FILOSOFIA
COMO EXERCÍCIO E ARTE
José Crisóstomo de Souza
Quero
que nunca deixes escapar a alegria, que jamais cessará
depois que encontrares de onde ela pode ser tomada - promete
o filósofo. Mas quando foi que a filosofia se empenhou
em tais promessas e falou uma linguagem tão doce? Para
nós, a memória desse discurso sedutor se perdeu
numa longa noite de aridez teórica. No entanto, a filosofia
num certo tempo - justamente aquela de que estamos tratando -
não só se colocou preocupações como
essas, como de fato se empenhou em elaborar as orientações
práticas - os exercícios - com vistas
à conquista de bens tão desejados como a alegria
e a tranqüilidade. Não existe outro órgão
do viver senão a alma, explica Apuleio, mas os homens,
que querem uma vida melhor, exercitam os pés para correr,
os braços para lutar, porém não exercitam
a alma.
O
prometido alcance desses exercícios pode até soar
aos nossos ouvidos como um exagero de marketing, mesmo quando
sabemos que sua prática era discreta e freqüentemente
circunscrita por relações de amizade. Pois através
de tais técnicas dever-se-ia atingir praticamente o fim
de todos os problemas e preocupações: Dormindo
ou acordado, viverás como um deus entre os homens.
Mas, em vez de desvio ou abuso, uma tal promessa antes coincidia
com o interesse essencial da filosofia no período helenístico
e romano. Com efeito, ela era exatamente a arte de viver, tendo
por conteúdo a vida de cada pessoa. Não apenas
uma instrução, mas o caminho. E, a ser
assim, o que devo buscar na filosofia não é corrigir
meu conhecimento, mas me transformar. Por isso ela
é exercício - para os platônicos, os estóicos,
os epicúreos, etc. Tanto quanto viver é - ou deve
ser - um exercício e uma arte.
Indo
um pouco mais longe, devo encontrar na filosofia a verdadeira
saúde da alma e do corpo. Segundo Plutarco, a filosofia
e a medicina lidam com um único e mesmo campo. A
escola de filosofia, diz Epictetus, é um consultório
médico, o dispensário da alma;
aí não se vai simplesmente aprender alguma coisa.
Nossa única preocupação é com
nossa saúde, confirmam os epicúreos; consiste
em conduzir a alma das atribulações da vida à
alegria de existir. A palavra terapia (therapai)
- que pode significar também os atos de culto - é
aí freqüentemente usada. Nessa tradição,
conclui Pierre Hadot, o ato filosófico não
se situa apenas na ordem do conhecimento, mas do eu e do ser.
Therapai
e Askesis
A
filosofia é então um exercício
e não um ensinamento abstrato; ela implica num certo estilo,
numa atitude concreta, num exercer a vida. Deve acarretar,
sobretudo, uma libertação das ansiedades e dependências
que nos levam à frustração e ao desespero;
é o que entendem os estóicos. Visa pôr um
fim aos temores sem sentido, que nos privam do verdadeiro prazer,
o prazer de ser. Um estado que se atinge através
do cultivo da gratidão com relação à
vida e que permite rivalizar em felicidade com o próprio
Zeus. É a opinião dos epicúreos. Ela
é uma conversão, uma reviravolta nos valores, uma
particular lucidez. E em qualquer das escolas ou correntes filosóficas
desse período são determinados exercícios
ou técnicas que devem operar essa transformação
e garantir esses objetivos. Que devem alterar nossa visão
do mundo e, ligado a isso, o nosso próprio ser. Sem os
exercícios isso não é possível. Não
se pode fazer nada sem os exercícios... mas eles nos permitem
tudo vencer.
Quais
são, então, resumidamente, alguns desses exercícios
filosóficos, que constituem aquilo que os gregos chamavam
de askesis? As listas que deles nos deixou Filo de Alexandria,
por exemplo, incluem a prosoché, que era um certo e constante
estar atento ao próprio agir e pensar. A meditação
(meleté) e a fixação de determinados pensamentos
ou apotégmas. A leitura dos famosos tetrapharmakon, que
devia propiciar ou prevenir um certo comportamento. O estudo assistido
e a audição de determinados textos. A filtragem
dos pensamentos (diakrisis), o domínio da linguagem interior,
a contemplação, as recordações, as
experimentações... Tratava-se de um trabalho sobre
si mesmo, sobre os próprios pensamentos, sentimentos e
desejos - com a orientação de outrem, do filósofo.
Um trabalho que alcançava o procedimento no comer, no beber,
no relacionar-se, no amar, etc.
Gaudium
e Laetitia
A
origem de alguns desses exercícios remonta a raízes
hoje altamente estimadas fora dos meios acadêmicos: através
dos pitagóricos, as tradições mágico-religiosas
e xamânicas. Quanto aos seus desenvolvimentos, sua semelhança
com os exercícios espirituais do cristianismo,
particularmente os de Santo Inácio, não é
gratuita. Estes de fato encontram sua fonte na askesis dos filósofos,
principalmente através de autores cristãos como
Justino, Clemente e Orígenes. Mas seu espírito é
aí profundamente modificado. O estilo dos exercícios
filosóficos também varia bastante entre diferentes
escolas nesse período. Em geral, porém, não
precisam ser penosos nem complicados, pois visam exatamente evitar
atribulações e frustrações, e promover
um autêntico estado de graça - o que os romanos chamavam
de gaudium ou laetitia. Na verdade, podem
envolver a conversa, a correspondência, a amizade, o convívio
prazeroso, um atmosfera agradável. E, ao contrário
do que se pode imaginar, muitas vezes recomendam alguma participação
na vida da comunidade e a solidariedade com o gênero humano
- mesmo que possam significar não viver exatamente como
os mais numerosos.
Não
se pense que não estamos falando aqui de verdadeira filosofia
ocidental e de filósofos realmente canônicos,
mas de um pensamento privado da chamada dimensão teórica.
Nada disso. Os epicúreos, por exemplo, desenvolveram um
elaborado estudo da física (que é assunto da tese
de doutorado de Karl Marx). E a contribuição dos
estóicos ao desenvolvimento da lógica é tão
importante quanto a de Aristóteles. Entre os estóicos,
contudo, a lógica deveria contribuir para o discernimento
na própria vida, ajudando a analisar cada situação
em seus elementos. Por sua vez, a física epicúrea
aguçava a imaginação do infinito, provocando
uma mudança total na maneira de ver o universo: à
sua leitura, as muralhas do mundo se abrem, e um prazer
divino se apossa de mim.
De
fato, como admite Michel Foucault, havia uma identidade entre
espiritualidade e filosofia durante toda a Antigüidade Clássica.
O próprio diálogo socrático-platônico
pode ser entendido com um exercício - tendo todo exercício
espiritual, diz Hadot, um caráter dialógico. Sócrates,
Platão e Aristóteles, os nomes mais clássicos
da história da filosofia, também refletiram empenhadamente
sobre o cuidado com a alma, com os desejos e prazeres. Tendo em
vista nossa constituição como sujeitos éticos.
Como o corpo, a alma não pode cumprir adequadamente suas
funções se não se exercita, já advertia
Sócrates.
Nós
é que perdemos de vista como ler os filósofos, depois
que a filosofia, a partir da Idade Média, privada dessa
sua dimensão prática, distanciada do cuidado da
alma e do corpo, foi reduzida a uma simples fornecedora de material
conceitual abstrato. Sob esse aspecto, mesmo emancipada da autoridade
da teologia, boa parte da filosofia atual, seja ela moderna ou
pós-moderna, continuará praticamente medieval e
escolástica...
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