modo, falseá-la. Ora, o historiador não é,
em primeiro lugar, crítico, médico, diretor de consciência;
ele é quem deve aceitar ser dirigido, e isso, consentindo
em colocar-se nesse tempo lógico, de que pertence ao filósofo
a iniciativa. |