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José Crisóstomo de Souza
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A filosofia no ensino superior [em Portugal]

Desidério Murcho

O objectivo deste artigo é duplo: apresentar um conjunto de características do ensino superior da filosofia que são obstáculos ao desenvolvimento da disciplina, e propor um conjunto de medidas para melhorar o estado de coisas.
Um dos aspectos distintivos da cultura escolar portuguesa no seu todo, e não apenas na filosofia, é uma recusa estranha em admitir o seu atraso óbvio. Ao insistir neste aspecto há até a tendência para olhar com maus olhos quem se atreve a tal heresia. Gostaria que este texto fosse interessante mesmo para quem discorda da minha opinião quanto ao atraso do ensino da filosofia no nosso país. Pois mesmo quem pensa que o ensino da filosofia em Portugal está no melhor dos mundos poderá querer saber por que razão há quem pense que isso não é verdade e que é preciso melhorar muita coisa (ou quase tudo).

Amadorismo
Muitos dos problemas de que sofre o ensino da filosofia em Portugal resultam de contingências históricas. Como disciplina universitária autónoma, a filosofia não tem ainda 100 anos em Portugal. Apesar de eu já ter sido aluno de professores doutorados e licenciados em filosofia, os meus professores foram alunos de professores que não eram licenciados em filosofia — porque não existia tal licenciatura — nem, muitas vezes, doutorados em filosofia.

Quando os primeiros cursos de filosofia foram criados em Portugal, não aconteceu o que teria sido natural, que seria enviar várias pessoas para se doutorarem em filosofia em países com fortes tradições filosóficas. Ao invés, tudo se fez um pouco com a "prata da casa". O resultado é um certo amadorismo e autodidactismo que ainda hoje se faz sentir. Os professores universitários portugueses de filosofia estão afastados dos circuitos internacionais de conferências, revistas e livros. O Departamento de Filosofia da Universidade de Lisboa, por exemplo, raramente vê filósofos franceses, ingleses ou alemães a fazer conferências nas suas instalações, como seria normal; e quando as há, a maior parte dos professores não assistem a essas conferências. (Aparentemente, a regra é a seguinte: cada professor só assiste às conferências que ele próprio organiza.) Os professores universitários portugueses de filosofia não publicam artigos em revistas de circulação internacional com submissão anónima de artigos, salvo raras e honrosas excepções.

Na verdade, o próprio conceito de submissão anónima de artigos é praticamente desconhecido no meio filosófico português — e este é um dos mais importantes instrumentos no que respeita a sistemas que procuram o incremento da qualidade do trabalho dos professores e investigadores. Algum tempo depois da primeira revista portuguesa com submissão anónima de artigos ter surgido em Portugal, a Disputatio, cheguei a receber uma carta amável de um professor português que afirmava o seguinte: «não deixa de ser estranho que o neo-pragmatismo de Rorty ou o paradigma construtivista e autopoiético de Glasersfel, Maturana e Varela, não tenha tido, até hoje, qualquer espaço na Disputatio». Esta atitude é reveladora do desconhecimento do modo como funciona uma revista de filosofia em moldes internacionais, com submissão anónima de artigos. Numa revista como a Disputatio os artigos são submetidos pelos seus autores — não somos nós que convidamos os autores a escrever artigos para nós publicarmos; de modo que se ninguém tomar a iniciativa de submeter artigos sobre aqueles temas e autores, nada podemos fazer. É significativo que um professor possa desconhecer o modo de funcionamento de uma revista com submissão anónima de artigos.

A filosofia, como provavelmente todas as outras áreas do conhecimento, não pode fazer-se sem um contacto estreito com a comunidade internacional e, sobretudo, com o que de melhor se faz na comunidade internacional. Seria como ter uma equipa de atletismo que nunca se apresentasse nas melhores competições internacionais. É a entreajuda e o controlo de erros que resulta do contacto com a melhor comunidade internacional que permite o incremento da qualidade do ensino e da investigação em filosofia. Curiosamente, os professores portugueses de filosofia deviam ter consciência disto, dadas as doutrinas hermenêuticas que a grande maioria aprecia.

Assisti bastas vezes a interpretações de tal modo selvagens dos textos clássicos da filosofia, que só podiam ser o resultado do isolamento interpretativo a que os professores estão sujeitos. Como em qualquer outra área, a dimensão oral e comunicativa da filosofia é fundamental; sem isso, podemos interpretar toda a obra de Kant ou de Popper partindo de pressupostos subtilmente errados, que terão como resultado erros grosseiros. E isso é o que acontece em Portugal, devido ao isolamento da comunidade.

Um dos aspectos em que o isolamento filosófico português mais se faz sentir, produzindo erros gritantes, é a confusão entre noções de base da filosofia e doutrinas substanciais. A confusão é a seguinte: as noções de base têm um valor instrumental para o nosso trabalho como professores e estudantes de filosofia; trata-se de noções independentes de doutrinas filosóficas particulares, noções neutras. É claro que poucas coisas há na filosofia que sejam realmente neutras, que não tenham sido repensadas por um ou outro filósofo, e que não sejam susceptíveis de discussão e crítica. Mas daí não se segue que não haja um conjunto de noções que temos de dar como garantidas para podermos avançar no nosso estudo, ainda que mais tarde possamos rever também essas noções. Mas se começarmos por confundir tudo e apresentarmos doutrinas substanciais altamente discutíveis como se fossem noções de base que não vale a pena discutir, estaremos a viciar todo o nosso estudo futuro, comprometendo definitivamente a qualidade do nosso ensino.

Vejamos um exemplo simples. Leibniz tinha a ideia de que a análise de um conceito consistia em dividi-lo nas suas partes componentes. E Kant tinha a ideia de que uma frase analítica (ele falava, claro, de juízos e não de frases) era aquela na qual o predicado estava contido no sujeito. Ambas estas noções são formas particulares, hoje ultrapassadas, de entender o que é analisar um conceito e do que é uma frase analítica. Transmitir estas ideias como se fossem noções básicas e indiscutíveis é um erro que pode comprometer muito do ensino posterior da filosofia. Por exemplo, com a ideia que Leibniz fazia da análise é muito provável que não se compreenda o Teeteto de Platão. Pois o que nessa obra Platão procura mostrar é que o conhecimento não é susceptível de ser analisado — mas a noção de análise de Leibniz não serve. Temos de compreender que a análise é outra coisa bastante mais precisa do que a metáfora de Leibniz. E, claro, a noção que Kant tinha de frase analítica é também profundamente deficiente e não permite compreender sequer a crítica de Quine à analiticidade.
Claro que alguns professores portugueses de filosofia acharão muito estranho que a crítica de Quine tenha alguma coisa a ver com Kant, ou que a noção de análise de Leibniz tenha alguma coisa a ver com Platão. E é instrutivo ver por que razão eles acharão isto estranho. A explicação, contudo, exige uma nova secção.

Formalismo e relativismo
Numa palavra, o que explica a estranheza de muitos professores portugueses de filosofia à ideia de que a crítica de Quine tenha alguma coisa a ver com Kant ou de que a análise de Leibniz tenha algo a ver com Platão, é aquilo a que podemos chamar «formalismo». O formalismo é o resultado daquilo que em Portugal se pensa constituir o âmago da actividade filosófica: a leitura dos grandes textos clássicos de filosofia. Esta ideia está subtilmente errada e é o que explica a estranheza referida. O modo como os professores portugueses encaram os textos clássicos de filosofia, juntamente com o isolamento referido na secção anterior, tem um resultado desastroso no ensino da filosofia.
A filosofia mantém uma relação especial com a sua história, uma relação diferente da que tem a medicina, por exemplo, ou a física, com as suas histórias. É diferente no seguinte aspecto: muitos dos textos clássicos da filosofia são hoje para nós actuais, ao passo que nenhum ou quase nenhum texto clássico de medicina ou de física é hoje actual para os professores de medicina ou de física. O que há de diferente? Em filosofia, ao contrário do que acontece na medicina ou na física, não temos o tipo de progresso que essas disciplinas conhecem. Isto significa que um argumento de Platão, uma teoria de Kant ou um problema de Hume são ainda hoje para nós actuais, no sentido em que podem não ter sido ultrapassados pelo desenvolvimento posterior da filosofia.
Esta ideia consensual é no entanto entendida por muitos professores portugueses de filosofia de um modo subtilmente errado. Os erros associados são dois. Em primeiro lugar, pensa-se que todos os argumentos, teorias e problemas dos filósofos clássicos são hoje actuais. Isto é falso: muitos deles foram ultrapassados, são erros hoje óbvios. Por exemplo, a filosofia da linguagem de Santo Agostinho está ultrapassada; não tem qualquer interesse excepto o tipo de interesse histórico que as doutrinas médicas erradas do século V também têm. Mas para que um professor saiba se um dado argumento, teoria ou problema que surge num texto clássico de filosofia é ou não ainda actual é preciso que esse professor saiba filosofia; e saber filosofia é saber filosofia contemporânea.

Em segundo lugar, pensa-se que uma vez que a leitura dos textos clássicos da filosofia é importante, então é precisamente por aí que temos de começar. O resultado desta ideia é o seguinte: sem preparação filosófica, o estudante de filosofia, perante um texto de Platão, fica como alguém sem preparação médica perante um texto de medicina do século III a.C.: pouco percebe, e pouco mais pode fazer do que repetir mais ou menos o que lê, sem perceber bem coisa alguma.

É esta situação que dá origem ao formalismo e ao relativismo. Ao formalismo, porque transforma a filosofia numa técnica filológica de comparação e descrição acrítica dos textos dos filósofos. Confunde-se crítica filosófica com crítica filológica. E assim nunca se discutem as ideias, os argumentos e os problemas da filosofia: limitamo-nos a relatar sem perceber bem o que disse Kant ou Hume, mas nunca os discutimos verdadeiramente nem formamos uma opinião crítica sobre o que eles disseram. Daqui resulta, claro, o relativismo: cada filósofo tem a sua filosofia. É por isso que não se compreende que a crítica de Quine à analiticidade tenha algo a ver com Kant, nem que a ideia de análise de Leibniz tenha algo a ver com o Teeteto de Platão. A menos que Quine referisse explicitamente Kant ou que Leibniz referisse explicitamente Platão, nunca o professor se arriscaria a tal. E a menos que Hume dissesse claramente que as relações de ideias são as frases analíticas, jamais o professor diria tal coisa.

O formalismo revela-se claramente na seguinte metodologia de muitos professores portugueses de filosofia: em cada texto que escrevem adoptam a terminologia do filósofo que estão a "comentar", fazendo o mesmo no seu ensino corrente. Isto é um erro metodológico, e relaciona-se de perto com a incapacidade para distinguir as noções de base das noções substanciais. É assim que Leibniz nada parecer ter a ver com o Teeteto, porque nesta obra não se usa o termo «análise». E é assim que Hume nada parece ter a ver com a analiticidade, porque ele nunca usa a palavra «analiticidade» ou a expressão «frase analítica», mas antes a expressão «relações de ideias». A filosofia transforma-se assim numa manipulação meramente sintáctica de palavras e expressões. «Absoluto» tem a ver com Hegel, «Ideias» com Platão, «juízo» com Kant. Mas o que querem realmente dizer todas essas expressões é coisa que nos escapa. O estudante de filosofia aprende a tecer textos com expressões que mal compreende, num exercício fútil completamente formal: é como estar no quarto chinês de Searle. E nesta situação dificilmente podemos discutir filosofia.

Discutir filosofia
O que caracteriza o meio filosófico português, incluindo o ensino, é a ausência de discussão filosófica. E isto é surpreendente, porque sem discussão filosófica não há filosofia. Enquanto continuarmos a dizer o que disse Parménides ou Quine, não estaremos realmente a fazer filosofia; estamos apenas a fazer relatos das opiniões dos filósofos. Relatos que poderão ser melhores ou piores, claro. Mas não têm qualquer interesse, excepto como meio para discutirmos filosofia. O núcleo da filosofia é a discussão livre de ideias, e não a repetição do que disseram os filósofos, como se cada filósofo fosse um Oráculo da Verdade. E é esta atitude acrítica que explica o estertor da filosofia em Portugal e do seu ensino. As consequências que isto tem são perversas e vale a pena determo-nos um pouco nelas.
Pensemos primeiro numa analogia. Imaginemos um clube de atletismo com as seguintes características: 1) toda a gente fala interminavelmente sobre atletismo, mas ninguém corre realmente; 2) ninguém se apresenta em competições internacionais. Que resultados seriam de esperar deste clube? 1) Que as pessoas que gostam realmente de atletismo e que têm talento e vocação para o atletismo acabassem por desistir do clube, pouco depois de se terem feito sócias; 2) que os melhores "atletas" desse clube fossem bastante maus, comparados com os atletas de clubes normais.

Esta analogia ilustra o que acontece com a filosofia em Portugal. No que respeita a 1, muitos dos mais talentosos estudantes desistem dos cursos de filosofia. Visto que no curso de filosofia não se discute realmente filosofia, como seria de esperar, mas se repete apenas as palavras dos filósofos, uma pessoa que tenha gosto pela discussão filosófica, e talento para isso, não tem paciência para repetições bizantinas e acríticas das palavras dos filósofos; o que essa pessoa quer é discutir isso que os filósofos dizem e tentar ver se eles terão razão ou não.
Quanto a 2, os professores de filosofia portugueses, salvo raras e honrosas excepções, não são confrontados com os seus melhores colegas estrangeiros. Nunca defendem as suas ideias nos melhores fóruns internacionais; nunca são avaliados. Em resultado desta situação, por melhores que sejam as suas intenções e por mais atentas que sejam as suas leituras, os professores portugueses de filosofia são incapazes de publicar artigos meramente competentes (para não falar de originalidade e inovação) em revistas com submissão anónima de artigos. Isto é preocupante, mas é o resultado último de um clube que fecha as suas portas e pretende fingir que o atletismo é uma coisa que só nós, portugueses, fazemos bem e que nem vale a pena tentarmos a integração na comunidade internacional.

A partir desta situação, tudo se transforma numa infeliz comédia de enganos. O academismo estéril, a pompa, a gravidade, o latinismo, a citaçãozinha alemã ou grega, o lançar enormes volumes para cima da secretária nas aulas, as bibliografias monstruosas atiradas à cara dos estudantes — tudo isto são marcas de um atraso gritante, de um provincianismo grotesco e de um amadorismo vergonhoso. O terrorismo intelectual, exercido sobre os estudantes, desencoraja os mais talentosos e inteligentes, e estimula os cinzentos que se deixam ficar de boca aberta de pasmo perante tanta erudição, e vão aprendendo a repetir "mantras", dizendo que sim com a cabeça, adquirindo os tiques dos seus "Mestres", à espera de ver chegar a sua hora de cumprir a teatralidade tola do sábio profundo que é capaz de falar de modo a que os seus estudantes não o possam compreender. Este estado de coisas é equivalente a um clube de atletismo que, ao invés de estimular os seus mais talentosos atletas, os afasta rapidamente para dar lugar aos anémicos, aos fracos das pernas e aos que nunca correram realmente, apesar de falarem muito disso e de saberem de cor todos os factos da história do atletismo até ao séc. XIX (mas ignorando tranquilamente a história do atletismo dos últimos 50 anos).

Num clube fechado, claro, há tempo para tudo o que não interessa. Estalam as inimizades, as alianças, o combate pelo poder (ilusório, claro, porque em Portugal não são os professores que mandam nas universidades, mas sim o Estado e a Secretaria), as carreirazinhas. Neste clima fechado, a discussão filosófica não é possível, não fenece porque não chega sequer a acontecer. Isto porque uma condição prévia para a discussão filosófica é o respeito e a disponibilidade para escutar a outra pessoa; sem estas duas características, não pode haver discussão filosófica. A discussão filosófica impõe elevados padrões de comportamento moral e exige uma grande capacidade psicológica de abertura: o tipo de coisas que não estamos dispostos a fazer com "inimigos" que espiamos de soslaio, obstáculos na nossa carreira académica, objectos de pastosos ódios antigos. Não há discussão filosófica em Portugal não apenas porque não há pessoas com a formação filosófica adequada para isso, salvo felizes excepções, mas também porque não há a abertura, a amizade e o respeito para isso.

Repare-se na seguinte situação: como algumas pessoas sabem, o externalismo é a doutrina em filosofia da mente e da linguagem que hoje é mais popular. Todavia, há alguns filósofos que defendem o internalismo. David Papineau é externalista. Gabriel Segal é internalista. Quando saiu o último livro de Segal, Papineau dedicou dois seminários para discutir o livro com os estudantes. Como nós achámos interessante e como mencionámos que gostaríamos de esclarecer alguns pontos com Segal, Papineau falou com ele e organizou-se um pequeno debate entre os dois. Cada um falou durante 20 minutos, defendendo o seu ponto de vista e atacando o ponto de vista do outro. No fim houve perguntas da assistência. O ambiente era alegre, simpático, estimulante; não houve pompa nem circunstância, livros pesados atirados para cima de mesas, citações alemãs e latinismos, ambientes fúnebres e graves. Era apenas mais um dia normal num departamento normal de filosofia — no King’s College London, infelizmente, e não numa universidade portuguesa, onde nunca vi isto acontecer.

É este ambiente de discussão de ideias que temos de procurar cultivar em Portugal. Temos de respeitar as pessoas com as quais discordamos. Os filósofos e professores de tendência analítica têm de respeitar quem faz da hermenêutica e do Ser o objecto fundamental do estudo — e vice-versa. Só com diálogo realmente aberto, alegre e simpático é possível discutir ideias; e só com a discussão de ideias podemos todos melhorar — como professores, como investigadores e como estudantes. Não podemos ter a arrogância de ignorar o trabalho dos nossos colegas; se o fizermos, é óbvio que eles vão ignorar também o nosso e ficaremos todos muito pior: pois quando, num departamento, os colegas ignoram o trabalho uns dos outros, a qualidade decresce e o amadorismo instala-se.

A filosofia vive da discussão livre de ideias. Sócrates discordava dos pré-socráticos, Aristóteles de Platão e Descartes de Aristóteles. Kant discutiu as ideias de Hume e Hegel as de Kant. A filosofia não é religião. Não consiste em repetir o cânone e em procurar encontrar o seu significado mais profundo — tão profundo que não se pode discutir porque nunca é o que parece. A filosofia consiste em discordar, em disputar, em apresentar argumentos, contra-exemplos, refutações. Sem isto, a filosofia fenece, transforma-se numa caricatura infeliz da verdadeira filosofia. Tanto faz que leiamos Quine ou Heidegger; se nos limitarmos a repetir as "mantras" do Ser ou os solilóquios da Indeterminação da Tradução, estaremos a prestar um péssimo serviço à filosofia, estaremos a atraiçoar o seu espírito, estaremos a impedir que os estudantes mais talentosos possam interessar-se por este assunto. E, ao fazer isso, estamos a afastar as possibilidades de Portugal poder dar a sua contribuição para a discussão filosófica internacional.

A filosofia começa com a pergunta "Será que isso é verdade?" Enquanto não fizermos esta pergunta, não estaremos a fazer filosofia. Será que Heidegger tem razão quanto ao problema do Ser? Será que os argumentos de Quine contra a analiticidade são persuasivos? Será que a teoria da referência de Kripke é verdadeira? São estas as perguntas que dão origem à saudável e aberta discussão filosófica. Eu estou inclinado a achar que Heidegger é confuso e que o problema do Ser é um falso problema, formulado de forma insuficientemente clara; estou inclinado a achar que os argumentos de Quine contra a analiticidade estão longe de ser minimamente persuasivos; estou inclinado a achar que a teoria da referência de Kripke está bastante próxima de ser verdadeira. Mas será que tenho razão? Não sou um Deus — posso estar enganado. Só a discussão com os colegas que discordam de mim me poderá fazer alargar a minha compreensão. Só eles me poderão ajudar a compreender o que presentemente não compreendo, só eles me poderão chamar a atenção para aspectos que estou a negligenciar. É para isto que é necessário uma comunidade académica; só juntos podemos controlar os erros uns dos outros. Só juntos podemos ir mais longe. Teremos a coragem de o fazer? Isso é algo que depende inteiramente de cada um de nós.

O desenvolvimento do estudo
Que deveres tem um professor de filosofia? Penso que tem os mesmos deveres que tem um professor de seja o que for:

  1. Tem o dever de ensinar e contribuir para o desenvolvimento do ensino da sua área;
  2. Tem o dever de contribuir para a compreensão pública da sua área; e
  3. Tem também o dever de contribuir para o avanço do conhecimento na sua área.


O que é curioso em Portugal é uma insistência em 3, descurando 1 e 2. Isto é parte da comédia de enganos que já referi. É uma comédia de enganos porque não há realmente ninguém em Portugal que contribua para o avanço da filosofia. Ninguém discute nos livros e artigos que se publicam por esse mundo fora as teorias e argumentos dos professores portugueses de filosofia. Este facto não é de estranhar. A divisão internacional do trabalho intelectual põe quaisquer universidades que não sejam dos países mais poderosos um pouco à margem do desenvolvimento, em qualquer área do conhecimento. Isto é normal e deve ser assumido como um facto porventura infeliz, mas compreensível. O que não é compreensível — e é uma postura de duvidosa moralidade — é a atitude dos professores portugueses, que consiste em agir como se pudessem dar-se ao luxo de só se preocupar com 3.
Isto introduz uma disfunção terrível no sistema de ensino português. Vejamos: é compreensível que uma pessoa como Putnam ou Derrida nunca se tenham realmente preocupado muito com 1 e 2. Tanto um como outro estão em países e em universidades onde a) há outras pessoas que fazem 1 e 2; e b) eles são realmente filósofos originais que são discutidos em todo e mundo e cujas contribuições para o avanço da disciplina são irrecusáveis. O que é grave é que professores portugueses que não obedecem às condições a nem b, se proponham agir como se pertencessem. Este tipo de atitude tem como consequência o seguinte: I) o estado do ensino e da compreensão pública da filosofia é mau; II) em consequência de I, não podem surgir em Portugal filósofos originais porque qualquer estudante português está à partida em desvantagem perante os seus colegas de outros países mais desenvolvidos. É praticamente impossível que um jovem sujeito ao mau ensino da filosofia que temos em Portugal consiga libertar-se dos erros, imprecisões e maus hábitos de trabalho que lhe foram transmitidos nos anos mais importantes da sua formação; consequentemente, é quase impossível que possa tornar-se um filósofo original.
Compreende-se agora que quero eu dizer com "comédia de enganos". Os professores portugueses de filosofia fingem ser o que não são, e não cumprem as suas obrigações modestas mas imprescindíveis para o desenvolvimento do país. Mas como não são o que fingem ser, também não cumprem os deveres que teriam de cumprir se realmente fossem o que fingem — que seria publicar livros e artigos de circulação internacional e fazer conferências um pouco por todo o mundo, divulgando as suas ideias e contribuindo para o avanço da disciplina. O que é curioso é que ninguém poderá jamais defender que um pensador original como Dummett ou Derrida é mais importante para a disciplina do que modestos professores que escrevem bons livros de introdução à disciplina e que ensinam o melhor que podem os seus estudantes, dando-lhes uma preparação robusta que lhes permitirá vir a ser bons professores de filosofia e filósofos originais. Sem os modestos professores competentes de filosofia não existiriam provavelmente filósofos originais, ou existiriam muitos menos.
Uma objecção ao que tenho vindo a dizer é a seguinte: do facto de os professores portugueses de filosofia não fazerem parte da comunidade internacional (publicando artigos e livros de circulação internacional e fazendo conferências um pouco por todo o mundo) não se segue que não façam esse tipo de trabalho a nível nacional. De facto, não se segue. Mas a verdade é que os professores de filosofia portugueses raramente fazem esse trabalho, mesmo em Portugal. Não se compreende que os professores de Coimbra não sejam regularmente convidados para fazer conferências em Lisboa e vice-versa, e o mesmo relativamente a outras universidades do país. Não se compreende que os professores portugueses de filosofia não discutam sequer ideias entre eles, ainda que desprezassem a comunidade internacional. Esta atitude só pode ser um sinal desencorajante da falta de vontade para fazer um trabalho sério, da falta de vontade para discutir ideias abertamente — e sem isso, não há filosofia.

Conclusão
O quadro que tracei é negro. Haverá esperança? Sinceramente, não sei. Mas sei que se cada um de nós cumprir o seu dever no sentido de contribuir para o desenvolvimento do ensino e da compreensão pública da filosofia, tudo poderá melhorar. As coisas ficarão como estão, estagnadas, se insistirmos em dar aulas ininteligíveis e em produzir teses de mestrado e doutoramento de duvidosa qualidade científica, e se insistirmos em escrever artigos e livros para o umbigo.

Cada um de nós, quando se senta para escrever o que quer que seja, deve começar por fazer a si próprio esta pergunta: "Vou escrever para quem? Para estudantes? Para o grande público? Para os meus colegas?" Isto pode evitar que se continue a escrever como tipicamente se escreve em Portugal: textos que só poderiam interessar a estudantes uma vez que não têm valor algum como contribuição original para a disciplina, mas que estão escritos de tal maneira que só quem já sabe filosofia pode compreender o artigo; mas como quem já sabe filosofia não tem qualquer interesse em ler um artigo que lhe diz o que ele já sabe mas de uma maneira rebuscada e bizantina, o resultado final são livros e artigos sem público.

Se há uma lei simples do desenvolvimento cultural é esta: sem êxito comercial, nenhum livro ou revista pode ter êxito cultural. A não ser que sejamos tão pretensiosos que pensemos que estamos a escrever obras que serão descobertas nos séculos vindouros, que serão depois traduzidas para línguas cultas como o francês, o inglês ou o alemão, e que darão origem a estudos, teses, conferências, artigos e livros um pouco por todo o mundo. Mas isto, claro, não passa de mais uma ilusão.