Hegel
e o Fim da História no Liberalismo
(texto jornalístico)
José
Crisóstomo de Souza
A
idéia de que a história possa ter chegado a um fim
parecerá sem dúvida intrigante, salvo para quem
esteja a par de certas discussões filosóficas que
se passam num âmbito mais restrito. Enquanto em outros terrenos
sempre se espera que toda história (ou estória)
se acabe, a maioria de nós se acostumou a imaginar que
a história da humanidade deve prosseguir indefinidamente,
como tem sucedido até aqui.
A menos que se esteja falando do fim do mundo, com
que tantas pessoas, cada vez mais alarmadas, gostam hoje de especular,
mesmo depois de o holocausto nuclear ter-se tornado menos provável.
Afinal de contas, a idéia de uma consumação
dos tempos faz parte da concepção religiosa
dominante no Ocidente (o cristianismo) embora atualmente
um tanto removida do primeiro plano da doutrina. Mas, de qualquer
modo e indubitavelmente, nada disso parece ter-se passado, bastando
olhar pela janela, ou pela tevê, para constatar que o mundo
continua aí, tal e qual, e que, com a guerra no Iraque
e tudo mais, nada de menos trivial parece ter ocorrido. Para nós,
apenas uma ameaça de crise depois da outra: nem fim do
mundo, nem consumação dos tempos.
E, contudo, o debate sobre se a história acabou ameaçou
tornar-se a discussão do fim do século (ou milênio),
até no Brasil, ao menos, como advertiria Caetano Veloso,
para o suplemento cultural dos nossos maiores jornais diários.
Pois, com efeito, aquele que há alguns anos anunciou aos
meios de comunicação o fim da história, o
jovem cientista político norte-americano Francis Fukuyama,
chegou a visitar o Brasil para discutir precisamente esse tema
(e temas menos especulativos, mas que têm esse como pano
de fundo), a convite da Fundação Getúlio
Vargas e sob o patrocínio de 30 grandes empresas. Deu até
no Jornal Nacional. Isso depois de seu famoso artigo, O
Fim da História, ter sido traduzido, publicado e
debatido nos quatro cantos do mundo literalmente.
Muito simplificadamente, a tese de Fukuyama, para o leitor que
ainda não sabe, é que, com a derrocada do socialismo
dominante em meia banda do mundo (algo de menos trivial
de fato aconteceu em nossos dias!), a democracia liberal e a economia
de mercado, malgrado todas as suas imperfeições,
não têm mais pela frente nenhum rival sério,
real ou concebível, candidato a tomar seu lugar, devendo
enfrentar agora somente resistências periféricas
e não desafios globais. No que diz respeito à organização
da sociedade, não surgirá mais uma outra coisa,
sugere Fukuyama. Com o que se acabaram os grandes embates ideológicos
e as grandes revoluções (ao menos para o mundo que
conta, o dos países capazes de dar um rumo à história),
e os problemas agora serão essencialmente técnicos.
Depois de escalada a escarpa, caminhamos ainda, mas no platô,
no plano, sem maiores sobressaltos. E viveram (ainda) felizes
para sempre, diz o fim da narrativa, mostrando que a vida
continua, mas que a história interessante mesmo
já acabou. Quanto aos felizes, Fukuyama diria
justamente isso, porém referindo-se a uma satisfação
ameaçada pela monotonia e pelo tédio como,
se pensarmos bem, a satisfação do reino feliz,
depois de dado por vencido o dragão ou para sempre derrotado
o rei malvado.
Francis Fukuyama refere-se expressamente ao filósofo alemão
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), à sua filosofia
da história, como a matriz de suas opiniões sobre
nosso tempo. Hegel teria oferecido a articulação
conceitual mais ampla para a sua compreensão de que
estaríamos testemunhando agora, não apenas
o fim da guerra fria ou a passagem de um período particular
da história do pós-guerra, mas o fim da história
como tal (...), a universalização da democracia
liberal ocidental como a forma final de governo entre os homens.
Com efeito, o pensador alemão teria entendido que a derrota
das forças prussianas, diante de Napoleão, representava,
já em 1806, a vitória definitiva (ainda que um tanto
embrionária) dos ideais da Revolução Francesa.
Os quais consumavam a idéia de Liberdade, perseguida pela
humanidade, tortuosamente e às apalpadelas, através
de toda história, como seu objetivo final até
virar estátua na entrada do porto de Nova Iorque. Com relação
a isso, Marx para quem essa liberdade era muito enganosa
apareceria,m então, nos nossos dias, apenas como
um demorado desvio de mais de um século... que termina
na Praça da Paz Celestial, em Pequim.
É sem dúvida muito interessante, e mesmo divertido,
que Hegel, graças a Fukuyama, que é um dos diretores
de planejamento do Departamento de Estado norte-americano, além
de consultor da Rand Corporation, tenha-se tornado a partir daí
uma celebridade de Washington, reconhecido como um
filósofo genial (ao lado de Kant) nos Estados Unidos, e
que sua filosofia da história tenha virado objeto de aceso
debate nos meios de comunicação de massa daquele
país. Só por isso, já devemos nos congratular
com Fukuyama. Hegel é mesmo um pensador monumental, mas
a grande dificuldade de seu pensamento sempre deu motivo a que
fosse de um modo geral repudiado nos círculos do pensamento
anglo-saxônico, marcado por uma ênfase empirista,
analítica e pragmática, francamente oposta ao caráter
sintético-totalizante, além de especulativo, do
hegelianismo. Talvez, afinal de contas, não seja tão
ilegítimo interpretar a história de forma elaborada,
em grandes linhas e filosoficamente... se tal interpretação
coloca nossos ideais vantajosamente como seu coroamento
pensarão os novos cultores de Hegel. E sua (de Hegel) proximidade
do pensamento de Marx, com o qual partilha o suspeito método
dialético, além de outros cacoetes conceituais,
talvez não deva ser motivo para nos mantermos ignorantes
com relação a ele como fazem, por exemplo,
alguns nietzscheanos. Desse modo, a América (do Norte)
vai finalmente atingindo uma certa maturidade espiritual e filosófica...
É admirável que Francis Fukuyama tenha sido assim
capaz de popularizar tornando menos esotérico e
mais aplicado um assunto como esse, levado
aos meios de comunicação e à opinião
publica do seu país. Isso também é uma característica,
muito democrática, da cultura anglo-saxônica - o
outro lado do que falamos antes. Além disso, é no
mínimo envaidecedor, para quem é do ramo, ver a
filosofia assim reconhecida e valorizada, como fornecedora de
conceitos mais gerais para a compreensão do nosso tempo
e até municiadora da definição de estratégias
práticas junto a governos, empresas, políticos,
intelectuais, e ao público em geral. Por outro lado, no
entanto, creio que tudo seria ainda melhor se de fato Fukuyama
entendesse mais do que está falando quero dizer,
de Hegel e de filosofia. Não que eu pretenda agora devolver
a bola para o campo restrito dos filósofos profissionais
freqüentemente chatos, de mal com a prática
e distanciados da vida ou defender a pureza de um verdadeiro
hegelianismo. De maneira alguma. Mas é que, se Hegel, como
também outros filósofos, constitui um verdadeiro
arsenal de pensamentos muito elaborados, matizados
e ricos, e por isso interessantes para uma compreensão
mais profunda da realidade e da política, da cultura ou
da história, tanto mais benefício colheremos do
seu uso quanto melhor conhecermos e com mais competência
manejarmos essas armas tão sofisticadas.
Com efeito, embora fale muito no grande pensador alemão,
Fukuyama cita freqüentemente apenas Alexandre Kojève,
a cuja interpretação de Hegel abertamente se filia,
no que diz respeito ao tema do fim da história. O filósofo
russo-francês, que promoveu com sucesso o hegelianismo na
França de antes da Segunda Guerra (através de seus
célebres cursos sobre a Fenomenologia do Espírito,
que influenciaram alguns dos mais conhecidos pensadores franceses
que lhe sucederam), foi, entretanto, um interprete tanto mais
genial quanto menos literal, inventor de um hegelianismo seu,
crítico e existencialistizado. Sua leitura de modo algum
pode dispensar a investigação direta da obra de
Hegel, ao menos para quem quiser falar em seu nome e aproveitar-se
melhor dele. É bom que o público brasileiro saiba,
por exemplo, que, numa conferência realizada pela Universidade
de Virgínia, sobre Fukuyama e o Fim da História,
estudiosos americanos de Hegel (Philip Grier à frente)
conseguiram questionar o hegelianismo da estrela do evento, especialmente
em nome das resistências explícitas do pensador alemão
enfaticamente reiteradas no prefácio da sua Filosofia
do Direito quanto a levantar prognósticos sobre
o futuro.
Independente disso e resumidamente, posso afirmar que Hegel não
foi exatamente um pensador liberal (à lá Locke e
contratualistas), para quem o Estado devesse representar um instrumento
a serviço dos indivíduos, a serviço da chamada
sociedade civil burguesa (bürgerlische Gesellschaft), constituída
pelos agentes econômicos e sociais em competição
pelos seus fins particulares; embora ele de modo algum pretendesse,
como Marx, sua supressão. Para Hegel, o Estado, como totalidade
ética, é fim para e através do qual vive
o cidadão que nele, e apenas nele, atinge sua verdadeira
liberdade. Não só isso, o Estado racional, de liberdade,
que coroaria o desenvolvimento da história, é, para
Hegel, sem dúvida, um Estado constitucional, porém
mais exatamente uma monarquia constitucional, conciliada com muito
do que a Revolução Francesa renegou globalmente
como próprio do Ancien Régime. Bem diferente,
portanto, da democracia liberal, idealizada, de nossos dias.
O que é verdade, entretanto, é que Hegel, apesar
de tudo, procura assumir decididamente, como uma conquista irrevogável
da Modernidade, a afirmação das prerrogativas da
subjetividade a idéia ocidental por
excelência, introduzida pelo Cristianismo, que ele, otimista,
se esforça por conciliar com o que chama de universalidade
substancial do Estado, enquanto procura criticar e superar seus
reflexos no individualismo do mundo moderno: a presunção
da opinião e do interesse privado de se erigirem como princípio
e fundamento. O universal (o Estado), diz Hegel na
Filosofia do Direito, não prevalece ou se completa
senão juntamente com os interesses particulares e através
da cooperação do saber e do querer particulares
(§ 260). Eu estaria disposto a admitir que de fato Marx,
ao contrário de seu mestre, encarou superficialmente essa
questão, e pode talvez ser por esse ângulo considerado
como um arrodeio de século e meio. Que pode ter contribuído
para arrancar, por uma astúcia da razão
(como diria Hegel), avanços na igualdade da
democracia liberal, promovendo assim, até contra ela, sua
própria realização. Em todo caso, me parece,
a subjetividade moderna, particular, veio para ficar - por muuuuito
tempo. Os discursos edificantes sobre a democracia como valor
universal, que não datam de hoje, dizem algo parecido.
E de há muito as liberdades formais deixaram
de ser consideradas simplesmente como fictícias
apesar de seu aspecto exasperantemente enganoso.
A posição de Fukuyama é sem dúvida
interessada, e todos sabem para quem ele trabalha. O título
da revista onde ele publicou o breve artigo que lhe deu súbita
notoriedade é, aliás, National Interest interesse
que pode coincidir ou não com o dos outros. Entre as conclusões
que tira de sua teoria, está a proposta de
substituir a ONU por uma estrutura formada a partir da OTAN (que
associe justamente os países democráticos)
coisa que já despontou na prática e deu bons frutos
(para uns) na Guerra no Golfo. As coisas, porém, talvez
não sejam tão simples assim. A tese de Fukuyama,
que integra e radicaliza a corrente conhecida nos Estados Unidos
como terminalismo (a Guerra Fria acabou, as grandes
guerras também, os autoritarismos definham, o mercado triunfou),
promove um otimismo algo pacificador, que não agrada a
armamentistas, como tampouco a liberais apenas em causa própria.
Mesmo a concessão de cidadania, nos círculos de
Washington, ao pensamento hegeliano e kojèviano não
é pouca novidade. Mas, principalmente, a idéia de
generalização, entre povos e países, de algumas
liberdades essenciais e de certo bem-estar material que o mercado
deveria garantir, parece envolver promessas e compromissos que
seria bom ver realizados. Mesmo porque, se a história acabou
e o além se desvaneceu no horizonte (tanto no tempo como
fora dele), é hora de ver realizados ideais mais triviais
e alegadamente mais realizáveis no presente. Abre
as asas, Liberdade! Mercado, abre a cornucópia!
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