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José Crisóstomo de Souza
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A Filosofia na Universidade Brasileira[1]
Ernst Tugendhat

Participei de uma tentativa de discutir o problema de como ensinar filosofia, no encontro nacional da Anpof, em Caxambu, Minas Gerais, alguns anos atrás. Eu havia tido uma experiência relativamente ruim com o ensino da filosofia na Universidade Federal de Goiás, em Goiânia, onde estive trabalhando por algum tempo. Meu amigo Prof. Adriano Naves de Brito (da UFG) achou que poderíamos falar sobre o assunto naquela Anpof, e meu amigo Prof. José Crisóstomo (da UFBA), que esteve presente participando da discussão, pensou que seria bom falar agora outra vez sobre isso, aqui na Bahia. Ele tem razão, porque é verdadeiramente um tema muito importante e que merece mesmo ser retomado. Não creio, porém, que eu seja tão sábio nessas coisas, nem tenho idéias, sobre esse assunto, que me satisfaçam inteiramente a mim mesmo. Estou aposentado faz nove anos, e antes disso me ocupei muito da reforma universitária da Alemanha - com pouco êxito, mas me ocupei. Bom, eu não devo falar muito; quero então começar com algumas coisas gerais, alguns princípios, e depois talvez dizer duas ou três coisas sobre a minha experiência.
Se quero perguntar como se deve ensinar filosofia, tenho que começar com um conceito: O que é a filosofia? Vou dizer simplesmente que penso que, em tudo o que se faz em filosofia, em todo o percurso histórico da filosofia, pode-se dizer que é muito importante, é central na minha opinião, a aclaração de conceitos. Penso que a filosofia consiste na aclaração de conceitos centrais de nosso entendimento. Isso significa que o que se deve aprender em filosofia não são informações, mas é antes uma ação. O aluno tem que aprender uma ação. Em que consiste esta ação? Numa boa aclaração e numa boa argumentação - são essas duas coisas, eu pensaria. Creio que existe uma frase de Kant que diz que o que se pode aprender não é filosofia, mas é filosofar. E isso é dizer a mesma coisa, isto é, dizer que se trata de uma ação. Significa que o que se aprende em filosofia não é uma doutrina, mas uma “arte” - arte no sentido amplo, naturalmente. Creio que isso implica em duas coisas. Primeiro, precisa-se – pode-se dizer - do mestre. O mestre é um pouco mais do que um professor, o mestre é uma pessoa que conhece a arte. Bom, isso já é o primeiro problema, porque... como fazer com que os mestres sejam bons mestres? Isso é um círculo, naturalmente. A segunda coisa é o que tem que fazer esse mestre. Ele naturalmente deve, sim, transmitir também informações, mas em primeiro lugar deve ajudar os alunos a essa ação em que consiste o filosofar. Então, como pode fazer isto?
Temos uma grande literatura em filosofia: tanto o que chamamos de tradição filosófica, os grandes autores, como também temos uma grande literatura contemporânea. Isso cria um problema naturalmente: onde devemos colocar a ênfase, na literatura contemporânea ou nos grandes filósofos? Penso que a ênfase deve estar em ambas as coisas. O que conduz ao problema do currículo: o que é um bom currículo? Por exemplo, eu já disse que em Goiânia tive uma experiência má. Uma parte dessa má experiência consistiu em que, na graduação, nos primeiros dois anos, os estudantes só faziam filosofia antiga. Não faziam nada de filosofia moderna nem de filosofia contemporânea. Eu pensei: Isso é uma coisa terrível, afinal que aprende esse aluno? Como podem os estudantes confrontar-se construtivamente com a filosofia antiga, se não conhecem os problemas que se põem hoje? Creio, então, que ter um bom currículo é um problema muito grande, mas entendo que o currículo deve ser logo de saída uma mistura do ensinamento histórico com algo mais do que isso. Creio que a filosofia grega é muito importante, mas não deve ser o único começo. Devemos ter ensinamentos históricos e devemos ter já no começo o ensinamento da filosofia do nosso tempo.
Agora, não devemos esquecer que todo esse tratamento da filosofia histórica e da filosofia contemporânea é só um instrumento para aprendermos, nós mesmos, a pensar. Os estudantes mesmos. E os professores, os mestres e os estudantes são mais ou menos a mesma coisa, todos devem fazer mais ou menos a mesma coisa. É o mesmo que em qualquer arte. Um professor de violino também ele aprende a tocar e ajuda os outros a tocarem, e isso é um certo círculo inevitável. Vocês tiveram, na América Latina, um tempo em que a filosofia consistia na doutrina escolástica. E depois, agora, há uma possibilidade de, em vez de escolástica, aprender o que se chama de “os grandes filósofos”, seu pensamento. Mas isso por si não é ainda tão importante. Agora vem um ponto, talvez contido na palavra arte, que é que, quando nós nos ocupamos dos outros filósofos, não devemos estar interessados em aprender o seu sistema em si - isso não tem nenhum interesse. E por que não? Por que o filosofar é uma arte. Mas em que consiste tal arte? Consiste na pergunta pela verdade, pela verdade em relação à aclaração de conceitos. Isso significa que também a maneira – a única maneira - de ocupar-se dos grandes filósofos é perguntar sempre: Têm razão ou não, é verdade o que dizem ou não? E, em geral, acho eu, não é verdade o que eles dizem. Eu tenho grandes dificuldades quando vou dar um curso e devo escolher um autor, porque sei que a única coisa que vou poder fazer é explicar por que ele está errado nisso, errado naquilo. E é isso o que os estudantes têm que aprender...
Naturalmente, nisso há perigos também. Um perigo é simplesmente pensar que o filosofo é “a” autoridade, mas quero me referir ao outro perigo, que é começar com a critica (de determinado filósofo) cedo demais. Quer dizer, criticar um filósofo sem antes procurr entendê-lo. E nisso – nesses perigos – reflete-se uma parte do que chamei de arte, pois não se podem dar regras gerais para o trabalho da filosofia. Por isso é que, sem o mestre, creio que é muito difícil aprender o que quer que seja em filosofia. Naturalmente, de qualquer ciência também se poderia dizer que é uma arte. Mas a quantidade de informação que há, por exemplo, numa ciência com a biologia, é muito grande. O biólogo que vai aprender a ser biólogo também tem que aprender uma arte: como fazer biologia. Mas a quantidade de informação aí é muito grande, enquanto que em filosofia ela é muito pequena, quase inexistente. Vocês talvez já tenham visto que tem gente que crê que pode filosofar assim, com uma grande quantidade de informações da história da filosofia, sobre aquilo que disseram os filósofos. Em geral, isso não é muito recomendável. O que se tem feito em filosofia nesses dois mil ou mais anos tem um certo sentido, mas entendo que a maior parte está errada. E, se não nos confrontarmos com esses erros, não vamos chegar a nada nós mesmos.
Na América Latina, naturalmente, existe um problema “externo”, que consiste em que - que eu saiba - não existem bibliotecas realmente boas. Isso, sim, é uma razão por que na América Latina se tem hoje uma tendência muito forte a concentrar-se nos grandes textos da história da filosofia. É que o outro lado não existe; temos os grandes textos, mas não temos as revistas, especialmente revistas importantes de língua inglesa. Então fica muito difícil preparar uma aula, por exemplo, sobre o problema da liberdade da vontade, ou, simplesmente, sobre a discussão de ética de hoje. Como se vai fazer isso se primeiro não temos - o que se tem muito na literatura de língua inglesa - boas coleções de importantes ensaios e as revistas importantes?
Suponho que hoje sou uma pessoa completamente antiquada e não conheço bem a Internet. Ainda assim, segundo o que sei, pode-se agora, com um bom professor (e agora vou dizer simplesmente professor e não mestre), fazer um bom seminário, por exemplo, sobre o tema da liberdade da vontade. O professor não precisa necessariamente estudar o que Kant, por exemplo, disse, ou o que disse Agostinho. Há uma literatura grande hoje. Ele pode, com a Internet, suponho, conseguir coisas importantes, imprimir essas coisas, e, então, os estudantes vão ter os ensaios importantes. É ruim pensar que isso é muito difícil de fazer, e que por isso vamos estudar somente o que Kant disse sobre a liberdade, quando isso não adianta. Então, esse problema com as bibliotecas me parece que é um problema real. Mas já não digo o que disse faz dez anos, quando falei sobre o mesmo problema na Colômbia: Por favor, façam pressão sobre os políticos para que em cada país haja pelo menos uma boa biblioteca. Essa causa no momento está perdida. Mas creio que com a Internet se pode fazer muito.
Bom, qual é a minha experiência? Comecei na graduação, nos Estados Unidos, e depois fui para a Alemanha, para a pós-graduação, onde fiquei por quarenta anos como professor. Quando eu tinha trinta e cinco anos de idade, tive a sorte de ser convidado para uma boa universidade norte-americana, a Universidade de Michigan. Fiquei muito bem impressionado, tanto com a filosofia analítica que se estava fazendo ali, como também com o sistema de ensino utilizado. Desde então, devo dizer, sou fã do sistema norte-americano de ensino de filosofia. Impressionei-me também favoravelmente com o ensino de filosofia em Oxford e em Cambridge, na Inglaterra. Por outro lado, acho que o sistema alemão é ainda essencialmente ruim, e isso resulta num prejuízo em toda a América Latina, onde se pensa que todo filósofo deve ir mesmo é para Alemanha e só para a Alemanha. E isso por pura falta de informação, em parte decorrente do fato de que muitos professores de filosofia, na América Latina, foram educados na Alemanha ou na França, e por isso pensam que se tem sempre de ir a Alemanha ou França. Entendo que devem antes ir aos Estados Unidos. Digo que sou um fã do ensino norte-americano da filosofia, mas não sou um fã extremo. Também os Estados Unidos não são a solução última dos problemas nesse terreno. Não sei suficientemente como é aqui em Salvador, na UFBa, mas, por exemplo, em Goiânia, na Universidade Federal de Goiânia, o sistema se mostra muito pouco livre. Nos EUA, há uma certa liberdade. E por que se deve ter uma certa liberdade? Parece-me evidente: Porque se pode dizer que em filosofia certas coisas são importantes, mas tem muito pouco que se pode dizer que é necessário. Nesse ponto, a filosofia é muito diferente das ciências; nela, de nada se pode dizer decididamente que é necessário, e isso significa que o estudante deve ter liberdade de escolher.
Agora vejo que não falei de uma outra coisa importantíssima: a necessidade de que o estudante comece a escrever muito cedo - que comece imediatamente, eu deveria dizer. No primeiro ano da graduação, o estudante deve escrever, e o professor deve, não somente dar uma nota, mas explicar ao estudante (se o professor é um mestre, e ele deve ser um mestre) o que ele deve corrigir e melhorar. Porque tudo o que se faz, em geral, é ler, tanto os grandes filósofos do passado, como os filósofos contemporâneos, somente porque eles são exemplos de pensar. Ora, para poder ter esse exemplo, tem-se que fazer a mesma coisa que eles, e para isso não é suficiente estar numa aula e fazer as perguntas. É preciso escrever. Isso me leva ao caso de Oxford, Inglaterra, onde há um sistema muito extremo, talvez exagerado, mas muito interessante. Lá, praticamente não se tem aula - em Cambridge tampouco. O estudante vai sozinho ao professor, uma hora por semana, e o professor lhe dá a literatura sobre um tema. O estudante tem então que escrever um ensaio numa semana. E assim segue por todo o estudo. O que é muito duro, muito pesado. Eu fiquei tão impressionado quando estive lá, em Oxford, que introduzi, em Heidelberg, na Alemanha, onde era professor na época, o que chamamos de “tutores oxfordianos”. Mas oferecemos isso como opção; ninguém em Heidelberg teve que fazê-lo por obrigação. Por exemplo, fiz o seguinte: formei grupos de cinco ou seis estudantes, comigo, e ficávamos juntos discutindo, por uma ou duas horas, um ensaio de um filósofo. Poderia também ser um texto de um grande filósofo - isso não importa. Para a semana seguinte, cada um desses cinco ou seis estudantes tinha que escrever um ensaio, e eu me encontrava com cada um, por uma hora, para discuti-lo. Isso é uma coisa muito pesada, tanto para o professor como para o estudante, e talvez seja um sistema extremo, mas mostra a grande importância de produzir desde o começo. E a produção consiste, não em fazer perguntas, mas primeiro em escrever. Naturalmente, não se trata de escrever de qualquer maneira, e por isso precisamos do mestre. Isso é uma conseqüência do fato de que a filosofia é uma arte. Mas, assim, talvez, escrevendo cedo, desde o primeiro ano, o estudante depois não vá ter tantas dificuldades na hora de escrever uma tese, porque já conhece um pouco como se tem que fazer a coisa.
Agora, talvez, em muitas universidades e departamentos, caiba perguntar-se em que grau insistir sobre os grandes filósofos, e em que grau insistir sobre problemas, tratar dos problemas em relação com os ensaios contemporâneos. Creio que, na América Latina, o déficit está do lado dos ensaios contemporâneos, e se deveria fazer um esforço para considerar mais isso. Mas eu disse no começo que considero que a filosofia é aclaração de conceitos centrais do nosso entendimento. E aqui temos um certo perigo de simplesmente esclarecer quaisquer conceitos que não sejam centrais. Por isso também falo da compartimentalização da filosofia anglo-saxônica (norte-americana e britânica) como de um certo perigo. Por isso creio que é importante também confrontar-se com alguns grandes filósofos do passado. Mas isso evitando uma idéia que têm alguns, especialmente alguns principiantes no estudo da filosofia... Me lembro que eu mesmo pensei isso quando comecei a estudar, pensei que se tinha que aprender “a história da filosofia”. Até que, depois de algum tempo, entendi que as lacunas que se tem no conhecimento do conjunto de todos os filósofos são inevitavelmente tão grandes. Temos que estar dispostos a admitir que cada um de nós tem grandes lacunas nesse conhecimento, e que isso não é importante. Importante é poder pensar sobre certas coisas, e também entender que sobre outras coisas não temos conhecimento, não sabemos tanto. De qualquer maneira, a idéia, equivocada, que talvez exista ainda no Brasil, e que certamente tivemos na Alemanha no tempo em que estudei, é de “compreender o desenvolvimento da filosofia ocidental”. Isso, porém, não é tão interessante, porque a filosofia ocidental não constitui um todo, não é uma coisa, não é “algo”. Creio que se pode muito bem fazer filosofia ainda que não se conheça muitos dos filósofos mais importantes.
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[A partir daqui o Prof. Tugendhat está se manifestando a respeito de questões postas pela audiência]
Eu disse, no começo, que o mestre em filosofia não é essencialmente um transmissor de informação. Se se tratasse somente de transmissão de informação, não precisaríamos do mestre, mas a filosofia é uma arte. Eu disse que uma ciência também é uma arte, mas acrescentei que, quantitativamente, uma ciência contém muito mais do que isso. É evidente, para qualquer pessoa que tenha estudado alguma ciência, que, numa ciência, tem-se que aprender muito, aprender simplesmente, informações. Em filosofia é diferente; tem-se pouco o que simplesmente aprender. Mesmo assim tem gente que pensa que aprendeu filosofia porque sabe muito o que Kant disse, o que Hegel disse, etc., mas não sabe pensar. Isso não vale nada.
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Quase tudo o que se pode dizer sobre como ensinar filosofia tem a possibilidade dum abuso, de um exagero. Por exemplo, penso que essa situação exagerada de Oxford, onde o estudante está confrontado sozinho, uma hora, com o seu professor, resulta em que tanta gente, em Oxford, depois fica - como se diz - balbuciando, tem esse problema de falar [risos]. Pode ser bom estar confrontado com um professor, mas, em primeiro lugar, não precisa ser sempre o mesmo professor. E não pode ser uma imposição. Por exemplo, o chefe do departamento ou outra instância simplesmente diz a você que o seu tutor tem que ser esse ou aquele. Isso poderia ser bom, mas tem sua limitação, tem os seus perigos. O autoritarismo é sempre o perigo maior na filosofia, que pode apresentar-se na forma de transmissão de uma doutrina, ou também pode consistir no autoritarismo de uma personalidade.
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É preciso saber que o sistema alemão se está desenvolvendo muito agora. Por exemplo, a filosofia analítica está penetrando muito na Alemanha, e há lugares na Alemanha onde creio que se pode estudar tão bem quanto em certos lugares nos Estados Unidos. Eu diria, em primeiro lugar, que, em geral, o professor alemão ainda é mais autoritário do que o professor norte-americano. Número dois: ainda há uma ênfase forte demais, na Alemanha, na história da filosofia. Terceiro: talvez (isso é uma coisa que não sei muito bem de que depende), a arte da boa discussão esteja mais desenvolvida nos países anglo-saxônicos - tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos, mas também em países como Austrália - do que na Alemanha. Por exemplo, pessoalmente tenho a experiência de que, quando tenho que dar uma conferência numa boa universidade norte-americana ou inglesa, as pessoas me fazem perguntas que são realmente difíceis para mim. Na Alemanha, isso me acontece muito pouco; os alemães ainda têm uma certa tendência para, quando querem falar na discussão de uma conferência, fazerem como uma conferência própria, e isso não é muito produtivo. Enquanto que os ingleses têm essa maneira de fazer perguntas muito precisas, e muito relevantes para o desenvolvimento da conferência mesma. Bom, creio que os estudantes norte-americanos estão, por uma experiência que já começa no ensino médio, menos submissos, mais dispostos a discutir. Eles aprendem isso, que naturalmente é também uma arte: poder discutir bem, fazer as perguntas relevantes. Me ocorreu muito no Brasil, nessa viagem, que as pessoas simplesmente fazem uma pergunta que na verdade tem apenas uma associação com alguma coisa que eu disse, e só isso. Ora, isso não é uma pergunta e não pode levar a uma verdadeira dialética ou argumentação.
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Eu talvez tenha exagerado no que disse aqui, sobre a Alemanha, em comparação com os países de língua inglesa. Mas exagerei meio conscientemente porque tenho essa experiência: tanto no Brasil como em outros países latino-americanos, as pessoas crêem que a Alemanha é o país da filosofia, e isso é verdadeiramente um erro. A verdade é que, mesmo no que diz respeito aos estudos sobre filósofos clássicos, sobre certos filósofos alemães, como Kant, por exemplo, há mais comentaristas anglo-saxões bons sobre o Kant, do que mesmo comentaristas alemães. Quando estive na Universidade de Michigan, mas já faz 35 anos, fiquei impressionado com o fato de que não é como se pensa, que a filosofia é aí sempre uma disciplina muito unilateral. O fato é que aí se estava fazendo também história da filosofia.
Claro que pode, mesmo assim, haver uma certa unilateralidade, ruim, presente no sistema norte-americano e mais ainda no inglês. O inglês é muito unilateral, no fato de que os ingleses pensam saber muito exatamente em que consiste a filosofia. E pensar isso é terrível. Por exemplo, você não ouve praticamente nada da filosofia não-inglesa na Inglaterra, ninguém conhece, por exemplo, Hegel. Coisas assim. Nos Estados Unidos, isso é melhor. Mas eu diria que, tanto na Inglaterra como lá, há vantagens e desvantagens, essas últimas tendo a ver com pensar que se sabe em que consistem as perguntas importantes. Na Alemanha, o problema é quase o contrário. Quando estudei nos anos 1950 na Alemanha, tudo o que se fazia era história de filosofia. E isso era um reflexo de não termos formulado problemas, de não termos idéia sobre o que é interessante, importante. Nesse caso, pergunta-se muito menos sobre a verdade, e creio que isso é um problema. Tomemos um exemplo como Kant. Vamos encontrar na Alemanha uma coisa similar ao que creio que se encontre no Brasil. Pensa-se que é importante entender como é conectada cada coisa com cada outra coisa em Kant. Nos países anglo-saxões, se se estuda Kant, também se está interessado nisso (e tem-se que estar), mas se pergunta muito mais sobre se o que Kant diz é correto ou não.
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Em geral, os filósofos anglo-saxões não têm muita relação com os problemas políticos contemporâneos. Isso é também um ponto em que creio que o desenvolvimento da filosofia nos países anglo-saxões, e agora também na Alemanha (porque os alemães estão virando anglo-saxões [risos]), enfrenta certo perigo. Esse perigo consiste numa profissionalização extrema, em que os estudantes aprendem a discutir muito bem problemas muito pequenos, e perdem um pouco o horizonte geral. Observei isso tanto em Tübingen, onde estou agora, na Alemanha, como num colóquio nos Estados Unidos, faz um ano: As pessoas têm hoje, em filosofia, a tendência a serem muito rigorosas, mas muito estreitas. E também têm à tendência a cultivar certas novidades, certas modas. Por exemplo, um problema que é muito trabalhado hoje é o da conexão da mente com o corpo. Ah, vocês podem ficar assombrados, mas é assim. É verdade [risos]. Vocês ficam assombrados porque crêem que não se pode dizer muito sobre isso, mas é assim. Isso tem a ver naturalmente com o problema de que, em todos esses países do Primeiro Mundo, a carreira filosófica está difícil. Por exemplo, quando tem uma vaga numa universidade alemã, cem candidatos se apresentam. A competição é muito grande. E isso leva os jovens filósofos a se envolverem em modas. É... [risos]. Eles têm que ser muito disciplinados, senão não obtêm nada. E, em segundo lugar, têm que ser muito disciplinados em especialidades que estejam na moda no momento.
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Agora vocês me perguntam – o nos remete à imagem clássica da filosofia - se um filósofo deve ser um sábio. Em última instância creio que deva, mas só em última instância. Tive a experiência (na Alemanha, muito) de que os estudantes que vêm à universidade têm perguntas sobre, por exemplo, o sentido da vida. Creio que, em geral, quem estuda filosofia - em vez de fazer ciência, economia etc. - é gente que está preocupada com o sentido da vida. E então vêm à universidade e ficam muito decepcionados porque já ninguém fala no sentido da vida. Eu de fato creio que a filosofia tem que ser aclaração de conceitos, e aclaração de conceitos centrais da nossa compreensão das coisas. Mas nem todos esses conceitos centrais de nosso entendimento têm a ver com perguntas pelo sentido da vida. Quero dizer, então, que é bom ter esse assunto em mente, mas que a parte profissional, disciplinar, da filosofia, também me parece muito necessária. É tão necessária que eu diria que há bons professores de filosofia - eu até diria bons mestres - que não pensam no “sentido da vida”...
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Quanto a primeiro formar-se e profissionalizar-se como artista ou cientista, para depois se tornar filósofo, de fato, séculos atrás, houve muitos cientistas importantes que foram filósofos. Hoje não creio que possa mais ser assim, porque as disciplinas foram-se separando muito. Vocês podem mencionar um grande cientista, no século XX, que foi também um grande filósofo? Bem, Sartre foi também um grande escritor. Mas um cientista, um pintor, um arquiteto, um músico, serem filósofos, isso não parece hoje possível. A explicação, naturalmente, está no tipo de arte em que consiste a filosofia, que é uma atividade muito diferente. O artista normalmente não tem que perguntar por razões, não tem que aclarar conceitos. Com relação à ciência, creio que o problema é que temos uma diferenciação muito forte, hoje, da qual não podemos mais nos livrar. Nós não podemos mais querer ser como os gregos do tempo de Aristóteles, nem como os modernos do tempo de Galileu ou Newton.
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Minha palestra de ontem teve como tema o que se pode chamar de antropologia filosófica: a reflexão sobre nós mesmos. Isso creio que é central para a filosofia. Eu já disse antes que creio que a extrema compartimentalização que se está fazendo na filosofia anglo-saxônica me parece errada. Por exemplo, há hoje uma disciplina que se chama “teoria da ação”. Mas teoria da ação de quem? quem está agindo? A resposta é: o homem. E como podemos entender as ações do homem sem entender a relação do homem consigo mesmo? Então, creio que isso é central para a filosofia, para entendermos assuntos como, por exemplo, a moral, a comunicação, a relação do homem com a sociedade, os problemas entre indivíduo e sociedade. Eu disse que a filosofia trata de aclarar conceitos, mas somente conceitos que sejam centrais a nosso entendimento. E, talvez, mesmo dizer isso ainda seja um pouco insuficiente. O centro tem que ser o que é central para nosso entendimento de nós mesmos, e não somente como indivíduos senão também como seres sociais. Eu quero dizer com isso que, sim, creio que uma certa compartimentalização na filosofia é boa, mas, num currículo de filosofia, cabe sempre perguntar: Por que essa disciplina e não outra? Isso tem que ser respondido partindo de uma pergunta central, e creio que essa pergunta central tem a ver com nossa relação com nós mesmos.
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Eu posso dizer uma coisa mais. Não sei se é um problema no Brasil, mas foi um grande problema no México e especialmente em alguns outros países hispânicos de América: a idéia de se fazer uma filosofia latino-americana. Isso, creio que é um erro. Creio, sim, que um filósofo deve estar consciente dos problemas da sua época. E “da sua época” sempre tem que significar também de seu país. Mas a idéia de fazer uma filosofia latino-americana me parece errada porque se diz: por que devemos importar a filosofia da Europa ou da América do Norte? Mas na Europa não se faz uma filosofia francesa nem se faz uma filosofia alemã - isso seria terrível. Seria seguir o nazismo, por exemplo, com uma reflexão sobre a Alemanha no sentido do “ser alemão”. Isso não é interessante. Creio que todos somos homens e temos problemas diferentes nos diferentes países, mas a reflexão sobre nós mesmos não consiste em refletir sobre nós como alemães ou nós como americanos. Então, tampouco sobre nós como brasileiros, creio eu.
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Bom, para mim foi um grande prazer fazer uma discussão assim com vocês. Obrigado. [Muitos aplausos]

 

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