A
filosofia no ensino superior [em Portugal]
Desidério
Murcho
O
objectivo deste artigo é duplo: apresentar um conjunto
de características do ensino superior da filosofia que
são obstáculos ao desenvolvimento da disciplina,
e propor um conjunto de medidas para melhorar o estado de coisas.
Um dos aspectos distintivos da cultura escolar portuguesa no seu
todo, e não apenas na filosofia, é uma recusa estranha
em admitir o seu atraso óbvio. Ao insistir neste aspecto
há até a tendência para olhar com maus olhos
quem se atreve a tal heresia. Gostaria que este texto fosse interessante
mesmo para quem discorda da minha opinião quanto ao atraso
do ensino da filosofia no nosso país. Pois mesmo quem pensa
que o ensino da filosofia em Portugal está no melhor dos
mundos poderá querer saber por que razão há
quem pense que isso não é verdade e que é
preciso melhorar muita coisa (ou quase tudo).
Amadorismo
Muitos dos problemas de que sofre o ensino da filosofia em Portugal
resultam de contingências históricas. Como disciplina
universitária autónoma, a filosofia não tem
ainda 100 anos em Portugal. Apesar de eu já ter sido aluno
de professores doutorados e licenciados em filosofia, os meus
professores foram alunos de professores que não eram licenciados
em filosofia porque não existia tal licenciatura
nem, muitas vezes, doutorados em filosofia.
Quando os primeiros cursos de filosofia foram criados em Portugal,
não aconteceu o que teria sido natural, que seria enviar
várias pessoas para se doutorarem em filosofia em países
com fortes tradições filosóficas. Ao invés,
tudo se fez um pouco com a "prata da casa". O resultado
é um certo amadorismo e autodidactismo que ainda hoje se
faz sentir. Os professores universitários portugueses de
filosofia estão afastados dos circuitos internacionais
de conferências, revistas e livros. O Departamento de Filosofia
da Universidade de Lisboa, por exemplo, raramente vê filósofos
franceses, ingleses ou alemães a fazer conferências
nas suas instalações, como seria normal; e quando
as há, a maior parte dos professores não assistem
a essas conferências. (Aparentemente, a regra é a
seguinte: cada professor só assiste às conferências
que ele próprio organiza.) Os professores universitários
portugueses de filosofia não publicam artigos em revistas
de circulação internacional com submissão
anónima de artigos, salvo raras e honrosas excepções.
Na verdade, o próprio conceito de submissão anónima
de artigos é praticamente desconhecido no meio filosófico
português e este é um dos mais importantes
instrumentos no que respeita a sistemas que procuram o incremento
da qualidade do trabalho dos professores e investigadores. Algum
tempo depois da primeira revista portuguesa com submissão
anónima de artigos ter surgido em Portugal, a Disputatio,
cheguei a receber uma carta amável de um professor português
que afirmava o seguinte: «não deixa de ser estranho
que o neo-pragmatismo de Rorty ou o paradigma construtivista e
autopoiético de Glasersfel, Maturana e Varela, não
tenha tido, até hoje, qualquer espaço na Disputatio».
Esta atitude é reveladora do desconhecimento do modo como
funciona uma revista de filosofia em moldes internacionais, com
submissão anónima de artigos. Numa revista como
a Disputatio os artigos são submetidos pelos seus autores
não somos nós que convidamos os autores a
escrever artigos para nós publicarmos; de modo que se ninguém
tomar a iniciativa de submeter artigos sobre aqueles temas e autores,
nada podemos fazer. É significativo que um professor possa
desconhecer o modo de funcionamento de uma revista com submissão
anónima de artigos.
A filosofia, como provavelmente todas as outras áreas do
conhecimento, não pode fazer-se sem um contacto estreito
com a comunidade internacional e, sobretudo, com o que de melhor
se faz na comunidade internacional. Seria como ter uma equipa
de atletismo que nunca se apresentasse nas melhores competições
internacionais. É a entreajuda e o controlo de erros que
resulta do contacto com a melhor comunidade internacional que
permite o incremento da qualidade do ensino e da investigação
em filosofia. Curiosamente, os professores portugueses de filosofia
deviam ter consciência disto, dadas as doutrinas hermenêuticas
que a grande maioria aprecia.
Assisti bastas vezes a interpretações de tal modo
selvagens dos textos clássicos da filosofia, que só
podiam ser o resultado do isolamento interpretativo a que os professores
estão sujeitos. Como em qualquer outra área, a dimensão
oral e comunicativa da filosofia é fundamental; sem isso,
podemos interpretar toda a obra de Kant ou de Popper partindo
de pressupostos subtilmente errados, que terão como resultado
erros grosseiros. E isso é o que acontece em Portugal,
devido ao isolamento da comunidade.
Um dos aspectos em que o isolamento filosófico português
mais se faz sentir, produzindo erros gritantes, é a confusão
entre noções de base da filosofia e doutrinas substanciais.
A confusão é a seguinte: as noções
de base têm um valor instrumental para o nosso trabalho
como professores e estudantes de filosofia; trata-se de noções
independentes de doutrinas filosóficas particulares, noções
neutras. É claro que poucas coisas há na filosofia
que sejam realmente neutras, que não tenham sido repensadas
por um ou outro filósofo, e que não sejam susceptíveis
de discussão e crítica. Mas daí não
se segue que não haja um conjunto de noções
que temos de dar como garantidas para podermos avançar
no nosso estudo, ainda que mais tarde possamos rever também
essas noções. Mas se começarmos por confundir
tudo e apresentarmos doutrinas substanciais altamente discutíveis
como se fossem noções de base que não vale
a pena discutir, estaremos a viciar todo o nosso estudo futuro,
comprometendo definitivamente a qualidade do nosso ensino.
Vejamos um exemplo simples. Leibniz tinha a ideia de que a análise
de um conceito consistia em dividi-lo nas suas partes componentes.
E Kant tinha a ideia de que uma frase analítica (ele falava,
claro, de juízos e não de frases) era aquela na
qual o predicado estava contido no sujeito. Ambas estas noções
são formas particulares, hoje ultrapassadas, de entender
o que é analisar um conceito e do que é uma frase
analítica. Transmitir estas ideias como se fossem noções
básicas e indiscutíveis é um erro que pode
comprometer muito do ensino posterior da filosofia. Por exemplo,
com a ideia que Leibniz fazia da análise é muito
provável que não se compreenda o Teeteto de Platão.
Pois o que nessa obra Platão procura mostrar é que
o conhecimento não é susceptível de ser analisado
mas a noção de análise de Leibniz
não serve. Temos de compreender que a análise é
outra coisa bastante mais precisa do que a metáfora de
Leibniz. E, claro, a noção que Kant tinha de frase
analítica é também profundamente deficiente
e não permite compreender sequer a crítica de Quine
à analiticidade.
Claro que alguns professores portugueses de filosofia acharão
muito estranho que a crítica de Quine tenha alguma coisa
a ver com Kant, ou que a noção de análise
de Leibniz tenha alguma coisa a ver com Platão. E é
instrutivo ver por que razão eles acharão isto estranho.
A explicação, contudo, exige uma nova secção.
Formalismo e relativismo
Numa palavra, o que explica a estranheza de muitos professores
portugueses de filosofia à ideia de que a crítica
de Quine tenha alguma coisa a ver com Kant ou de que a análise
de Leibniz tenha algo a ver com Platão, é aquilo
a que podemos chamar «formalismo». O formalismo é
o resultado daquilo que em Portugal se pensa constituir o âmago
da actividade filosófica: a leitura dos grandes textos
clássicos de filosofia. Esta ideia está subtilmente
errada e é o que explica a estranheza referida. O modo
como os professores portugueses encaram os textos clássicos
de filosofia, juntamente com o isolamento referido na secção
anterior, tem um resultado desastroso no ensino da filosofia.
A filosofia mantém uma relação especial com
a sua história, uma relação diferente da
que tem a medicina, por exemplo, ou a física, com as suas
histórias. É diferente no seguinte aspecto: muitos
dos textos clássicos da filosofia são hoje para
nós actuais, ao passo que nenhum ou quase nenhum texto
clássico de medicina ou de física é hoje
actual para os professores de medicina ou de física. O
que há de diferente? Em filosofia, ao contrário
do que acontece na medicina ou na física, não temos
o tipo de progresso que essas disciplinas conhecem. Isto significa
que um argumento de Platão, uma teoria de Kant ou um problema
de Hume são ainda hoje para nós actuais, no sentido
em que podem não ter sido ultrapassados pelo desenvolvimento
posterior da filosofia.
Esta ideia consensual é no entanto entendida por muitos
professores portugueses de filosofia de um modo subtilmente errado.
Os erros associados são dois. Em primeiro lugar, pensa-se
que todos os argumentos, teorias e problemas dos filósofos
clássicos são hoje actuais. Isto é falso:
muitos deles foram ultrapassados, são erros hoje óbvios.
Por exemplo, a filosofia da linguagem de Santo Agostinho está
ultrapassada; não tem qualquer interesse excepto o tipo
de interesse histórico que as doutrinas médicas
erradas do século V também têm. Mas para que
um professor saiba se um dado argumento, teoria ou problema que
surge num texto clássico de filosofia é ou não
ainda actual é preciso que esse professor saiba filosofia;
e saber filosofia é saber filosofia contemporânea.
Em segundo lugar, pensa-se que uma vez que a leitura dos textos
clássicos da filosofia é importante, então
é precisamente por aí que temos de começar.
O resultado desta ideia é o seguinte: sem preparação
filosófica, o estudante de filosofia, perante um texto
de Platão, fica como alguém sem preparação
médica perante um texto de medicina do século III
a.C.: pouco percebe, e pouco mais pode fazer do que repetir mais
ou menos o que lê, sem perceber bem coisa alguma.
É esta situação que dá origem ao formalismo
e ao relativismo. Ao formalismo, porque transforma a filosofia
numa técnica filológica de comparação
e descrição acrítica dos textos dos filósofos.
Confunde-se crítica filosófica com crítica
filológica. E assim nunca se discutem as ideias, os argumentos
e os problemas da filosofia: limitamo-nos a relatar sem perceber
bem o que disse Kant ou Hume, mas nunca os discutimos verdadeiramente
nem formamos uma opinião crítica sobre o que eles
disseram. Daqui resulta, claro, o relativismo: cada filósofo
tem a sua filosofia. É por isso que não se compreende
que a crítica de Quine à analiticidade tenha algo
a ver com Kant, nem que a ideia de análise de Leibniz tenha
algo a ver com o Teeteto de Platão. A menos que Quine referisse
explicitamente Kant ou que Leibniz referisse explicitamente Platão,
nunca o professor se arriscaria a tal. E a menos que Hume dissesse
claramente que as relações de ideias são
as frases analíticas, jamais o professor diria tal coisa.
O formalismo revela-se claramente na seguinte metodologia de muitos
professores portugueses de filosofia: em cada texto que escrevem
adoptam a terminologia do filósofo que estão a "comentar",
fazendo o mesmo no seu ensino corrente. Isto é um erro
metodológico, e relaciona-se de perto com a incapacidade
para distinguir as noções de base das noções
substanciais. É assim que Leibniz nada parecer ter a ver
com o Teeteto, porque nesta obra não se usa o termo «análise».
E é assim que Hume nada parece ter a ver com a analiticidade,
porque ele nunca usa a palavra «analiticidade» ou
a expressão «frase analítica», mas antes
a expressão «relações de ideias».
A filosofia transforma-se assim numa manipulação
meramente sintáctica de palavras e expressões. «Absoluto»
tem a ver com Hegel, «Ideias» com Platão, «juízo»
com Kant. Mas o que querem realmente dizer todas essas expressões
é coisa que nos escapa. O estudante de filosofia aprende
a tecer textos com expressões que mal compreende, num exercício
fútil completamente formal: é como estar no quarto
chinês de Searle. E nesta situação dificilmente
podemos discutir filosofia.
Discutir filosofia
O que caracteriza o meio filosófico português, incluindo
o ensino, é a ausência de discussão filosófica.
E isto é surpreendente, porque sem discussão filosófica
não há filosofia. Enquanto continuarmos a dizer
o que disse Parménides ou Quine, não estaremos realmente
a fazer filosofia; estamos apenas a fazer relatos das opiniões
dos filósofos. Relatos que poderão ser melhores
ou piores, claro. Mas não têm qualquer interesse,
excepto como meio para discutirmos filosofia. O núcleo
da filosofia é a discussão livre de ideias, e não
a repetição do que disseram os filósofos,
como se cada filósofo fosse um Oráculo da Verdade.
E é esta atitude acrítica que explica o estertor
da filosofia em Portugal e do seu ensino. As consequências
que isto tem são perversas e vale a pena determo-nos um
pouco nelas.
Pensemos primeiro numa analogia. Imaginemos um clube de atletismo
com as seguintes características: 1) toda a gente fala
interminavelmente sobre atletismo, mas ninguém corre realmente;
2) ninguém se apresenta em competições internacionais.
Que resultados seriam de esperar deste clube? 1) Que as pessoas
que gostam realmente de atletismo e que têm talento e vocação
para o atletismo acabassem por desistir do clube, pouco depois
de se terem feito sócias; 2) que os melhores "atletas"
desse clube fossem bastante maus, comparados com os atletas de
clubes normais.
Esta analogia ilustra o que acontece com a filosofia em Portugal.
No que respeita a 1, muitos dos mais talentosos estudantes desistem
dos cursos de filosofia. Visto que no curso de filosofia não
se discute realmente filosofia, como seria de esperar, mas se
repete apenas as palavras dos filósofos, uma pessoa que
tenha gosto pela discussão filosófica, e talento
para isso, não tem paciência para repetições
bizantinas e acríticas das palavras dos filósofos;
o que essa pessoa quer é discutir isso que os filósofos
dizem e tentar ver se eles terão razão ou não.
Quanto a 2, os professores de filosofia portugueses, salvo raras
e honrosas excepções, não são confrontados
com os seus melhores colegas estrangeiros. Nunca defendem as suas
ideias nos melhores fóruns internacionais; nunca são
avaliados. Em resultado desta situação, por melhores
que sejam as suas intenções e por mais atentas que
sejam as suas leituras, os professores portugueses de filosofia
são incapazes de publicar artigos meramente competentes
(para não falar de originalidade e inovação)
em revistas com submissão anónima de artigos. Isto
é preocupante, mas é o resultado último de
um clube que fecha as suas portas e pretende fingir que o atletismo
é uma coisa que só nós, portugueses, fazemos
bem e que nem vale a pena tentarmos a integração
na comunidade internacional.
A partir desta situação, tudo se transforma numa
infeliz comédia de enganos. O academismo estéril,
a pompa, a gravidade, o latinismo, a citaçãozinha
alemã ou grega, o lançar enormes volumes para cima
da secretária nas aulas, as bibliografias monstruosas atiradas
à cara dos estudantes tudo isto são marcas
de um atraso gritante, de um provincianismo grotesco e de um amadorismo
vergonhoso. O terrorismo intelectual, exercido sobre os estudantes,
desencoraja os mais talentosos e inteligentes, e estimula os cinzentos
que se deixam ficar de boca aberta de pasmo perante tanta erudição,
e vão aprendendo a repetir "mantras", dizendo
que sim com a cabeça, adquirindo os tiques dos seus "Mestres",
à espera de ver chegar a sua hora de cumprir a teatralidade
tola do sábio profundo que é capaz de falar de modo
a que os seus estudantes não o possam compreender. Este
estado de coisas é equivalente a um clube de atletismo
que, ao invés de estimular os seus mais talentosos atletas,
os afasta rapidamente para dar lugar aos anémicos, aos
fracos das pernas e aos que nunca correram realmente, apesar de
falarem muito disso e de saberem de cor todos os factos da história
do atletismo até ao séc. XIX (mas ignorando tranquilamente
a história do atletismo dos últimos 50 anos).
Num clube fechado, claro, há tempo para tudo o que não
interessa. Estalam as inimizades, as alianças, o combate
pelo poder (ilusório, claro, porque em Portugal não
são os professores que mandam nas universidades, mas sim
o Estado e a Secretaria), as carreirazinhas. Neste clima fechado,
a discussão filosófica não é possível,
não fenece porque não chega sequer a acontecer.
Isto porque uma condição prévia para a discussão
filosófica é o respeito e a disponibilidade para
escutar a outra pessoa; sem estas duas características,
não pode haver discussão filosófica. A discussão
filosófica impõe elevados padrões de comportamento
moral e exige uma grande capacidade psicológica de abertura:
o tipo de coisas que não estamos dispostos a fazer com
"inimigos" que espiamos de soslaio, obstáculos
na nossa carreira académica, objectos de pastosos ódios
antigos. Não há discussão filosófica
em Portugal não apenas porque não há pessoas
com a formação filosófica adequada para isso,
salvo felizes excepções, mas também porque
não há a abertura, a amizade e o respeito para isso.
Repare-se na seguinte situação: como algumas pessoas
sabem, o externalismo é a doutrina em filosofia da mente
e da linguagem que hoje é mais popular. Todavia, há
alguns filósofos que defendem o internalismo. David Papineau
é externalista. Gabriel Segal é internalista. Quando
saiu o último livro de Segal, Papineau dedicou dois seminários
para discutir o livro com os estudantes. Como nós achámos
interessante e como mencionámos que gostaríamos
de esclarecer alguns pontos com Segal, Papineau falou com ele
e organizou-se um pequeno debate entre os dois. Cada um falou
durante 20 minutos, defendendo o seu ponto de vista e atacando
o ponto de vista do outro. No fim houve perguntas da assistência.
O ambiente era alegre, simpático, estimulante; não
houve pompa nem circunstância, livros pesados atirados para
cima de mesas, citações alemãs e latinismos,
ambientes fúnebres e graves. Era apenas mais um dia normal
num departamento normal de filosofia no Kings College
London, infelizmente, e não numa universidade portuguesa,
onde nunca vi isto acontecer.
É este ambiente de discussão de ideias que temos
de procurar cultivar em Portugal. Temos de respeitar as pessoas
com as quais discordamos. Os filósofos e professores de
tendência analítica têm de respeitar quem faz
da hermenêutica e do Ser o objecto fundamental do estudo
e vice-versa. Só com diálogo realmente aberto,
alegre e simpático é possível discutir ideias;
e só com a discussão de ideias podemos todos melhorar
como professores, como investigadores e como estudantes.
Não podemos ter a arrogância de ignorar o trabalho
dos nossos colegas; se o fizermos, é óbvio que eles
vão ignorar também o nosso e ficaremos todos muito
pior: pois quando, num departamento, os colegas ignoram o trabalho
uns dos outros, a qualidade decresce e o amadorismo instala-se.
A filosofia vive da discussão livre de ideias. Sócrates
discordava dos pré-socráticos, Aristóteles
de Platão e Descartes de Aristóteles. Kant discutiu
as ideias de Hume e Hegel as de Kant. A filosofia não é
religião. Não consiste em repetir o cânone
e em procurar encontrar o seu significado mais profundo
tão profundo que não se pode discutir porque nunca
é o que parece. A filosofia consiste em discordar, em disputar,
em apresentar argumentos, contra-exemplos, refutações.
Sem isto, a filosofia fenece, transforma-se numa caricatura infeliz
da verdadeira filosofia. Tanto faz que leiamos Quine ou Heidegger;
se nos limitarmos a repetir as "mantras" do Ser ou os
solilóquios da Indeterminação da Tradução,
estaremos a prestar um péssimo serviço à
filosofia, estaremos a atraiçoar o seu espírito,
estaremos a impedir que os estudantes mais talentosos possam interessar-se
por este assunto. E, ao fazer isso, estamos a afastar as possibilidades
de Portugal poder dar a sua contribuição para a
discussão filosófica internacional.
A filosofia começa com a pergunta "Será que
isso é verdade?" Enquanto não fizermos esta
pergunta, não estaremos a fazer filosofia. Será
que Heidegger tem razão quanto ao problema do Ser? Será
que os argumentos de Quine contra a analiticidade são persuasivos?
Será que a teoria da referência de Kripke é
verdadeira? São estas as perguntas que dão origem
à saudável e aberta discussão filosófica.
Eu estou inclinado a achar que Heidegger é confuso e que
o problema do Ser é um falso problema, formulado de forma
insuficientemente clara; estou inclinado a achar que os argumentos
de Quine contra a analiticidade estão longe de ser minimamente
persuasivos; estou inclinado a achar que a teoria da referência
de Kripke está bastante próxima de ser verdadeira.
Mas será que tenho razão? Não sou um Deus
posso estar enganado. Só a discussão com
os colegas que discordam de mim me poderá fazer alargar
a minha compreensão. Só eles me poderão ajudar
a compreender o que presentemente não compreendo, só
eles me poderão chamar a atenção para aspectos
que estou a negligenciar. É para isto que é necessário
uma comunidade académica; só juntos podemos controlar
os erros uns dos outros. Só juntos podemos ir mais longe.
Teremos a coragem de o fazer? Isso é algo que depende inteiramente
de cada um de nós.
O desenvolvimento do estudo
Que deveres tem um professor de filosofia? Penso que tem os mesmos
deveres que tem um professor de seja o que for:
-
Tem o dever de ensinar e contribuir para o desenvolvimento do
ensino da sua área;
-
Tem o dever de contribuir para a compreensão pública
da sua área; e
-
Tem também o dever de contribuir para o avanço
do conhecimento na sua área.
O que é curioso em Portugal é uma insistência
em 3, descurando 1 e 2. Isto é parte da comédia
de enganos que já referi. É uma comédia de
enganos porque não há realmente ninguém em
Portugal que contribua para o avanço da filosofia. Ninguém
discute nos livros e artigos que se publicam por esse mundo fora
as teorias e argumentos dos professores portugueses de filosofia.
Este facto não é de estranhar. A divisão
internacional do trabalho intelectual põe quaisquer universidades
que não sejam dos países mais poderosos um pouco
à margem do desenvolvimento, em qualquer área do
conhecimento. Isto é normal e deve ser assumido como um
facto porventura infeliz, mas compreensível. O que não
é compreensível e é uma postura de
duvidosa moralidade é a atitude dos professores
portugueses, que consiste em agir como se pudessem dar-se ao luxo
de só se preocupar com 3.
Isto introduz uma disfunção terrível no sistema
de ensino português. Vejamos: é compreensível
que uma pessoa como Putnam ou Derrida nunca se tenham realmente
preocupado muito com 1 e 2. Tanto um como outro estão em
países e em universidades onde a) há outras pessoas
que fazem 1 e 2; e b) eles são realmente filósofos
originais que são discutidos em todo e mundo e cujas contribuições
para o avanço da disciplina são irrecusáveis.
O que é grave é que professores portugueses que
não obedecem às condições a nem b,
se proponham agir como se pertencessem. Este tipo de atitude tem
como consequência o seguinte: I) o estado do ensino e da
compreensão pública da filosofia é mau; II)
em consequência de I, não podem surgir em Portugal
filósofos originais porque qualquer estudante português
está à partida em desvantagem perante os seus colegas
de outros países mais desenvolvidos. É praticamente
impossível que um jovem sujeito ao mau ensino da filosofia
que temos em Portugal consiga libertar-se dos erros, imprecisões
e maus hábitos de trabalho que lhe foram transmitidos nos
anos mais importantes da sua formação; consequentemente,
é quase impossível que possa tornar-se um filósofo
original.
Compreende-se agora que quero eu dizer com "comédia
de enganos". Os professores portugueses de filosofia fingem
ser o que não são, e não cumprem as suas
obrigações modestas mas imprescindíveis para
o desenvolvimento do país. Mas como não são
o que fingem ser, também não cumprem os deveres
que teriam de cumprir se realmente fossem o que fingem
que seria publicar livros e artigos de circulação
internacional e fazer conferências um pouco por todo o mundo,
divulgando as suas ideias e contribuindo para o avanço
da disciplina. O que é curioso é que ninguém
poderá jamais defender que um pensador original como Dummett
ou Derrida é mais importante para a disciplina do que modestos
professores que escrevem bons livros de introdução
à disciplina e que ensinam o melhor que podem os seus estudantes,
dando-lhes uma preparação robusta que lhes permitirá
vir a ser bons professores de filosofia e filósofos originais.
Sem os modestos professores competentes de filosofia não
existiriam provavelmente filósofos originais, ou existiriam
muitos menos.
Uma objecção ao que tenho vindo a dizer é
a seguinte: do facto de os professores portugueses de filosofia
não fazerem parte da comunidade internacional (publicando
artigos e livros de circulação internacional e fazendo
conferências um pouco por todo o mundo) não se segue
que não façam esse tipo de trabalho a nível
nacional. De facto, não se segue. Mas a verdade é
que os professores de filosofia portugueses raramente fazem esse
trabalho, mesmo em Portugal. Não se compreende que os professores
de Coimbra não sejam regularmente convidados para fazer
conferências em Lisboa e vice-versa, e o mesmo relativamente
a outras universidades do país. Não se compreende
que os professores portugueses de filosofia não discutam
sequer ideias entre eles, ainda que desprezassem a comunidade
internacional. Esta atitude só pode ser um sinal desencorajante
da falta de vontade para fazer um trabalho sério, da falta
de vontade para discutir ideias abertamente e sem isso,
não há filosofia.
Conclusão
O quadro que tracei é negro. Haverá esperança?
Sinceramente, não sei. Mas sei que se cada um de nós
cumprir o seu dever no sentido de contribuir para o desenvolvimento
do ensino e da compreensão pública da filosofia,
tudo poderá melhorar. As coisas ficarão como estão,
estagnadas, se insistirmos em dar aulas ininteligíveis
e em produzir teses de mestrado e doutoramento de duvidosa qualidade
científica, e se insistirmos em escrever artigos e livros
para o umbigo.
Cada um de nós, quando se senta para escrever o que quer
que seja, deve começar por fazer a si próprio esta
pergunta: "Vou escrever para quem? Para estudantes? Para
o grande público? Para os meus colegas?" Isto pode
evitar que se continue a escrever como tipicamente se escreve
em Portugal: textos que só poderiam interessar a estudantes
uma vez que não têm valor algum como contribuição
original para a disciplina, mas que estão escritos de tal
maneira que só quem já sabe filosofia pode compreender
o artigo; mas como quem já sabe filosofia não tem
qualquer interesse em ler um artigo que lhe diz o que ele já
sabe mas de uma maneira rebuscada e bizantina, o resultado final
são livros e artigos sem público.
Se há uma lei simples do desenvolvimento cultural é
esta: sem êxito comercial, nenhum livro ou revista pode
ter êxito cultural. A não ser que sejamos tão
pretensiosos que pensemos que estamos a escrever obras que serão
descobertas nos séculos vindouros, que serão depois
traduzidas para línguas cultas como o francês, o
inglês ou o alemão, e que darão origem a estudos,
teses, conferências, artigos e livros um pouco por todo
o mundo. Mas isto, claro, não passa de mais uma ilusão.
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