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José Crisóstomo de Souza
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FILOSOFIA COMO “CUIDADO DE SI”:
O PARADIGMA TERAPÊUTICO DA FILOSOFIA ANTIGA

José Crisóstomo de Souza


“Esculpir a própria estátua”.
Plotino


Epimeleia heauton, Cura sui

“Cuidar de si” parece ser a última coisa que a filosofia poderia propor como máxima de comportamento. Aparentemente é o que todo mundo já faz, deixando ao Criador a tarefa de cuidar de todos nós. Pensar primeiro e só em si mesmo (o famoso “levar vantagem”) é o que dizem estar mais na moda - apenas um pouco menos do que o lamentar-se disso. No sentido de “cultivar-se”, porém, cuidar de si seria talvez uma idéia mais aceitável. Afinal de contas, cultura é - ou era - um valor considerado recomendável para todos os seres humanos, e ser culto significa exatamente ser cultivado. Mas talvez nesse cultivo também espreite, senão o vulgar egoísmo, algo pelo menos tão ruim: a vaidade e o narcisismo do auto-embelezamento. Etimologicamente, “cultivar-se” está ali pertinho de “cultuar-se”. A cultura da erudição vazia e do falar empolado era justamente conhecida como “cultura ornamental”, enfeite; bem longe de uma verdadeira transformação de si. É, no entanto, a tendência contemporânea para o cultivo (e culto) do corpo, o interesse pelo trabalho sobre si através de terapias e práticas semelhantes, ou ainda o sucesso de toda uma literatura supostamente voltada para o cuidado do eu, que melhor exibem essa generalizada preocupação consigo mesmo, senão como pura fixação sobre si, pelo menos como relativa indiferença pelos destinos do mundo.

Não obstante isso, “cuidado de si” é a melhor expressão para denominar a prática que os filósofos gregos recomendavam como epimeleia heauton e os romanos como cura sui. Prática que representa o elemento mais interessante da preocupação ética da Antigüidade Clássica. Sócrates se dizia enviado pelos deuses apenas para lembrar aos homens que eles deveriam cuidar de si. “Zeus não somente te criou como também te entregou somente a ti”, acrescentava mais tarde Epictetus, apontando para a dupla dimensão, de privilégio e dever, que cercava aquele empenho. Com efeito, ao contrário do que se poderia pensar, o cuidado ou cultivo de si recomendado pelos filósofos envolvia uma boa dose de austeridade, e o desenvolvimento de uma virtude essencial, hoje em desuso, a temperança. Fundamentalmente, tratava-se de trabalhar no sentido de submeter os desejos e libertar-se das paixões - entendidas como doença (pathos) capaz de perturbar profundamente a alma. E isso envolvia usar dos prazeres com moderação e discernimento, seguindo certos preceitos sobre o beber, o comer, o amor físico, etc. O conjunto dessas práticas, que se estendiam a outras áreas da existência (incluindo a convivência, a família, o descanso), constituía-se numa admirável “arte da vida”, praticada sob a orientação de um mestre ou amigo filosoficamente mais experiente, entre os elementos da classe privilegiada de Grécia e de Roma.


Chresis Aprodision

Reflexão, vigilância, moderação, continência, provações, silêncio... - um aspecto que chama atenção nessa ética do cuidado de si é que seu rigor apesar de tudo não se relaciona necessariamente com uma negação do prazer, nem do mundo, nem de si mesmo. Embora geralmente divida os prazeres entre inferiores e superiores, e comporte uma grande desconfiança com relação aos primeiros, essa ética não propõe o sacrifício como um valor, mas convida ao que seria uma maneira mais plena e mais bela de ser. Para Sócrates, cuja vida e pensamento representam a inspiração maior desse ideal, “só os temperantes são capazes de escolher as coisas melhores”, e “a temperança é a única que nos faz experimentar um prazer digno de memória”.

Do mesmo modo, a concepção aristotélica da virtude, supondo o domínio sobre os desejos, aceita contudo a sua presença e mesmo a sua vivacidade. Aristipo, fundador da escola cirenaica, então, não via problema algum em “recorrer aos prazeres”, mas apenas em “deixar-se vencer por eles”. Daí a expressão “uso dos prazeres” (chresis aphrodision), própria dessa tradição, que implicava em disciplina, discernimento e (bom) gosto, com relação ao quanto, quando e como. Sêneca, por exemplo, considerando sua participação nas festividades saturnais romanas, onde tudo era permitido, entendia que “afastar-se constitui prova de comedimento, mas fazer as mesmas coisas, de outra maneira, é agir com maior força”. Antifo expressa bem a tensão aí assumida quando diz que “não é virtuoso nem sábio aquele que não desejou o feio e o mal, nem deles se aproximou, pois nesse caso não há nada sobre o qual tenha triunfado”.

Aqui temos então a oportunidade de observar a distinção, proposta por Michel Foucault, entre, de um lado, as morais “orientadas para um código”, que se ocupam principalmente com listar coisas proibidas (e correspondentes castigos). E, de outro, aquelas que se caracterizam em vez disso por realçar uma relação do indivíduo consigo mesmo e o trabalho sobre si próprio. A ética de que estamos tratando aqui está incluída neste segundo caso, compreendendo uma série de práticas através das quais o indivíduo se constitui a si mesmo como admirável sujeito moral, “esculpindo a própria estátua”. Mais do que tal ou qual ação particular, o excesso e a submissão aos prazeres representam aquilo que a ética grego-romana dos cuidados de si procurava atentamente prevenir. A virtude da temperança representava a capacidade de seguir a razão (o logos) no terreno dos apetites, pois o excesso ameaçaria a saúde do corpo e o equilíbrio da alma. A continência ou domínio de si, de outra parte, significava o poder de não se submeter aos desejos - numa luta onde, segundo Platão, a vitória só era alcançada através da intervenção conjunta da razão, do exercício e da arte.


Virtude e Ars Vitae (Techné Biou)

A esse respeito, Foucault entende que o indivíduo continente poderia até se permitir experimentar outros prazeres que não aqueles conformes à razão, apenas sem se deixar levar por eles. De modo particularmente severo, Platão representava os desejos como forças hostis a serem dobradas, elementos bárbaros dispostos à sedição e à revolta, dentro do indivíduo. E, tal como Aristóteles depois dele, associava a virtude e o domínio de si à verdadeira capacidade para governar. O candidato a governante deveria primeiro desenvolver uma autoridade sobre si mesmo - sem o que não poderia ser respeitado nem obedecido pelos outros. Os “intemperantes”, ao contrário, cabiam naturalmente na posição de escravos... ou tiranos. Na Ciropédia, Xenofonte refere-se, como exemplo de excelência, à corte de Ciro, o Grande, onde o comportamento comedido dos superiores espontaneamente “criava entre os inferiores um sentido exato de sua posição”. Já o escravo não podia encontrar em si mesmo a origem de sua temperança, mas apenas no indivíduo em que o “princípio divino” comandava. Mesmo assim, a relação consigo próprio implicada e desenvolvida nessa ética do cultivo de si não era apenas de tensão e luta permanente, como enfatizava Platão, mas também de “posse” e de “fruição”. Em particular no período pós-socrático, helenístico, as “práticas de si” deviam conduzir ao bem da “conversão a si” - superadas dependências e sujeições a que os seres humanos estão normalmente amarrados. Uma relação em que, afastado das preocupações com o exterior, o indivíduo encontrava em si mesmo - ou, antes, na melhor parte de si mesmo - uma serena satisfação.

Eis, então, o que se pode chamar de uma “ética de si”. Uma atitude moral que de certo modo encontra sua razão de ser na pessoa do próprio agente. Um “com-portar-se” e um “dar-se ao respeito” - como ainda dizemos. Que começa pelo respeitar-se a si mesmo em sua natureza - de aristocrata, ou simplesmente de ser racional talhado para a liberdade. Uma moral, além disso, que combina critérios éticos e estéticos de comportamento. Ainda sobre a corte de Ciro, Xenofonte conta que, “vendo-os, dir-se-ia que tomavam a beleza por modelo”. Uma “estética da existência”, portanto, na qual se encontrava fundamento para repudiar o desregramento, o abuso, a violência, a fraqueza e o vício.

Uma observação de Sócrates expressa bem a articulação dessa ética do cuidado de si, não apenas com a liberdade do ser humano, mas também com a bondade e a justiça: “Aquele que se deixa dominar pelos prazeres do corpo... torna-se incapaz de praticar o bem, e não é um homem livre”. A dimensão estética da virtude aparece igualmente e de várias maneiras na fala de Sócrates: “A virtude consiste numa beleza de arranjo da alma”, diz ele; “a virtude e a beleza de uma coisa estão ambas no arranjo que corresponde à sua própria natureza”. A temperança mesma é definida como uma espécie de ordem harmoniosa introduzida na vida de quem a cultiva - agradável e admirável aos olhos dos outros.

Estética da Existência

É característica do pensamento grego a vinculação entre beleza e virtude, esta última associada a força e coragem, mais do que a uma renúncia de si. Mas nós também ainda lhe prestamos reconhecimento nas expressões “bonita ação”, “gesto bonito”, “bela atitude”. Foucault, historiador e admirador da ética do cuidado de si, levanta a observação crítica de que o indivíduo moderno em geral se preocupa com o aspecto da luminária de sua sala, mas não mostra o mesmo interesse pela beleza de sua própria existência. O cuidado de si e a preocupação estética agora na moda - principalmente entre os mais jovens - raramente chegam até aí. Apesar disso, será que o indivíduo contemporâneo, desgarrado de todo apelo ético tradicional, poderia encontrar agora alguma inspiração na moral estetizante, grego-romana, do cuidado de si?

É claro que, antes de propor um tal modelo, seria bom lembrar de que se tratava freqüentemente de uma ética para indivíduos ricos do sexo masculino - aristocrática e machista. Sua dimensão estética, por outro lado, era exageradamente “apolínea” - comportando uma insistência unilateral sobre o equilíbrio, a medida, o comedimento, e repudiando todo arrebatamento, excesso ou paixão. Mais do que isso, algumas de suas correntes transformavam o cuidado de si numa obsessão pela vigilância, pelo controle e pela censura permanentes de si mesmo. A idéia de um prazer sempre regrado, “sem desejo nem perturbação”, ou, principalmente, a de um “desligamento” que devia chegar à apatia (apatheia), não me parecem capazes de seduzir o espírito e o gosto contemporâneos - para dizer o menos. Quanto ao seu fundamento, a ética grego-romana do cuidado de si oferecia dogmaticamente, como guia e medida do comportamento e dos desejos humanos, a “natureza” e a “razão” universal. Deixando na prática muito pouco espaço para a individualidade, o gosto, o estilo enfim - o que parece também estar em contradição com o espírito do nosso tempo. Mais do que viver e moldar a própria individualidade segundo um gosto e estilo próprios, tratava-se, de um modo geral, de elevar-se através dos cuidados de si, à universalidade. A “própria estátua” tinha, afinal, um modelo único e genérico, dado e pré-existente.

Embora Foucault entenda, equivocadamente, que naquela época a preocupação central da filosofia revolvia em torno do eu pessoal, tratava-se na verdade de buscar o “eu verdadeiro” na razão universal (logos) no homem. No que se refere à alma (psyche), tratava-se antes de um objeto interior, mais do que de um eu-sujeito, em sentido moderno e contemporâneo. E, do mesmo modo que esse eu não se encontrava aí contemplado satisfatoriamente, talvez também “o outro”, “o próximo”, não encontrasse aí seu verdadeiro espaço. É provável que a ética grego-romana do cuidado de si precise ainda de ser rearticulada sobre o terreno de uma outra perspectiva filosófica - diferente, por exemplo, do estoicismo ou do epicurismo - antes que possa representar uma inspiração viável e válida para o nosso tempo. O melhor dessa inspiração, porém, parece até que já orientava o cuidado conosco - de nossas mães. Quando, no esforço por transformar a pedra bruta em estátua, repetiam a todo momento: Toma estilo, menino!, e juízo também, é claro!