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(artigo publicado em Cognitio, PUC-SP, v. 13, n.1)
Teses ad Marx
Para uma Crítica ao (Não-)Pragmatismo de Marx
Towards a Critique of Marx’s (Non-)Pragmatism


José Crisóstomo de Souza
Departamento de Filosofia
Universidade Federal da Bahia
jose_crisostomo@uol.com.br

Resumo: Esse é um ensaio de crítica imanente, de viés pragmatista, centralmente das Teses ad Feuerbach, de Marx, mas não só, que procura interpretar, aproximar e distinguir suas formulações do que é aqui denominado de pragmatismo como terreno destranscendentalizado. O texto sugere que o materialismo prático-normativo das Teses pode ser lido como compreendendo cinco momentos que se interpenetram: 1) uma recusa do “empirismo dogmático”, intuicionista-passivo, mentalista-cartesiano, bem como do idealismo subjetivo; 2) uma superação da concepção do mundo e do sujeito como estáticos, exteriores um ao outro, e, logo, possivelmente, o abandono do ponto-de-vista do “espectador” e da fixação objetivista-representacionista do real; 3) uma desqualificação do indivíduo abstrato da percepção empirista, a ficção do indivíduo como dissociado do conjunto das relações sociais e de uma forma social determinada; 4) uma crítica do real social como ao mesmo tempo essencialmente cindido e atomizado, pelas “más” relações e práticas sociais imperantes, que acarretam o desdobramento/duplicação do mundo também na religião e na filosofia; 5) crítica essa sustentada pela dedução/construção de um fundamento, mundano mas essencializado, que determina, por necessidade, o rumo da supressão prática da contradição e a restauração (reconciliação) da unidade-solidariedade social, com o fim da “auto-alienação do homem” - abrindo caminho, para além do ponto-de-vista “egoísta” da Sociedade Civil, de hoje, para o da Sociedade Humana, de amanhã, e para a necessidade e o imperativo de sua realização. Tudo isso atravessado por um desafio de “epistemologia política”, i.e. de congruência de pontos-de-vista epistemológicos com pontos-de-vista - e situações práticas - político-econômico-sociais, a que Marx talvez não responda adequadamente, e não apenas nas Teses.

Palavras-chave: Prática. Atividade sensível. Pontos-de-vista. Duplicação. Normatividade.

Abstract: This is an essay of immanent critique, tentatively pragmatist, centrally of Marx’s Theses ad Feuerbach but not only, which tries to interpret, approximate and distinguish its formulations from what is here conceived as pragmatism as a detranscententalized ground. The paper suggests that the practical-normative materialism of the Theses may be read as basically encompassing five interpenetrated moments: 1) a refusal of “dogmatic empiricism”, passive-intuitionist, Cartesian-mentalist, as well as of subjective idealism; 2) the overcoming of an understanding of world and subject as static, exterior to one another, and therefore the possible abandonment of the “spectator’s point-of-view” and of the objectivist-representationalist fixation of reality; 3) a disqualification of the “abstract individual” of empiricist perception, i.e. of the fiction of the individual as dissociated from the whole of social relations and from a determinate social form; 4) a critique of social reality as both essentially severed and atomized by dominant “bad” social relations, which entail the supposed duplication of the world, also in religion and philosophy; 5) this critique supported by the deduction-construction of an “essentialized” foundation, although allegedly earthly, which determines the practical suppression of the contradiction and the restoration of social unity-solidarity, as the end of “man’s self-alienation” opens the way, beyond the individualist point-of-view of today’s civil society, to the humane society of tomorrow, and to the need and imperative of its realization. All that, traversed by a problem of “political epistemology”, i.e. of the congruence of epistemological points-of-view with social and political, practical, circumstances and points-of-view, to which Marx perhaps does not answer adequately, even beyond the Theses.

Key words: Practice. Sensuous activity. Standpoint. Duplication. Normativity

1. O materialismo prático-normativo de Marx e o pragmatismo como terreno destranscendentalizado
Tomo aqui o pragmatismo como uma posição no interior de um conjunto de posições aparentadas, características da filosofia contemporânea. Isto é, como um caso interessante de virada pós-metafísica, de transformação anti-cartesiana, anti-solipsista, não-fundacionista, da filosofia. Ou ainda, para não ficar apenas em expressões negativas, como um tipo de virada prática e social da filosofia, conciliada com o tempo, o devir e a contingência no mundo. Uma das especificidades desse pragmatismo com relação a posições “pós-metafísicas” concorrentes, dos nossos dias, é justamente o seu caráter francamente construtivo, razoável, além de, por suposto, prático - citerior, diesseitig, destranscendentalizante. Nem por isso, entretanto, um ponto de vista desprovido de potencial normativo, crítico, aparecendo como relativista, subjetivista e utilitarista estreito tão somente para mau entendedor. Nessa linha, quando falo em pragmatismo, penso nas suas expressões que de um modo ou de outro permitem articular conhecimento e ação a sensibilidade social e comunidade democrática, um Leitmotiv do que apresento aqui ao modo de ensaio.
O que chamo de pragmatismo de Marx (1818-1883) são posições expressas, de modo muito condensado, principalmente nas “Teses ad Feuerbach” (1845), onde ele trata de modificar, por uma acentuação prático-ativista, social-comunista, o humanismo/materialismo feuerbachiano - que também guarda afinidades com o pragmatismo. São posições, as de Marx, já aí comprometidas, porém, com elementos não-pragmatistas que eu chamaria de platônicos e transcendentalizantes, além de cartesianos e subjetivistas, que infelizmente teriam acabado por acentuar-se e prevalecer na sua obra. Elementos que podem acarretar consequências menos boas para as práticas nela inspiradas (pelo menos como avaliadas desde esse nosso começo de séc. XXI), mais especificamente para a democracia como a comunidade que queremos.
Sendo assim, meu tratamento, ainda exploratório, quer ser, a um só tempo, de interpretação, recuperação e crítica das formulações marxianas que trago à discussão, que se constituem num germe filosófico contraditório, além de, por suposto, não desenvolvido, formulações das quais Marx teria se afastado, para longe de valiosos insights dos começos do seu não-contemplativo materialismo prático-histórico. E digo valiosos porque, de outro lado, não obstante perdidos por Marx e pelo marxismo, poderiam apresentar vantagens com relação a algumas das posições filosóficas que se reivindicam ou são reconhecidas como pragmatistas. Isto é, com relação a formulações do “pragmatismo clássico”, mas principalmente com respeito a algumas de suas expressões mais recentes (v.g. Habermas e Rorty). E acredito que o mesmo pode valer para formulações semi-pragmatistas de autores como Quine ou Wittgenstein, aparentemente enredadas, seja numa certa ideia de ciência natural como paradigma de conhecimento, seja numa “linguistificação” do ponto-de-vista prático, seja nas duas coisas.
Na verdade, o que tenho em vista é o esboço de uma posição pragmatista alternativa e contemporânea, democrática, e me concentro no exame das Teses ad Feuerbach em razão de seu caráter sintético, filosoficamente programático, de suas qualidades de germe e cerne, como um conjunto de elementos suscetíveis de interpretação e desenvolvimento. Sobretudo por tais elementos constituírem-se, nessa forma, num poderoso entrelaçamento, numa só concepção, de formulações básicas sobre conhecimento, ação, realidade, subjetividade e normatividade (ou idealidade), sendo isso na minha opinião tudo o que uma boa e típica posição pragmatista (ou mesmo uma boa posição filosófica) deve elaborar e oferecer. Como me parece, o que de melhor se pode derivar de Marx hoje em dia é um tipo de pragmatismo continental, rótulo com o qual eu poderia identificar meu próprio ponto de vista, ainda que isso não me ponha necessariamente mais perto de Marx do que, p. ex., de John Dewey (1859-1952). É também meu pressuposto que o pragmatismo pode ser tomado hoje em dia não apenas como uma determinada corrente ou tradição norte-americana, mas também como um “terreno” (do qual trato justamente de aproximar Marx), de interlocução e elaboração filosóficas contemporâneas. Não só porque os próprios “pragmatistas clássicos” (Peirce, James, Schiller, Dewey e Mead) apresentaram-se de saída como consideravelmente diferentes entre si (“uma casa dividida contra si mesma”, dizia Peirce), como também porque assim se apresentam seus mais recentes “filiados” (como Rorty, Putnam, Wellmer ou Habermas), na interlocução que mantêm uns com os outros e com aquela herança comum. O pragmatismo poderia então ser considerado como um terreno para o qual têm convergido - justamente por uma “virada pragmatista” - expressões relevantes da elaboração filosófica contemporânea, de diversa procedência, em confronto e diálogo, como um verdadeiro work in progress, em um campo vivo e aberto. (O que, aliás, me parece o modo contemporâneo de fazer filosofia; não mais a constituição de sistemas como macro-pronunciamentos acabados, de indivíduos-mônadas sobre-humanos, falando de um lugar transcendental de onde não falam os outros homens.)
Para agregar respaldo ao que digo posso invocar alguns testemunhos respeitáveis, em rápidas pinceladas, cedendo momentaneamente ao que Peirce (1839-1914) chamaria de método de autoridade. Com efeito, Jürgen Habermas, que procede do marxismo e da filosofia clássica alemã, entende que o pragmatismo é nos nossos dias uma “ponte transatlântica [entre a Europa e a América] para um vivo intercâmbio intelectual.” Segundo ele (que já se considera em posição de corrigir, de um ponto-de-vista mais pragmatista, o neo-pragmatismo de Rorty), é no pragmatismo que desembocam hoje nada menos que os processos conjugados de autocrítica de kantismo e hegelianismo. O que não deveria soar tão estranho, pois o pragmatismo, Habermas (tal como eu) defende, deita raízes também “no idealismo alemão e no próprio Marx,” podendo em certos casos ser considerado “uma variante democrática do jovem hegelianismo e da filosofia da práxis.” Observe-se, com relação a isso, que Peirce, ao tempo em que reconhece suas posteriores convergências com Hegel, admite “ter chegado à filosofia através da porta de Kant,” enquanto Dewey e Mead formaram-se inicialmente como hegelianos, e William James em contato direto com o ambiente filosófico da Alemanha e da França do seu tempo.
Do lado da filosofia analítica, Hilary Putnam, em convergência com Habermas, tem compreendido o pragmatismo como “uma questão em aberto,” como “um modo de pensar de duradoura importância,” e, finalmente, “uma opção para o pensamento filosófico de hoje.” Antes dele, Willard Van Quine, outro analítico que contribuiu para a virada “anti-dogmática” do empirismo numa direção pragmatista, tratou de acolher o que seriam seus dois melhores achados: 1) que o significado de uma asserção é a disposição de agir de acordo com ela, e 2) que a verdade é, pelo menos em certa medida, criada, e não simplesmente descoberta, pelos homens. Enquanto Putnam, com quem Habermas compartilha um pragmatismo kantianizado, adota expressamente, da tradição pragmatista, entre outras coisas, a rejeição dos dualismos tradicionais da filosofia moderna, em favor da idéia de “interpenetração de fato, teoria, valor e interpretação,” que corroeria tanto o “realismo metafísico” como os “pós-modernismos” e “anti-realismos da moda.” Por fim, Habermas (que admite sua filiação e de Karl-Otto Apel a Charles Peirce) ainda caracteriza apropriadamente o pragmatismo, não só como uma via cosmopolita, contemporânea, de “destranscententalização” e de superação da “filosofia da consciência” e da “razão centrada no sujeito,” como também pela “atitude anti-elitista e democrática, igualitária, [que] penetra o trabalho de todos os pragmatistas”. Com o que já temos aqui elementos para uma noção do que pode ser pragmatismo e para tênar um diálogo crítico com o ponto de vista das Teses a partir dele.
Voltemos, pois, ao que nos concerne mais diretamente. O que dizem afinal as Teses ad Feuerbach? O que tomamos como seu eixo? Onde está seu pragmatismo? Bem, numa palavra: aquilo que Marx, como bom pragmatista, faz nas Teses é, ao seu modo, introduzir o agir (bem como propósitos e avaliações humanos) “dentro” do conhecer e do ser, construindo uma relação prática entre real e ideal. Para começar, nosso socialista científico, quando constrói seu materialismo prático-normativo (prático-crítico), e trata de falar não escolástica ou metafisicamente, mas praticamente, de realidade e conhecimento, não faz nas Teses alusão expressa a “ciência” ou “científico” (não, em todo caso, em sentido “positivista”), nem parece de início inclinado a apresentar as coisas como seriam “em si mesmas”, segundo uma concepção tradicional de objetividade. Ele insiste, em vez disso, em noções como prática e atividade humana sensível, além de perspectiva ou posição (Standpunkt, ponto-de-vista) e interpretação, parecendo desinflar a noção de Teoria. Outro traço que sugere que o materialismo prático das Teses procura, como boa parte dos pragmatismos, fugir do ponto de vista realista-empirista tradicional, é também seu recurso reiterado a expressões como “apreender” ou “captar” (fassen), “conceber” (begreifen), “considerar” (betrachen), além de “entender” (verstehen), “interpretar” (interpretieren) e “querer” (will). Pois, embora isso não caracterize bem uma perspectiva prático-ativa, sublinha um papel ativo para o sujeito que conhece, ainda que seja dele apenas como mente ou consciência - ou sujeito individual. Por fim, nas Teses, Marx, tal como vários pragmatistas, parece aproximar fato e valor, realidade e normatividade, descrição e prescrição, ser e dever ser, recusando quanto a isso o dualismo rígido de parte da filosofia anterior.
Proponho, então, que as Teses (bem como todo um lado do materialismo histórico-normativo de Marx, formulado inicialmente na Ideologia Alemã) sejam lidas como compreendendo basicamente cinco momentos que se interpenetram: 1) a recusa do empirismo dogmático, intuicionista-passivo, mentalista-cartesiano, bem como do idealismo subjetivo, para Marx tão abstrato quanto impotente; 2) uma superação da concepção do mundo e do sujeito como basicamente estáticos, inapelavelmente “exteriores” um ao outro, e, logo, o abandono do ponto-de-vista do “espectador” e de fixação objetivista-representacionista do real; 3) uma forte desqualificação do indivíduo isolado e abstrato da percepção empirista, da “ficção” do indivíduo dissociado do “conjunto das relações sociais” e de ‘uma forma social determinada” (aquilo que Marx alhures chama de “robinsonada”). Esses três primeiros pontos devendo servir a 4) uma Crítica do real social como, para Marx, ao mesmo tempo viciosamente cindido e lamentavelmente atomizado, pelas “más” relações sociais nele imperantes, que acarretam além disso o desdobramento radical do mundo também no plano ideal, na religião como na filosofia. Sendo essa Crítica, por sua vez, sustentada por 5) uma dedução/construção de um fundamento forte, que determina a supressão prática da contradição e a restauração (reconciliação) material de uma plena unidade social - com o fim da “auto-alienação” do homem. Pois tudo isso as Teses fazem abrindo caminho, para além do ponto-de-vista empirista-individualista-liberal, da Sociedade Civil, para o ponto-de-vista, comunista, da Sociedade Humana, e para a necessidade e o imperativo de sua realização. E isso tudo atravessado por um problema, digamos, de “epistemologia política”, de congruência de pontos-de-vista epistemológicos com pontos-de-vista políticos e sociais, de um modo que faz pensar no que seria, então, uma epistemologia democrática, em relação a suas concorrentes - igualmente avessas ao político - comunista e liberal. Podemos arrematar dizendo que a preocupação central de Marx nas Teses como alhures é com a comunidade dos homens e não com a comunidade de conhecimento e investigação; mas quem disse que essa não é também a preocupação de outros pragmatistas?
Antes de passarmos diretamente a uma leitura pragmatista das Teses (com alusão também a outros textos de Marx), fique claro que não se trata de medi-las com um metro exterior, previamente fixado. Mesmo porque, está visto, não concebo o pragmatismo (nem tampouco Marx) como um pensamento uniforme, nem vou enveredar pela a abstração de um núcleo mínimo comum seu, como sua essência. Prefiro, quanto a isso, invocar uma wittgensteiniana semelhança de família, que tentarei estender a Marx: aquela decorrente de fontes e motivos comuns, além de eventuais cruzamentos, que permite que organizadores de coletâneas e introduções ao pragmatismo saibam, mesmo com alguma variação, quem nelas incluir. Nesse sentido, o texto que se segue - como dissemos, apenas um esboço - sugere uma leitura das Teses desde um ponto de vista pragmatista que irá adquirindo contornos na sua própria exposição, num duplo movimento de aproximação e crítica imanente, no qual autores pragmatistas e suas formulações poderão ser invocados de modo ilustrativo, sem que isso signifique que estou operando ecleticamente, por sobreposição.
Não obstante isso, como ajuda adicional ao leitor não especializado, agrego ao que já foi dito o que pode ser considerado um ground zero do pragmatismo. Para começar, a definição de crença, do escocês Alexander Bain, como - bem sucedido - hábito de ação, como um juízo “com base no qual se está disposto a agir” - juízo prático, portanto. Pois tal definição aparece como artigo de fé invocado com igual aprovação por uma variedade de pragmatistas, desde Rorty, num extremo, a Peirce, no outro; uma definição da qual, ademais, este último diz ser o pragmatismo “pouco mais do que um corolário.” O que nos conduz à chamada máxima do pragmatismo, do próprio Peirce, segundo a qual, bem entendida, a concepção de um objeto é a dos seus “efeitos de alcance prático.” Pois boa parte do desenvolvimento da tradição pragmatista pode ser compreendida como envolvendo derivações dessa máxima (com diferentes versões já em Peirce), que, como “corolário” da definição de Bain, implica em “traduzir” nossas concepções, tanto em termos do comportamento das coisas em relação a nós, como do nosso em relação a elas, dois lados de uma mesma moeda. Por sobre isso, enfim, há ainda, não apenas a implicação recíproca de conhecimento, ação e propósitos humanos, como duas outras, relacionadas, mais difíceis de esclarecer aqui: a de conhecimento com interpretação e intersubjetividade, e a de ação e conhecimento com normatividade.

2. O real como atividade sensível e como história vc a duplicação essencialista da prática
Nas Teses, na primeira delas (depois, na quinta), Marx entende que a realidade (Wirklichkeit) deve ser apreendida, não contemplativa ou passivamente, não apenas como “objeto sensível” ou “intuição (Anschauung) sensível,” como no empirismo ou “materialismo anterior.” Não deve ser captada - a realidade, o “mundo sensível” (Sinnlichkeit) tomado como sinônimo - nem mesmo como matéria ou natureza, mas como “atividade humana sensível,” como “prática”, e isso significa que ela deve ser apreendida também como “subjetiva” (intersubjetiva, preferiríamos hoje). Ao mesmo tempo objetiva (sensível, material) e subjetiva (humana, histórica), a realidade é, para Marx, a atividade prático-social dos homens, que de outra parte constitui seu próprio meio (sensível, material, mas histórico, não natural, não dado, não separado deles): o contexto onde coisas e fenômenos humanos devem inteiramente caber. A Ideologia Alemã refere-se a essa realidade em devir também como História e Processo Vital, que associa ainda a noções como “modo de vida” (Lebensweise) e “modo de produção” (Produktionsweise), seu núcleo duro, que dão a idéia de um contexto não só em devir, mas também desdobrado, estruturado, pois na prática os homens estabelecem relações - até aqui fixadas - entre si. Essas são noções que ademais aproximam-se de uma concepção materialista de cultura, de uma idéia de “espírito objetivo” e de “substância social”, que apontam para a superação do dualismo rígido sujeito-objeto (no plano da realidade como do conhecimento), na sua forma mais classicamente moderna, cartesiana. A primeira seção da Ideologia Alemã chega a definir o real e o homem como uma coisa só, justamente como atividade sensível, enquanto duas faces de um só Processo Vital (em última análise a Produção e as relações que ela estabelece) - o que parece dissolver, num grande Curso Real, toda particularidade e empiria.
Esse é o materialismo prático introduzido pelas Teses como superação, informada pelo idealismo alemão, do empirismo intuicionista-representacionista, cartesiano-lockeano, robinsonista, que Marx chama de materialismo anterior, atrelado ao que para Dewey é o “ponto de vista do espectador” - de um homem exterior ao mundo, de um mundo exterior ao homem, e de ambos como “fixados” por suas relações. De modo análogo às Teses, e com preocupações semelhantes, de trazer a filosofia para o mundo sem abrir mão do ideal, William James entende seu pragmatismo como uma terceira via entre empirismo e racionalismo, entre realismo e idealismo. O fato é que, envolvido ao mesmo tempo com os fatos e com o ideal, o novo materialismo prático de Marx permite entender o contexto dos homens como em devir e como “história” (das relações entre eles), com uma referência forte de futuro - o que faria dele algo como um pragmatismo histórico. Isso, entretanto, em termos, pois a história de Marx (veja-se novamente A Ideologia Alemã) é antes um processo bastante fechado, com um futuro fechado, onde a admissão da contingência deve ser superada pelo reconhecimento consciente de uma necessidade racional-dialética prevalente, ao tempo em que quer ser a moldura que dá a cada evento particular seu significado propriamente histórico. Por isso, na consagrada concepção materialista da história, a atividade humana sensível, orientada para o futuro, não encontra um campo de possibilidades abertas, nem realiza qualquer criação digna do nome, como posições pragmatistas tradicionalmente gostariam. Em compensação, ela consegue prover os juízos de valor de Marx com uma força incomparável, pela definição e garantia de um Telos, Ideal ou Bem (absoluto, porque incontrastável), a Sociedade Humana ou Humanidade Social, que deve dar sentido último às ações dos homens. Coisa também sustentada, de outra forma, em versão mais fraca, apenas como esperança razoável, no pragmatismo de Peirce. Em todo caso, marxismo e pragmatismo são modos de pensar que tratam de introduzir no pensamento filosófico não só um senso prático-ativo, mas igualmente um senso prático-normativo. Apenas, no caso de Marx, não é simplesmente a “História” que tem proeminência nesse papel, mas, em associação com ela, nas Teses, a idéia de uma “essência” do homem que teria seu lugar nas relações sociais em desenvolvimento. Coisa que retorna no Capital, creio eu, de modo “cientificamente” reelaborado, com resultados “normativo-transcendentalizados” ainda mais fortes.
A atividade sensível, prática, social, dos homens, subjetiva mas também objetiva, vai ser entendida por Marx - estreitamente, pode ser dito - como Produção (sua “Prática das práticas”), como trabalho humano sobre a natureza; ou seja, alegam seus críticos, como ação instrumental apenas, e não devidamente apreciada na especificidade de sua dimensão humana de interação, dos homens entre si enquanto sujeitos, de intersubjetividade. Creio que há, no entanto, um problema mais relevante a destacar, desde um ponto-de-vista pragmatista, na compreensão marxiana da realidade como prática, nas Teses. O problema é que, depois de definir o real como objetivo-subjetivo, enquanto atividade humana sensível, e de parecer flexibilizar por essa via oposições binárias e dualismos estritos da velha filosofia, a Tese Primeira faz uma rígida distinção de valor, e começa a construir uma rígida oposição e uma hierarquia, entre dois tipos de prática. De um lado, uma atividade superior, legítima, universal; de outro, uma prática não “genuinamente humana,” que traz a marca da separação e da particularidade - ao que parece, a atividade da maioria dos homens. Esta segunda é a atividade deles enquanto parte da sociedade civil (bürgerlich Gesellschaft), em sua dispersão e mútua oposição, determinadas em última análise pela divisão do trabalho, tomada como um mal e uma perversão das coisas. É essa segunda prática, que Marx vai considerar como falsa e corrompida, que as Teses chamam de “suja” e “judaica” (egoísta, no feuerbachês da Essência do Cristianismo), além de “fixada”, “fenomênica”, “forma aparente” (Erscheinungsform) - em oposição à outra, que é “essencial” e “genuinamente humana” (echt menschliche).
Em última análise, é à esfera da prática ordinária que pertence, Marx nos dirá bem mais adiante, nas Teses Nove e Dez, o materialismo intuicionista-sensível, próprio da perspectiva (Standpunkt) da Sociedade Civil. As Teses dispõem-se a caracterizar, tanto essa concepção materialista-empirista, como aquela atividade prática estreita, que também criticam, como do nível da aparência, da superfície; enquanto a outra, por oposição, seria de fundo e essencial, e, de certo modo, teórica e crítica. Isso no sentido de conforme à razão, iluminada e justificada pela “teoria alemã,” análoga, assim, à prática intelectual (idealizada, naturalmente): desinteressada e universal. Marx teria aqui a oportunidade de associar a suposta universalidade e racionalidade dessa boa prática à ampla interação política entre os homens, e à autoridade de uma intersubjetividade agonística, no âmbito da esfera pública, mais do que à sua teoria transcendental pessoal. As Teses, porém, têm suas razões para evitar esse caminho, que para Marx seria justamente um perder-se no nível da superfície e das aparências do mundo sensível (ao fim e ao cabo, o mundo das trocas mercantis), e deixar o verdadeiramente crítico e revolucionário de lado.
De qualquer modo, as Teses aqui parecem isolar e inferiorizar, em bloco, como alienada, uma esfera que parece incluir a Alltagsleben, a prática ordinária do comum dos homens, orientada para a realização de fins particulares, privados, justamente a que mais se poderia conceber como mundana, citerior, diesseitige. Já a outra prática, superior, melhor denominada pela palavra grega e alemã Praxis (com maiúscula, naturalmente), poderia ser entendida como o trabalho dos homens enquanto socialmente concebido, enquanto atividade cooperativa e universalizada. Mas é, na verdade, em primeiro lugar, a alegada atividade revolucionária, aquela generosa, idealista, iluminada teoricamente, sancionada filosoficamente. Aquela que de algum modo “mimetiza” a atividade produtiva, cooperativa, dos homens, enquanto socialmente orientada, que “replica” o caráter essencialmente - embora, nas condições da divisão (antagonista) do trabalho, oculta e alienadamente - social do trabalho. Algo que só se exibirá e realizará, segundo sua verdade e às claras, num outro contexto, o da futura produção social comunista, uma vez abolidas a divisão do trabalho e a particularista sociedade civil burguesa. Marx, por outro lado, não parece considerar que, enquanto a atividade prática “menor” é orientada pelo interesse particular, a “maior”, enquanto prático-crítica e revolucionária, não estaria orientada apenas pela e para a transformação e auto-transformação virtuosas dos homens, no sentido da universalidade, mas também para a tomada do poder, sendo ainda passível de converter-se, adiante, em atividade burocrática de Estado, separada e acima da sociedade, como portadora ideológica do suposto interesse humano - ou proletário - geral.
Por essas e outras, uma posição pragmatista certamente não desejaria desqualificar as práticas do comum dos homens, bem como as concepções que lhe correspondam, em nome de outra prática inteiramente superior e distinta, estabelecida pela teoria ou pela ciência e prescrita pela própria realidade. Nem enfrentaria para isso o risco de assumir, sob nova forma, o dualismo essência-aparência da filosofia tradicional, em que Marx vai cada vez mais se enredar, até sua culminância no Das Kapital. De todo modo, as Teses partem de uma concepção de realidade como atividade sensível, como a concepção que corresponde às necessidades de transformação radical da sociedade e a potencialidades postas pela dinâmica dessa realidade nova, a Modernidade, como lida “teoricamente” (dialético-hegelianamente) por Marx. E é o instrumental teórico a partir daí desenvolvido, seu “materialismo prático-normativo” (Marx oferece “comunismo” como sinônimo, na Ideologia Alemã), um materialismo histórico-dialético, que vai aos poucos nos parecer cada vez menos simplesmente materialista e prático, e cada vez mais essencial-transcendentalista, como ainda veremos adiante.
Logo na Tese Terceira, Marx vai, entretanto, investir ele próprio contra uma divisão semelhante àquela que faz entre práticas, acreditando poder prevenir sua consumação justamente pelas virtudes de sua noção de atividade revolucionária prático-crítica (introduzindo aqui sua tematização epistemológico-política). Marx fala aí do problema trazido à realidade e à prática por uma forma equivocada de pensamento (e não o contrário, como pretende fazer a maior parte do tempo). Numa crítica à permanência de vícios da filosofia anterior mesmo numa “doutrina materialista” voltada para transformação da realidade e dos homens, a Tese Três entende que os reformadores materialistas que pensam “transformar as circunstâncias” para “transformarem” e “educarem” os homens, acabam por colocar-se acima desses, tomados, então, como simples objetos ou produtos. Quando deveriam atentar para o fato de que, se os homens são transformados pelo meio, “são eles próprios que o transformam,” e que os educadores precisam ser igualmente transformados. Embora Marx aqui pareça aceitar uma problemática divisão, paternalista, de papéis (educadores, de um lado, e educandos, de outro, mesmo que para concluir com a famosa tirada de que “o educador deve ser educado,” socializado), ele acredita poder resolver o problema dessa hierarquização fazendo coincidir três dimensões da atividade sensível: 1) a prática de “transformação das circunstâncias” (entenda-se, a intervenção dos “reformadores”), e 2) “a atividade humana” (a atividade espontânea dos homens, ou pelo menos dos trabalhadores), com 3) o movimento de “auto-transformação” da realidade (que para Marx já tem objetivamente o Sentido de constituir os homens como plenamente sociais) - no interior do qual, como atividade sensível, afinal de contas tudo se dá. Marx imagina encontrar essa feliz e absoluta coincidência (Zusammenfallen) justamente na superior “prática revolucionária crítica” como “racionalmente entendida” - guiada aparentemente por sua própria Teoria.
A Terceira Tese refere-se à “doutrina materialista” de reformadores sociais do tempo de Marx, que têm na cabeça a Idéia de uma sociedade humanizada e de um homem social/socializado, e que tratam de agir para realizá-la - pela “educação” e pela “transformação das circunstâncias” dos homens. Marx crê que, nesse esforço, aquela doutrina, ainda que materialista e de algum modo prática, pode acabar por “separar a sociedade em duas partes:” de um lado, os que sabem, os agentes, formadores (como o Rei Filósofo de Platão, o Colégio dos Sábios de Saint-Simon, ou outro tipo de Clero ou Sacerdócio qualquer), e, de outro lado, os homens comuns, o povo, os leigos, envolvidos nos negócios humanos e na materialidade empírica do mundo. Uma doutrina assim acabaria mesmo por colocar uma das partes (os “transformadores da sociedade”) acima da outra, mais exatamente “acima da sociedade” toda, constituindo-a como uma espécie de nova e científica Teocracia, enquanto governo dos detentores do acesso à Teoria e ao Ideal. Caso em que ocorreria coisa comparável ao que Marx condena como mais próprio da condição dos homens no Capitalismo: uma instância (no caso, possivelmente o Estado) faz-se grande Sujeito, frente aos homens, reduzidos assim a não-sujeitos, objetos ou coisas. É notável que Marx denuncie, nessa Tese Terceira, uma divisão e hierarquização da sociedade, em dois estamentos, que não aquela decorrente da propriedade privada e da exploração econômica, mas de um saber como “propriedade privada”, que não só não teria a ver com a dominação econômica capitalista mas decorreria de um esforço por sua eliminação.
Se na Terceira Tese fica visto que não é uma sociedade assim hierarquizada que Marx gostaria de promover (um despotismo esclarecido ou uma “estatização” da iniciativa social, aos quais o pragmatismo é francamente avesso), não fica claro, porém, se seu novo e corrigido materialismo poderia afastar seu ideal social inteiramente da vicissitude que critica. Pois parece que Marx logo encontrará para sua teoria uma posição muito acima das - e até oposta às - percepções dos homens comuns; uma visão superior das coisas, que por definição lhes escaparia. Frente a uma verdade tão acima do comum dos homens e de suas práticas, estes ficariam em condição semelhante à que são relegados por Platão, na Alegoria da Caverna: considerados pelo “homem teórico” como ignorantes, alienados da verdadeira realidade e de si mesmos, que tomam por verdade a simples aparência (dos sentidos), que é o inverso do verdadeiro real, inteligível. Marx, porém, de seu lado, tem suas razões para alegar que não incorre nesse erro, justamente por ter em vista a ambicionada coincidência, da intervenção transformadora (sobre as “circunstâncias”), e da atividade espontânea, da massa dos homens, com a dinâmica objetiva (como Autotransformação) do próprio Real (teoricamente apreendida e explicada), no que ele denomina de “prática revolucionária” (como verdadeiro fazer a/da História, como por Marx concebida). As Teses supõem assim que seu materialismo prático-normativo dá conta, como Teoria “transcendental”, do que seria o movimento (dotado objetivamente de Sentido) da própria Realidade, na direção (positiva) que Marx decifraria “cientificamente”, e que a prática nele inspirada apenas trata de objetivamente coincidir com tal movimento. Com efeito, Marx, no início do capítulo II do Manifesto Comunista, declara que “as proposições teóricas dos comunistas não repousam em ideias descobertos por este ou aquele melhorador do mundo; são apenas expressões gerais do movimento histórico diante dos nossos olhos.” É, entretanto, significativo que Engels, quando retocou as Teses décadas depois, tenha, na Tese Três, suprimido a “espontânea” Autotransformação, que integrava o tripé proposto por Marx, e trocado a expressão, mais nobre, “revolutionäre Praxis,” pela aparentemente mais modesta umwälzende (reviradora, subversora) Praxis. Quanto a nós, teríamos desejado que Marx simplesmente entendesse que uma transformação da sociedade seria verdadeira Autotransformação por via de uma democracia mais efetiva e radical, e que unicamente assim ela seria, como ele sugere, “racionalmente [rationell] compreendida.”

4. Verdades e práticas, crenças e contextos vs A perspectiva das perspectivas
Depois de sua tomada de posição com relação à “natureza” da realidade (prática, mas desdobrada em duas), e da nossa relação com ela (Marx parece estar tratando de práticas e posições, não de uma realidade “em si”), as Teses voltam-se para a questão da verdade e do conhecimento (Tese Dois mas também Cinco), e para tanto Marx já preparou o terreno na Tese Primeira. Se a realidade é atividade humana sensível, e nós também somos, então estamos, enquanto conhecedores (mas não só), nela “já sempre” envolvidos, pela ação como pelos sentidos, pelo pensamento (pois seria tolice imaginar uma prática sem pensamento, do mesmo modo que um pensamento dissociado dela) como pela linguagem. Não somos exteriores à realidade, nem ela exterior a nós, nem nós uns aos outros, como indivíduos abstratos, sem relações, como mentes desencarnadas, especulares. De outro lado, a realidade humana sensível, enquanto subjetiva, já sempre está impregnada de atividade humana; logo, de pensamento, conhecimento, crenças e propósitos humanos. Feuerbach, diz a Tese Cinco, “descontente com o pensamento abstrato,” quer afirmar a realidade do sensível como irredutível ao pensamento. Por isso “apela à [verdade da] intuição [sensível]”: porque “quer objetos sensíveis, realmente distintos dos objetos pensados” (Tese Um), ou seja, quer objetos não reduzidos a representações, a imagens em nossas mentes. Do ponto de vista das Teses de Marx, no entanto, Feuerbach não deixará completamente para trás o mentalismo-representacionismo subjetivo - logo, tampouco seu veneno idealista-robinsonista, herdado pelo “materialismo anterior” - se não abandonar inteiramente, do mesmo modo, o sensacionismo-intuicionismo e se não passar a apreender o real como prática humano-sensível, incluindo aí as relações que nela se estabelecem (e das quais o próprio sujeito conhecedor participa).
Disso tudo decorre a posição da Tese Dois a respeito de conhecimento e verdade, posição que Marx caracteriza de “anti-escolástica” (não intelectual-verbalista, não teoricista, suponho), segundo a qual a pergunta pela verdade ou não-verdade objetiva do pensamento humano é respondida apenas “na prática”. Pois “verdade” (Marx poderia dizer “verdade objetivo-subjetiva”) é apenas um nome para “efetividade” (Wirklichkeit, realidade efetiva), “poder” (Macht) e “terrenalidade” (Diesseitigkeit, citerioridade) do pensamento “na prática” (sensível-social, podemos entender). E essa seria a compreensão materialista-prática de verdade e objetividade do pensamento, uma compreensão anti-cética e realista, ao mesmo tempo não comprometida por problemas de correspondentismo e representacionismo, por perplexidades mentalistas céticas sobre o acesso ou não a uma realidade “em si” - a supostos dados imediatos ou certezas auto-evidentes. Pois podemos entender com a Tese Dois que, para o materialista ativo, não se trata simplesmente de tomar a prática como critério da verdade, mas de dar à verdade um sentido prático, recuperando-a para dentro do horizonte da atividade humana sensível, e de lhe dar uma tradução sensível, nas práticas e condutas que sustenta. Desse modo, trata-se de associar o valor de verdade de um pensamento ao seu poder para realizar alguma coisa, no trato ativo, prático-sensível, com o mundo - como ferramenta, em vez de retrato mental da realidade. “É na prática que o ser humano deve demonstrar a verdade de seu pensamento” - donde pode-se ainda perguntar: demonstrar a quem?, pois Marx está falando da prática envolvida na superação de uma disputa (Streit) sobre a verdade. E a resposta só pode ser: a outros homens - com o que se completaria a terrenalidade e prático-humanidade do pensamento, não havendo para eles, os homens, outra verdade para além dessa. Isso tudo devendo conduzir, supomos, a uma atitude experimentalista, falibilista, com respeito ao conhecimento, aquela natural de um materialismo prático-ativo. Entretanto, é o caso de também indagar: onde está essa atitude, nas Teses ou mesmo fora delas, a obra de Marx?
Na Ideologia Alemã, Marx refere-se aos desvios não-práticos, contemplativos (anschauungen), não apenas do materialismo anterior, mas também do “platonismo” da filosofia tradicional, pondo sua origem na divisão de classes das sociedades hierárquicas, pré-modernas, de modo semelhante ao que fará Dewey no Reconstrução em Filosofia. Marx vê a separação social entre trabalho intelectual, da aristocracia dominante, e trabalho prático-mundano, dos homens comuns, por trás das concepções do conhecimento verdadeiro como inteligível puro, como acesso a essências supra-sensíveis, pelo “homem teórico” - como filósofo, padre ou sacerdote. E, de outro lado (do lado “de baixo”), relegado à superfície e ao inessencial, o “falso conhecimento” dos homens comuns, o “impuro” conhecimento prático-sensível, envolvido nos negócios humanos e na materialidade do mundo. Por essa divisão é que o pensamento teria podido imaginar-se “emancipado” do mundo, separado da atividade prática dos homens, “passado à formulação da Teoria pura e da Filosofia pura” e à construção sobre idéias de permanência e essência, sobre noções transcendentais de verdade e razão. Dewey critica de maneira semelhante o “paradigma grego” de conhecimento, não experimentalista, não prático, condenando também o modelo da filosofia tradicional, de sistema, e sua noção contemplativa de razão. Tudo isso correspondendo, para Dewey, à “situação pré-democrática do mundo,” aquela de sociedades estáticas hierárquicas, como também, nas sociedades modernas, à remanescente cultura intelectualista, sem sentido experimental-transformador.
A Tese Dois (junto com a Onze, final, que conclama a “transformar o mundo”) é provavelmente aquilo que aparece, para qualquer leitura superficial, como a expressão mais pragmatista das Teses - como Bertrand Russell as invocou no debate com o experimentalismo e instrumentalismo de Dewey (para quem o conhecimento é sobretudo uma prática e uma ferramenta). A Tese Dois de fato lembra - ao relacionar verdade com poder e efetividade de um pensamento - as opiniões mais comuns acerca da noção de verdade no campo do pragmatismo, em geral aquela atribuída a William James, mas também ao próprio Dewey: verdade e conhecimento como o que resolve problemas, o que funciona na prática, o que dá certo, com que se obtém sucesso. Verdade como aquilo que é útil ou expediente, ou mesmo, no extremo, como a qualidade de uma crença de ter consequências subjetivamente boas - agradáveis, confortadoras ou interessantes - de tipo existencial. Do lado do marxismo tradicional, o mais comum é retrucar que, enquanto para o pragmatismo o que funciona é verdadeiro, para Marx aquilo que é objetivamente verdadeiro funciona (além de que, claro, não se deveria deixar de perguntar para quem funciona). O que, entretanto, deixa ao materialista prático a tarefa de dar prático-materialistamente conta da distinção entre as duas coisas: de estabelecer a verdade objetiva em isolamento da prática - isto é, de fora do horizonte do simples trato com o mundo e com os homens. De qualquer maneira, o fato é que ambos, pragmatismo e materialismo prático-ativo, falam de pensamentos e idéias não como simples asserções desligadas da vida, mas como crenças que nos orientam na prática (e que podem ser verificadas por outros) - como juízos práticos ou guias para a ação. E falam, por isso, de dúvidas e divergências quanto à verdade e ao significado de um pensamento como decidíveis socialmente, no debate (Streit), além de definíveis apenas na prática e postas na prática e pela prática.
Com efeito, mais adiante, as Teses, quanto ao conhecimento, tratam de estender a associação de racional não só a prático como também a social - em oposição, dessa vez, não apenas a escolástico mas a místico. Tratando não mais da verdade, porém agora do erro e da ilusão, Marx acrescenta, na Tese Oito, que as complicações que acometem o pensamento teórico, “os mistérios que seduzem a Teoria para o misticismo” (convenhamos, mais na sua Alemanha) encontram sua correção - “sua solução racional” - “na prática social humana e na compreensão da mesma.” Poderíamos entender que as Teses estão aqui advogando não só uma “tradução” prático-social dos problemas em que a filosofia-teoria se perde, mas também defendendo uma recuperação dela para a esfera social, pública, não apenas se envolvendo em seus problemas reais como também encontrando aí a medida de sua racionalidade. Afinal, com já sugerimos, Marx, que quer ser comunista e não individualista-robinsonista, haveria de encontrar para o social e o público, como pragmatistas em geral fazem, um papel vantajoso na produção/correção da sã compreensão das coisas, para longe de uma recaída no solipsista paradigma cartesiano, isto é, no entendimento individualista-subjetivo do conhecimento. Mas não estou certo de que é bem isso que Marx faz na Tese Oito, pois, para ele, o social existente, em seu estado presente, distorcido, alienado, mais atrapalha do que ajuda o pensamento, que retornaria, então, para sua salvação, à cartesiana mente individual-teórica (no caso, a dele). Ainda assim poderia haver uma tensão no seu pensamento a respeito, mesmo que ele entenda, ao fim e ao cabo, que é sua compreensão teórico-alemã das coisas que desvela a raiz social de “complicações” com que se bate a teoria na mão de outros de seus representantes.
Outro aspecto a ser sublinhado, da Tese Um em relação às Teses Dois e Oito (e logo a Dez), é que o pensamento e o conhecimento, para o materialismo prático histórico, como possivelmente para todos os pragmatistas, não “têm a ver” apenas com suas consequências práticas, mas também com suas antecedências práticas e com suas circunstâncias não meramente individuais-subjetivas. Afinal de contas, para Marx, é a existência que determina a consciência: conhecimento, crenças e concepções “têm a ver” com as práticas não meramente individuais no interior das quais se desenvolvem, e, de modo mais geral, com as circunstâncias e os problemas postos por elas, a que tratam de responder. A propósito de semelhante enraizamento ou imbricação, Marx sugere, na primeira parte da Ideologia Alemã, que mesmo a chamada “ciência pura” é indissociável dos propósitos e práticas que a promovem ou sustentam, tanto quanto do contexto social que lhe oferece seus materiais e finalidades. Tal contexto social e tal determinação prática do conhecimento - mesmo do científico-natural - são representados essencialmente, segundo ele (que infelizmente não divisa a noção de comunidade científica), pela industrialização e, de modo mais geral, pela dinâmica social e econômica (e também política) da Modernidade capitalista - justamente a “realidade como atividade humana sensível” do seu tempo histórico.
A respeito desse enraizamento, o mais interessante, porém, está sugerido por Marx nas Teses Nove e Dez, que propõem que o ponto-de-vista epistemológico empirista-intuicionista, cartesiano-lockeano, mentalista-solipsista, mesmo em sua versão materialista, não consegue - “robinsonicamente” - ver mais do que os “indivíduos isolados da sociedade civil”, que isso é “o mais elevado” a que pode chegar, e finalmente que ela, a sociedade civil, é também o seu lugar e a posição (Standkpunkt) a que pertence. Ou seja, que é assim que aquele paradigma epistemológico consegue ver “objetivamente” os homens, e que, ao mesmo tempo, ele seria também o que “brota” naquela esfera, da experiência no seu interior e das práticas fragmentadas que a constituem. Podemos entender, reportando-nos à Tese Um, que as práticas e relações dessa esfera são para Marx aquelas egoístas, fixadas, particularistas, as quais, reportando-nos agora ao que conhecemos da sua crítica da economia política, correspondem à concorrência e à circulação, enquanto falsa comunidade - e que, portanto, são em última análise também esses os defeitos, individualistas, do materialismo empirista. Aliás, tendo em conta que o materialismo prático normativo das Teses percebe a pluralidade e multiplicidade, social e de pensamento, como redutível a dois Standpunkten opostos (um dos quais, o de Marx), podemos entender que “o idealismo abstrato que não conhece a atividade sensível,” do mesmo modo que toda outra forma de pensar as coisas, que não a divisada por Marx, pertence em última análise igualmente àquela esfera e a corrobora - um ponto ao qual ainda voltaremos.
De todo modo, o que nos interessa é que a imbricação de conhecimento, crenças e concepções, na atividade humana social-sensível (e não na mente especular dos indivíduos avulsos), como desdobrada em múltiplas práticas e circunstâncias, poderia na verdade sustentar, no plano político e social, um perspectivismo ao mesmo tempo pluralista e realista (isto é, não subjetivista nem relativista), que articula concepções e crenças a práticas e posições sociais, através da noção de Standpunkt, como posição/posicionamento. Para o materialista prático normativo, essas perspectivas têm “fundamento” na sociedade, onde, por isso mesmo, umas poderiam mostrar-se como “objetivamente” melhores (mais includentes, p. ex.), mais interessantes, mais livres, mais viáveis (articuláveis a interesses reais, p. ex.), produtivas etc. do que outras, sem necessidade do apelo a essencializações ou fundamentos transcendentes. Uma maneira perspectivista de ver as coisas que, de outro lado, só descambaria para a absolutização de uma única perspectiva/posição, como “perspectiva das perspectivas” e “posição das posições”, pelo recurso ao dogmatismo de uma leitura fechada e única da realidade social como um todo, mas também, eventualmente, por um “fechamento” objetivo e uma polarização, transitórios ou não, dessa própria realidade. É, entretanto, justamente atrás dessa perspectiva (respaldada por um correspondente diagnóstico da realidade), que Marx infelizmente está: de onde, em plena Modernidade, voltar a instaurar uma única perspectiva e a partir dela julgar todas as coisas e, sobretudo, todas as demais perspectivas e expressões de pensamento - como acontecia na Cristandade.
Com efeito, diz a Teses Dez, “o ponto de vista do velho materialismo é a sociedade civil,” enquanto que “o ponto de vista do novo materialismo é a Sociedade Humanizada (menschliche) ou Humanidade Social”. Ora, a Sociedade Humana sequer existe (como lugar ou posição real), e a Sociedade Civil, existente, já é simplesmente o seu contrário, de sorte que tal ponto de vista “humano” chega a aparecer, nas Teses, como ponto-de-vista desde posição nenhuma, desde lugar algum ou “desde Deus” (segundo as expressivas metáforas críticas de alguns filósofos contemporâneos pragmatistizantes), e não como provindo de dentro da própria sociedade, dos homens empiricamente aí existentes. Quando na verdade as práticas e movimentos, aspirações e idealizações humanas, nascidas empiricamente e empiricamente constatáveis, seriam possivelmente a única “fundamentação” propriamente materialista-prática, quiçá pragmatista, para toda e qualquer normatividade que se pretenda não metafísica nem teológica. E, nesse caso, a única “Perspectiva das perspectivas” possível passaria a ser a democracia, contanto que nela envolvidas a disputa, sempre política, pela sua verdadeira concepção e o embate pela sua permanente e infindável realização. Pois não haveria como não dogmaticamente comparar perspectivas, fora de uma perspectiva e de uma prática, nem como estabelecer uma perspectiva julgadora superior, neutra. Donde então uma inevitável agonística entre elas, coisa aparentemente não prevista nem pelo velho materialismo nem pelo novo, das Teses. Marx, como veremos, porém, não quer saber de seguir por aí; de um lado, trata de oferecer aos homens um fundamento normativo único, algo como a essência humana ou como uma determinação única, inscrita no real essencial; de outro, sempre se concebendo como inteiramente apoiado na realidade empírica, trata de fazê-lo de um modo tal que sua teoria tenha como validar-se a si mesma por cima da cabeça dos homens. A seu favor, entretanto, pode-se perguntar: Não tem sido esse o propósito de toda boa via de conhecimento e o sonho da filosofia clássica desde Platão, que Marx agora pretende justamente assumir e realizar?
No fim de contas, apesar de tudo, as Teses deixam duas outras “sugestões” para um pluralismo não-relativista, de perspectivas e vocabulários (ou mesmo jogos de linguagem). Elas expressamente restringem a oposição de seu próprio ponto-de-vista crítico-prático, tanto ao empirismo intuicionista do “materialismo anterior”, na Tese Primeira, quanto, na Tese Onze, a última, ao Interpretieren (o interpretar) dos “filósofos” (que ele chamaria de idealistas históricos e nós de hermenêutico-narrativos), à alegação de que eles apenas (nur) fazem menos do que Marx gostaria, menos do que o apropriado a uma transformação revolucionária e comunista da sociedade. Não estaria excluído em princípio, porém, que o paradigma empirista possa servir a outras práticas que tenham lugar na sociedade (v.g. à investigação no campo da ciência natural ou à solução de problemas mais circunscritos) ou que o paradigma hermenêutico (o da interpretação) faça sentido no campo da cultura e da crítica das idéias. Sem que isso implique no relativismo de excluir que esses pontos-de-vista ou quaisquer outros (mas também o de Marx) possam ser criticados, melhorados ou descartados. Apenas não o seriam desde o ponto-de-visa de um vocabulário absoluto, nem da pretensão de redução de todos os vocabulários a um vocabulário único, para todas as práticas e posições, nem mesmo, como já mencionado, algum vocabulário alegadamente neutro com relação a todas elas. Marx, entretanto, vai ainda assim propor seu ponto de vista humano como Perspectiva de todas as perspectivas, atribuindo-lhe mais adiante uma “posição” ou Standpunkt, empírica, no interior da Sociedade Civil, aquela do Proletariado (nada menos que herdeiro da filosofia clássica alemã). De fato, se os trabalhadores forem materialistas práticos comunistas e tiverem mesmo o “lugar” que Marx lhes atribui na dinâmica que ele supostamente “reproduz” no seu pensamento, isso lhe seria suficiente fundamento, e ele poderia de fato sustentar suas pretensões “monopolistas” de pensamento sem se converter em simples pregoeiro de uma nova religião revelada.

Conclusão: Desduplicação prática da suposta duplicação “platônico-cristã” do mundo: essência, fundamento e normatividade transcendental
Vimos até aqui, na exposição do materialismo prático-normativo das Teses, a realidade social como prática sensível (mas, para Marx, desdobrada em duas e fragmentada em múltiplos indivíduos “abstratos”), e vimos o pensamento e o conhecimento como dotados de sentido e inserção prático-sociais (mas, por isso mesmo, do ponto-de-vista de Marx, necessariamente deformados pelo contexto desdobrado/cindido). Agora, o materialismo prático de Marx vai lidar diretamente com o problema desse suposto (ou construído) desdobramento radical do Mundo, pondo a partir daí o imperativo ativista da desduplicação prática (sensível, material) de um real objetivamente cindido e fixado. Enfim, as Teses vão ocupar-se agora do todo da sociedade e do que haveria de essencialmente errado com ela (que Feuerbach não chegaria a ver direito); e vão fazê-lo, curiosamente, partindo nada menos que da religião como ideal humano-universal alienado e como sintoma. Pois é aqui que o materialismo prático das Teses encara de frente o problema da normatividade e do ideal (do “fim último” das ações humanas), buscando para eles um fundamento intra-mundano que, entretanto, parece colocado objetivamente para além do que se pode encontrar empiricamente na sociedade civil, como percepções e aspirações manifestas de homens existentes.
As Teses vão dar às relações sociais (de produção) o caráter de “essência” (ocultada), do real e dos homens, e submetê-la tacitamente à medida do “autenticamente humano” (ainda não existente), em oposição à divisão e à fragmentação da sociedade civil moderna, onde o “autenticamente humano,” para Marx, não está. É a formulação “essencialista” das Teses e sua construção “transcendentalizante” do fundamento terreno que ao final transformam seu materialismo prático em materialismo transcendental (em vez de pragmatista), por isso envolvido com uma tácita rejeição da política e do político, uma rejeição comparável à do empirismo-liberalismo que ele critica (e do “platonismo” de que se aproxima), e para isso cativo de uma recaída teoricista no mentalismo solipsista-cartesiano, numa versão magnificada do robinsonismo burguês. Pois tudo isso está por trás da concisa conclusão das Teses, isto é, do seu imperativo, aparentemente pragmatista, de transformar o mundo, em vez de apenas “pensá-lo” - a Tese Onze.
Feuerbach, diz a Quarta Tese, não vai muito além da decifração do “segredo” da religião, ou seja, da descoberta do “fato” da “auto-alienação religiosa” do homem, da “duplicação do mundo, em mundano e religioso,” em real, depreciado, e ideal, transcendentalizado, separação essa tomada, então, como o grande Mal e Descaminho. A Crítica feurbachiana limitar-se-ia a dar o passo de traduzir (as Teses dizem resolver/dissolver: auflösen) a religião “em seu Fundamento mundano” (em humanismo real, Marx poderia também dizer), ao revelar que Deus (o Fundamento celeste) é apenas uma projeção de si mesmo do homem, uma projeção distorcida de sua verdadeira essência (o Fundamento terrestre). Com essa interpretação supostamente decifradora, Feuerbach pensaria ter resolvido, com seu humanismo generoso, o problema do empobrecimento da vida humana e das relações entre os homens, como introduzido pela alienação/religião (e perpetuado no protestantismo e mesmo no secularismo modernos). Mas na verdade ele deixaria ainda de fazer o principal, que é entender por que o Fundamento humano “separa-se de si mesmo e se fixa num Reino autônomo, nas nuvens” - autonomizando-se com relação aos homens.
A religião seria algo como que um sintoma e signo, um fato que “só se explica” - a Tese Quatro trata de adiantar - “pelo auto-dilaceramento e pelo auto-contradizer-se” daquele Fundamento, aqui embaixo. “É tal Fundamento [terreno], portanto, que tem de ser compreendido em sua contradição” (para Marx, sua tarefa teórica coroada no Capital), e principalmente (aqui as Teses começam a introduzir seu dever-ser) “tem de ser revolucionado na prática.” Em que direção, Marx ainda não explicita na Tese Quatro, mas de qualquer forma esse agora seria o verdadeiro fim da alienação “terrena” (logo, também da religiosa, seu sintoma), e é esse o imperativo categórico (como explicita a Ideologia Alemã) que as Teses têm para oferecer aos homens, na Tese Onze. Quanto ao que Marx define como fundamento para sua Prescrição, posso reiterar que não serão propriamente as percepções aspirações dos homens reais (nem mesmo dos trabalhadores), de dentro da sociedade civil, como eles as tenham, empiricamente verificáveis, como pragmatistas gostariam e como materialistas práticos não-transcendentalizados, mesmo normativos e críticos, poderiam defender. Em vez disso, o fundamento se estabelece como, em princípio, transcendente àquelas, aparecendo aqui como o que eles (os homens) apenas expressam, inconsciente e distorcidamente, na religião. Pois é na realidade, pelas “más” relações que estabelecem na prática produtora, que as circunstâncias humanas se autonomizam em relação aos homens, passando a submetê-los e determiná-los - até no rumo ao comunismo.
O fato de a Tese Quatro recorrer tantas vezes ao prefixo “auto-” explica-se por sua peculiar perspectiva teórico-alemã de totalidade e unidade para o mundo humano como uma espécie de macro-sujeito. Uma perspectiva tal que, para ela, se os homens estão separados e a sociedade dividida, “o homem” está separado/estranhado de si mesmo, em contradição consigo mesmo, e “a sociedade” (ou “o mundo humano”) está despedaçada-dilacerada e oposta a si mesma. Assim, “homem” e “sociedade” (aqui, a mesma coisa), nas atuais condições, literalmente auto-contradizem-se, negam-se a si mesmos; com o que, ao mesmo tempo, fica estabelecida, por sobre a aparente dispersão dos homens isolados, uma redução “dialética” das diferenças e oposições sociais a um par único de contraditórios. Para o idealismo alemão (com recurso ao qual as Teses se batem aqui contra a Modernidade como empirismo-liberalismo), a unidade (ou totalidade) é pressuposta e a divisão um erro e uma passagem. A unidade está no começo, e no fim deve retornar, restando então a tarefa “teórico-prática” de eliminar - por um salto dialético - a “grande contradição” e de reconciliar a sociedade com ela mesma, como um Nós em sentido forte, uno e substancial.
De outro lado, a Tese Quatro não só toma como um fato a suposta auto-alienação religiosa do homem, “revelada” por Feuerbach; ela também põe a crítica feuerbachiana da religião (na leitura de Marx) como premissa da passagem marxiana da crítica da religião à crítica da sociedade - e ao imperativo da supressão pratico-ativa da alienação. Nesse sentido, é oportuno registrar que o diagnóstico hermenêutico feuerbachiano refere-se na verdade não a algo como “a religião” em geral, mas ao Cristianismo em particular. Em segundo lugar, que o ateísmo feuerbchiano tem declaradamente a intenção, não de negar, mas de resgatar, fortalecer e realizar, como humano, o núcleo de valores e sentimentos do Cristianismo - apenas despojando-os de sua deformação subjetivista-individualista, original. Ao fim e ao cabo, então, é de certo modo o Cristianismo que é pressuposto pelo Marx das Teses; dele parece sair aqui seu Fundamento, ainda quando Marx dá seu passo à frente com relação a Feuerbach. Uma dependência da qual Marx certamente gostaria de tomar distância, como de fato fará.
Essas coisas todas ficam mais claras na Tese Seis, que retoma a tradução-transformação feuerbachiana do Cristianismo em humanismo, só que agora referindo-se a essa metamorfose ateísta-crítica expressamente como resgate da essência do homem. “Feuerbach resolve a essência religiosa [Deus] na essência humana [genérica]” - trazendo dessa maneira o Céu para a Terra, a Idéia para o Sensível. A questão agora enfrentada, porém, não é mais somente que a duplicação religiosa do mundo resulta de uma divisão na essência real (ou na realidade essencial) dos homens, nas suas relações, aqui embaixo. Tal divisão-duplicação também implica na “dispersão” dos homens, como indivíduos avulsos, não-sociais, na sociedade civil. Assim é que a essência humana (ou o ideal humano recuperado do Cristianismo), retornada ao mundo por Feuerbach, encontra “cá embaixo”, como sociedade, aponta a Tese Seis, um conjunto atomizado de indivíduos avulsos, concorrentes e contrapostos entre si pelo “conjunto das relações sociais” vigentes (da produção capitalista e da correspondente divisão do trabalho), “em cuja crítica Feuerbach não entra”. A verdadeira essência humana (projetada-deformada no Cristianismo), que seria o oposto daquela fragmentação, não poderia, para Marx, digamos, “vestir-lhes” direito, assim sem mais, permanecendo, então, nas atuais condições, como um ideal abstrato para indivíduos abstratos - tudo o que Marx não quer que aconteça. Isso, entretanto, seria o máximo a que Feuerbach chega “abstraindo do Curso da História” - justamente por não perceber o real como atividade sensível desdobrada,cidida, e por assim “pressupor esse indivíduo abstrato e isolado,” que ele (Tese Sete) “não vê que pertence a uma forma social determinada,” a sociedade civil moderna.
Et-voilá a razão da preocupação central das Teses (começando pela Tese Um) com a empirista intuição sensível, resumida finalmente na Tese Nove: “O mais alto a que chega o materialismo intuitivo, que não compreende o mundo sensível como atividade prática, é a intuição dos indivíduos avulsos e da Sociedade Civil” - no nível da aparência, devemos entender. É a isso que, em seguida, a Tese Dez, a penúltima, trata por sua vez de contrapor o Standpunkt, pelo visto não intuicionista-sensível, mas materialista prático, comunista, da - ainda inexistente - Sociedade Humana. O que nos sugere, entre outras coisas, uma questão de epistemologia política, isto é, uma pergunta pelo que seria uma epistemologia politicamente melhor, superior à liberal-empirista: uma que corresponda à transformação ou constituição “humana” - para nós, “democrática” - da sociedade. Qualquer que seja a resposta a essa questão (e uma delas me parece ser o pragmatismo), creio que o materialismo prático-ativo das Teses poderia conceber o conhecimento como prático-social-normativo, e o real como atividade sensível relacional, em oposição ao individualismo e ao nominalismo (pois é disso que se trata), de um modo melhor e mais completo do que conseguiria afinal Marx, mesmo depois das Teses. E poderia obter resultados normativos e solidários, políticos e sociais, também melhores, sem precisar enveredar por uma “essencialização” do humano, ou por uma “transcendentalização” do ideal (ou de sua base real), que ele insiste em herdar e traduzir da filosofia clássica (idealista e metafísica). Quando deveria substituí-las alegremente por um interesse acrescido pelas aspirações e práticas renovadoras dos homens e mulheres reais existentes, e por suas demandas reais em desenvolvimento, por uma sociedade cada vez mais democrática, no interior da própria Sociedade Civil existente.
Quem sabe Marx deveria ter pensado na democracia como resposta ao problema da alienação, em versão menos alemã, não genérico-essencializada. Pois ele poderia imaginar que, numa democracia mais efetiva e pluralista, seres humanos mais empoderados (individual, grupal e socialmente; cultural, política e economicamente), haveriam de ganhar maior autonomia e de fazer mais efetivamente sua a realidade humana que os cerca (seja ela o Estado, a sociedade, as instituições, etc.), trazendo as circunstâncias econômicas, políticas, sociais, culturais, etc., que afinal são sua própria criação, para mais perto deles mesmos, tendo assim maior controle sobre suas próprias vidas. Marx, entretanto, só acha isso possível, de forma infinitamente mais completa, numa sociedade sem contradições (constituída por homens plenamente sociais, superada em toda parte a divisão do trabalho e a propriedade privada, bem como superado o conflito político legítimo), ou seja, na sociedade socialista e comunista, sua Sociedade Humana. Por isso, quando Marx conclui as Teses afirmando que se trata de transformar o mundo, trata-se mesmo de uma transformação filosófico-alemã, uma transformação comunista, o fim da “auto-alienação” do homem - ou coisa comparável.
Preparando a conclusão consumada na Teses Onze, as Teses Seis e Sete introduzem ainda, apesar de tudo, um elemento “pragmatista” que merece nosso registro, ao fazerem referência ao que se pode entender como resgate do sentimento humano (Gemüt, coração, ânimo) expresso na religião. Uma consideração que poderia não ser malvista por pragmatistas, para quem, no conhecimento como na ação, ou seja, no nosso envolvimento com o mundo e com os homens, estamos, enquanto seres humanos normais, inteiros: intelecto, afetos, temperamento, gosto, etc. Afinal, estamos falando, com Feuerbach, em solidariedade e até em amor ao próximo: a filosofia de Feuerbach é declaradamente uma filosofia do amor e do sentimento, e a essência do Cristianismo - logo, a essência do homem - é para ele em primeiro lugar coração e sentimento. A Tese Seis entende que Feuerbach, por sua desconsideração do curso da História, “fixa o sentimento religioso” à medida dos indivíduos humanos “avulsos” da sociedade existente. Ele não vê, a Tese Sete completa, que esse religiöse Gemüt é também “um produto social” e, portanto, de indivíduos que “pertencem a uma determinada forma de sociedade.”
Ora, o sentimento religioso é justamente aquele que, nas condições da auto-alienação do homem, orientado em primeiro lugar para Deus, deveria ser agora, em vez disso, voltado inteiramente para os homens. O imperativo categórico das Teses, com que elas se concluem, não haveria de ser deixado desarmado de sentimento, de ânimo para se realizar; afinal, para pragmatistas (e certamente também para materialistas práticos normativos), o significado de uma crença pode ser entendido como a correspondente disposição para agir, o que implica a vontade. Sai o ser supremo da religião, para “que o homem seja o ser supremo para o homem”, e que o imperativo “religioso” de solidariedade se volte efetivamente para “o outro” (o que tampouco é uma noção estranha ao pragmatismo) e o comunismo tome o lugar daquela. Ora, a idéia de converter o sentimento religioso (mesmo por contraposição) numa solidariedade humana mais efetiva, realizada em laços sociais transformados e referida a um novo ideal de comunidade humana, de algum modo inscrito no próprio movimento do real, não é propriamente estranha ao pragmatismo. Apenas é aí uma transformação despojada das radicais e poéticas metáforas alemãs, como tomar o céu de assalto, pôr fim à pré-história do homem, etc., para as quais Marx teima em encontrar tradução “teórica” e “científica.” William James, repetindo que “os homens não darão mais dois mil anos à religião para desperdiçar seu tempo,” introduz o pragmatismo ao público através da denúncia da indiferença da filosofia idealista às aflições humanas materiais (o desemprego, o desespero e a fome dos trabalhadores de Cleveland), enquanto Peirce denuncia o evangelho da ganância, da economia política em geral e de Wall Street em particular, ao qual opõe seu evolucionismo amoroso e seu comunitarismo lógico. John Dewey, mais secularizado e politizado, procura dar a “religioso” um alcance apenas humano-natural (no seu A Common Faith), ligado à realização de um ideal humano maior, enquanto que seu seguidor, Richard Rorty, tem na solidariedade o motivo central de sua obra. Um ou dois anos antes das Teses, Marx dizia que “a crítica [feuerbachiana] da religião desemboca na idéia do homem como ser/essência suprema para o homem, o que tem como consequência o Imperativo Categórico de mudar todas as relações em que o homem é um ser humilhado, subjugado, abandonado e desprezível”. Não é coisa a que se fique indiferente, e é o que está por trás, finalmente, da Tese Onze, a última, aquela que conclui com a tarefa, para “os filósofos”, de, não mais apenas interpretar o mundo, mas “transformá-lo.” Por um script teórico fechado, entendido como uma determinação, ao mesmo tempo transcendental e virtuosa, da própria realidade, ou da sua essência, de fundo. O que, além de muito filosófico, pode parecer prático, mas certamente não muito pragmatista.

 

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