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José Crisóstomo de Souza
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A TEORIA MARXIANO-ALTHUSSERIANA DO DESCONHECIMENTO
José Crisóstomo de Souza.
Depto. de Filosofia, UFBa
Resumo:
Num famoso e extenso artigo de sua fase althusseriana, Jacques Rancière procura apresentar a crítica do Marx “maduro”, no Capital, como constituindo uma teoria científica superior (da própria essência do real social), purificada dos motivos e conceitos normativos filosófico-antropológicos, de sua fase de juventude. Tratando de expor e resumir essa interpretação em suas próprias palavras, procuro fazer com que exiba sua fragilidade. Procuro também questioná-la em termos da sua exagerada pretensão teoricista e da consequente desqualificação radical de qualquer outra teoria, bem como da capacidade de conhecer e de orientar-se, por si mesmos, dos homens comuns. Como se a humanidade toda, exceto uns poucos, chafurdasse, inescapavelmente, na mais completa ignorância e desconhecimento, sem ao menos poder ter ideia disso (salvo em termos marxiano-althusserianos).
Palavras chave: teoria - ciência - essência - alienação - desconhecimento
Abstract:
In a famous and substantial paper, Jacques Ranciére endeavors to present Marx’s “mature” thought, in The Capital, as constituting a superior scientific theory that reaches the real, final, essence of social reality, a theory entirely free from normative, philosophical-anthropological motifs and notions that were characteristic of his Feuerbachian “youth”. In presenting that interpretation, one of Althusserian affiliation, I try to expose its weakness. Besides that, I try to expose the exaggerated instance that Rancière claims for Marx’s theory, which so radically disqualifies any other theory and men’s ability to understand their social environment and guide themselves accordingly. As if the whole of humankind (except for a few theoretical men) were necessarily immerse in error and ignorance, and absolutely unaware of it.
Keywords: theory - science - ideology - essence - alienation - ignorance


1) Introdução: Crítica Científica, de Fundo, versus Crítica Ideológica, de Superfície.

Trato aqui do texto de Jacques Rancière, “O Conceito de Crítica e a Crítica da Economia Política - dos Manuscritos de 1844 a O Capital”, que constitui a maior parte do primeiro volume do Ler O Capital. Rancière declara que, no seu estudo, toma por base o acervo teórico constituído pelos trabalhos de Louis Althusser (76) , no Pour Marx (Maspero, Paris, 1965). Isso significa, entre outras coisas, que ele vai trabalhar com a oposição privilegiada entre ciência e ideologia e com a tese da “cesura epistemológica” entre o Marx maduro e o jovem Marx”. Como se sabe, ele depois rompeu com as posições do “mestre”, de forma radical, como deixou exposto na apresentação do seu artigo “Sobre a Teoria da Ideologia Política de Althusser”. Quanto a mim, entendo que a depuração cientificizante do marxismo - que acho impossível - seria, entretanto, epistemologicamente necessária, se ele quisesse apresentar-se como uma ciência teórica, e não um humanismo crítico radical, apoiado em noções herdadas da filosofia anterior, que permite um olhar diferente - crítico - sobre as realidades da economia e da sociedade moderna em geral.
Minha exposição trata de manter-se o mais próximo possível do texto e da linguagem de Rancière, resumindo-o com pouca paráfrase, para que seu lado teoricista e demasiadamente ambicioso exponha-se por si mesmo. Propriamente minhas, são apenas as glosas que introduzo. Rancière vê uma cientificidade dura e absoluta no Capital, onde Marx faria Ciência e Teoria, ao tempo em que definiria em que consiste a própria cientificidade em geral, uma que, como entendo, pretende caminhar solitária, sem precisar medir-se com o debate corrente da epistemologia e da filosofia da ciência, o que me parece mais estranho ainda numa perspectiva socialista. Penso que as pretensões da figura de ciência de Marx têm a ver com a idéia alemã de Wissenschaft e de Theorie, própria do século XIX, quando eram referidas orgulhosamente como “ciência alemã” e “teoria alemã” - algo inteiramente diferente da idéia moderna de ciência, ao contrário do que ele pensa.

Rancière encontra em Marx elementos que fazem ver que ele não se põe tão somente como crítico, desmistificador, que expõe debilidades nos discursos dominantes, põe-nos pelo avesso, como ideológicos, enquanto aponta desarranjos/contradições (até mesmo radicais), ocultados, na própria estrutura econômica capitalista. Em vez disso, teríamos um Marx “platônico”, que pretende aceder, pela ciência-teoria, à realidade essencial, última, das coisas, que mostra o inverso da experiência dos homens em geral. O “platonismo” de Marx propõe uma realidade concebida apenas pela razão superior, acessível apenas pela ciência, que é o contrário da experiência (que é erro, ocultação). De modo que todos os homens, exceto o homem teórico, chafurdam no sensível e no mundo da aparência, numa condição em que, por definição, não podem aceder à verdade.
Como diz Marx, referindo-se à concorrência, ao que é dado à percepção, no capitalismo:
Todos esses fenômenos parecem contradizer tanto a determinação do valor pelo tempo de trabalho quanto a natureza da mais-valia, que consiste em sobre-trabalho não pago. Portanto, na concorrência, tudo aparece invertido. A forma acabada (fertige Gestalt) das relações econômicas, tal qual se exibe à superfície em sua existência real, e portanto também nas representações com que os suportes e os agentes dessas relações tentam explicá-las, é muito diferente e, de fato, inversa, oposta, à sua forma nuclear (Kerngestalt) interna, essencial, mas oculta, e ao conceito (Begriff) que lhe corresponde. (Karl Marx, no Capital).

Nesse trecho, Marx está-se referindo aos fenômenos da concorrência capitalista, e, segundo Jacques Rancière, oferece aí os elementos de uma teoria da ideologia, do seu caráter necessário e da sua oposição absoluta com relação à verdadeira ciência (129ss). No Capital, a forma fenomênica, visível, salário, por exemplo, como preço do trabalho, “torna invisível a verdadeira relação e, de fato, mostra o seu oposto”. Tal ocultamento forma nada menos que “a base de todas as noções jurídicas, (... ) e de todas as mistificações (...), de todas as ilusões liberais” (I, 623). Por outro lado, embora Marx chame o salário e outras formas da circulação de “formas fenomênicas” ou “formas de aparência”, elas não podem ser reduzidas a meras ilusões (que se dariam apenas na sua consciência), por parte dos sujeitos imersos nesses processos. Trata-se de formas reais de relações, que são “falsas” no sentido específico de que escondem outras relações e processos - essenciais, últimos -, de natureza muito diferente, que só seriam acessíveis a uma superior ciência teórica, a uma teoria com “t” maiúsculo.
Sob o capitalismo, portanto, o “engano” não seria produzido (nem superado) pelo pensamento dos homens, mas estaria situado na própria realidade econômica e se imporia a partir dela. Analisando uma particular “ideologia burguesa”, a economia política, Marx localiza seu erro na incapacidade de penetrar para além das formas e processos de superfície da economia. Ele identifica, porém, a base de tal ideologia nos diferentes aspectos da estrutura econômica do capitalismo. E é a noção de “inversão” (Verkehrung) que definiria a relação existente entre a “determinação interna do processo” e suas “formas de aparecimento” (que seriam simultaneamente formas de “manifestação”), tanto quanto formas de “dissimulação”(139, 153). Ou seja, os fenômenos alegadamente “de superfície” e as idéias que os homens comuns se formam (e que estão determinados a formar) não são apenas - e inapelavelmente - “ilusórios” e “erradas”. São também o oposto, o inverso, da verdade e do real verdadeiro. O fato de que tais idéias encontrem base no próprio mundo, material, em que os homens vivem, só torna a ilusão mais intransponível. Observe-se, ademais, que não apenas a economia política como também todos os outros discursos vigentes na sociedade - como a moral, o direito, as concepções políticas, a opinião pública, a sociologia, etc. - padeceriam, assim, do mesmo vício radical.
Rancière reconhece que um ambicioso projeto de crítica - do mundo, em geral, e das concepções nele vigentes - acompanha, desde o início, toda a obra de Marx. Já em 1844, Marx formula o projeto de uma crítica da economia política, ao tempo em que revela que ele deve abranger a crítica do direito, da moral, da política, etc. Os Manuscritos Econômico-Filosóficos (ou Manuscritos de 44), da sua fase “de juventude”, apresentam-se como uma crítica da economia política, e, depois deles, muito mais tarde, O Capital traz a expressão como subtítulo Qual, então, a relação entre a obra da maturidade e o projeto de 1844?
Para Rancière, não devemos nos enganar com aparentes semelhanças superficiais. No primeiro caso, trata-se ainda de uma “crítica ideológica”; no segundo, descobre-se algo totalmente diferente: uma “crítica da ideologia”, uma crítica científica, e, junto com isso, uma definição do que é ciência e de onde está a cientificidade. É no Capital que Marx consumaria uma elaboração teórica digna do nome e sua “passagem à cientificidade marxista” (76). Quanto a nós, o que nos interessa é principalmente expor a pretensão dessa idéia de Teoria (de fazer inveja a Platão) como desvelamento racional, último - por traz das aparências - da verdadeira Realidade, e como concepção de tudo mais como Desconhecimento e Ignorância. As demais esferas da cultura e a pretensão de conhecimento de quaisquer outros discursos (inclusive das demais teorias: jurídicas, morais, políticas, etc.) ficam absolutamente desqualificadas e, com elas, o mundo da vida, dos homens comuns, das práticas cotidianas (ver, por ex., 109, 125, 137). Será esse o verdadeiro pensamento de Marx?

2) A Crítica da Economia Política nos Manuscritos: Marx Ideológico.

Rancière vê que os Manuscritos de 44 desenvolvem uma crítica que tem como base, em grande medida, a antropologia de Feuerbach, e como objeto a experiência de uma humanidade que toma consciência de si. O método de tal crítica se expressaria no verbo alemão erklaren, que quer dizer, ao mesmo tempo, declarar e explicar. Ou seja, segundo esse método, a exposição dos fatos, da experiência, já seria a sua explicação. O papel da crítica é então declarar uma contradição, ou, mais exatamente (no que se distingue do enunciado comum), mostrar, por trás das contradições aparentes, uma contradição mais profunda: a “alienação” (78) - conceito chave do pensamento feuerbachiano, hegeliano e, quem sabe, contra a opinião de Rancière, do próprio marxismo. De todo modo, essa exposição-que-já-é-uma-explicação, nos Manuscritos de 44, absolutamente não satisfaz à noção althusseriana de crítica, de ciência e de teoria - no verdadeiro sentido da palavra.
Na alienação, os atributos do homem (que constituem sua essência) são conferidos a um ser exterior, criado pelos próprios homens, que, não obstante, se lhes torna estranho e independente, e vai-se apresentar como verdadeiro sujeito, reduzindo os homems à condição de seu objeto. O trabalho da crítica seria, então, levar a contradição a essa “forma geral”, em que o homem aparece como separado de sua “essência genérica”, e redescobrir, assim, sua unidade originária. O discurso crítico, aqui, opõe-se ao discurso que abstrai e separa. Como no caso da religião cristã, que - segundo Feuerbach - põe Deus como a essência alienada do homem, convertida em sujeito verdadeiro, separado e independente dos homens. Ou, como no caso da filosofia hegeliana, em que a Idéia e o Espírito são o verdadeiro sujeito, em lugar dos homens. (80). A crítica visaria, então, devolver ao homem o que é seu... como ser genérico, coletivo, cooperativo.
Nessa linha, nos Manuscritos de 44, para Rancière, a economia não apareceria como “fundamento” ou “última instância”, e aí a economia política seria apenas uma matéria entre outras, das que tratam das diferentes esferas da experiência humana (82). Rancière tem que admitir, no entanto, que, no terceiro manuscrito, a alienação econômica aparece como alienação da vida real, em contraposição à alienação religiosa, que só se passa na consciência. E que a supressão da alienação econômica aparece como acarretando a supressão de toda alienação. Mas o conceito de economia, alega ele, é aí demasiado amplo e engloba todas as relações do homem com a natureza.(82)
Rancière argumenta ainda que, nos Manuscritos, Marx não questiona propriamente a pretensão científica da economia política burguesa ou clássica. Toma seus conceitos, sobretudo os de Adam Smith, como exprimindo adequadamente os fatos. O papel da crítica, aí, seria elevar-se acima do nível da economia política. A função desta é apenas exprimir (fassen) o processo material, a daquela é compreender (begreifen). Segundo os Manuscritos, “a economia política capta as leis que manifestam o movimento da propriedade privada, [mas] não compreende essas leis no seu encadeamento interno, e não as compreende como expressões do movimento da essência da propriedade privada”. (Marx, apud Rancière, 84)
A “compreensão” - no jovem Marx - apresenta-se como a tarefa própria da “crítica”, que parte de um “fenômeno” (por exemplo, a pauperização do trabalhador, “quanto mais ele produz”) e, por trás dele, aponta a alienação, i.e., a transformação do produto em algo de estranho e separado de seu produtor. Marx projetaria, assim, sobre a relação trabalhador-produto, o modelo da relação homem-Deus, própria do cristianismo... segundo a crítica de Feuerbach. “Supõe-se que o produto do trabalhador é alguma coisa em que ele teria de se reconhecer”, da mesma maneira que o homem deve perceber que Deus é ele mesmo. (85)
O que há aí - explica Rancière, plausivelmente - é um “deslizamento” nos termos “produção” e “objeto”, deslizamento que se repetiria igualmente em outros casos, permitindo a passagem do discurso econômico, “burguês”, ao discurso “crítico” - antropológico, filosófico, alemão. Tal passagem se dá por uma “anfibologia” (ambigüidade, duplicidade de sentido), e ocorre também nos seguintes pares de termos, o primeiro da economia, o segundo, da “crítica”: “trabalhador / homem”, “trabalho / atividade genérica”, “produto / objeto”, “capital / ser estranho”, “meios de subsistência / meios de vida”, “valor / valor (dignidade)”, “circulação / comunidade”(87). Através da anfibologia, o compreender (begreifen), que caracteriza a crítica, reduz várias contradições à contradição fundamental: a cisão ou separação entre essência humana genérica (Gattungswesen) e sujeito humano, que dá lugar à equação “essência humana = ser estranho”, que está no fundo de outras equações como: “valorização do mundo das coisas = depreciação do mundo dos homens, etc., etc.
A crítica é assim uma espécie de “tradução”, que se torna possível porque a economia política clássica já contém um discurso antropológico implícito (o que me parece verdade). A economia política pretende tratar da produção em geral e concebe o desenvolvimento econômico a partir da ação de sujeitos econômicos. O capital é considerado por ela como trabalho acumulado e não como relação. Inclusive a idéia de uma ordem natural e de sua perversão (teoria da alienação) já apareceria, entre outros, em Pierre de Boisguillebert (citado favoravelmente por Marx, I, 144, 155), quando ele diz que o dinheiro, em vez de servidor, converteu-se em senhor do homem. Essa, aliás, é uma lamentação - Rancière diria, humanista-ideológica - recorrente em autores que nada têm a ver com Marx.
O suporte da anfibologia/tradução é o sujeito-homem, comum tanto à economia política clássica quanto à crítica aos Manuscritos. Ao falar ingenuamente no trabalhador e na “sua” produção, Marx tomaria esta como ato de um sujeito, e consideraria o campo dos fenômenos econômicos como estando centrado em volta desse sujeito (91). Nos Manuscritos, a não-crítica dos termos da economia política seria, então, condição da “crítica” da economia política. A não determinação de um domínio da economia política permitiria tomar os fenômenos econômicos como expressão de um processo antropológico (91). Em contraposição, para Rancière, O Capital, através do conceito de “relação de produção”, opera uma dessubjetivação das categorias econômicas, tomando a produção como um “processo”.
Ainda segundo Rancière, a subjetividade capitalista é, nos Manuscritos, o motor do desenvolvimento da economia, cuja marcha seria regida pelo seu arbítrio, pelo seu “cálculo”. Mas essa subjetividade deve perder-se no movimento da propriedade privada, e é no seu desaparecimento que surge o verdadeiro sujeito do movimento, a “humanidade”. Explicando melhor: a subjetividade do capitalista (o cálculo) cria a objetividade que permitirá o fim da alienação, pela humanização do mundo sensível, constituindo-se então finalmente um mundo no qual o homem poderá reencontrar a si mesmo e reconhecer sua própria essência (94-5). Ou seja, através dos “motivos” do capitalismo, é o desenvolvimento da “essência humana” (Gattungswesen, essência genérica) que abre caminho, que desempenha o papel de “motor”. Como no prefácio das Lições sobre a Filosofia da História, de Hegel, o verdadeiro sujeito da história serve-se de subjetividades ilusórias para impor a sua lei. (95-6)

3) A Crítica no Capital: a Aparência como Dissimulação e Engodo.

A escola marxista italiana, de Della Volpe, à qual Rancière opõe sua interpretação estruturalista anti-humanista, argüi plausivelmente que, nos Manuscritos de 44 (e também, p.ex., na Crítica da Filosofia do Estado de Hegel, de 1843), já está presente o modelo crítico do Capital e da Contribuição à Crítica da Economia Política (de 1859), que lhe precedeu: o modelo da inversão sujeito/predicado. O jovem Marx trata de mostrar que Hegel faz do predicado, tornado autônomo, o verdadeiro sujeito (100). O predicado é separado, por Hegel, do sujeito, e autonomizado (num movimento de abstração); em seguida deve encarnar-se numa realidade empírica concreta. É a hipostatização, que consiste em considerar como real uma abstração, através de um duplo movimento: inversão da empiria em especulação (abstração e autonomização), e da especulação em empiria (encarnação).
Segundo Della Volpe, a crítica marxiana mostraria no Capital e na Contribuição, que a economia política clássica separa as categorias econômicas de seu sujeito, que é uma sociedade determinada, e as hipostatiza, fazendo delas condições gerais, leis eternas, da produção. Depois, ela passa da especulação à empiria, fazendo das categorias históricas (determinadas), do modo de produção capitalista, a simples encarnação das categorias gerais. Um exemplo disso estaria exposto por Marx na Introdução de 57, onde ele entende que Stuart Mill toma a apropriação (da natureza) como propriedade, transformando esta em condição geral de qualquer produção.(101-2)
Rancière e a “escola francesa”, ao contrário, procuram mostrar que as oposições sujeito/objeto e empiria/especulação não se revelam como pertinentes no interior do campo teórico do Capital. O caráter científico da economia política clássica, segundo Marx, estaria na “dissolução” das formas fixas e diferentes da riqueza (o fenômeno), na sua redução à unidade interna (essência): a determinação do valor pelo tempo de trabalho. Essa seria a operação crítica através da qual a economia política se constitui como ciência, instaurando uma radeical diferença entre os fenômenos e sua essência, mas supostamente sem refletir sobre o conceito dessa diferença. Ricardo determinou a substância do valor (o trabalho) e a magnitude do valor (o tempo de trabalho), impedindo a “irracionalidade” no nível da relação de valor (103ss). Restou a Marx analisar a forma valor, expondo por que o conteúdo do valor assume tal forma. Para Ricardo, o valor é trabalho; para Marx, o trabalho se representa no valor, reveste-se da forma do valor das mercadorias. Ricardo não vê como problemático o sinal de igualdade (na relação simples de valor) que relaciona dois termos que se apresentam sob formas absolutamente heterogêneas: de um lado, uma pura coisa e, do outro, uma pura encarnação do valor. Tal identidade dos contrários, no entanto, só é possível porque uma forma (a forma natural do segundo termo da igualdade) torna-se a “forma de manifestação” do seu contrário: o valor.(105-6). Nisso tudo, enfim, nada de um ponto de vista antropológico entraria.
Explorando a abordagem, propriamente científica, do Capital, Rancière vai então investigar a relação conteúdo/forma como relação entre a “determinação interna” e o “modo de existência” ou “forma de aparecimento” (Erscheinungsform) dessa determinação (106). Na medida em que aparece na forma natural de uma mercadoria, o valor na verdade nela desaparece (como valor) e assume a forma de uma coisa. Conclusão: o valor não tem sua forma de manifestação na relação de troca, a não ser na medida em que nela não se manifesta. Nos Manuscritos de 44, entretanto, não se trataria disso. As equações que exprimem a contradição do capitalismo (p. ex., “valorização do mundo das coisas / depreciação do mundo dos homens”) remetem à equação fundamental “essência (genérica) do homem = ser estranho do homem”. Elas remetem, como causa, à cisão entre o sujeito humano e sua essência - e, aí, a solução da equação está num dos seus membros. Nos Manuscritos, a causa da contradição e a solução da contradição estão dadas naquela separação, do sujeito humano, da sua essência humana genérica. (106)
No caso do Capital, na equação x mercadorias a = y mercadorias b, a causa não está na equação, que representa uma ligação entre coisas (uma conexão de efeitos) determinada pela ausência da causa. A causa são as relações sociais de produção; com o que, conclui Rancière, as operações formais que caracterizam o espaço em que estão relacionados os objetos econômicos “manifestam” processos sociais através de sua “dissimulação”. O que, isto sim, escaparia inteiramente à economia política clássica.
“Não estamos mais diante de uma causalidade antropológica referida ao ato de uma subjetividade, mas diante de uma causalidade inteiramente nova que podemos chamar de ‘metonímica’ (ou estrutural): o que determina a conexão dos efeitos (as relações entre as mercadorias) é a causa (as relações sociais de produção) enquanto ausente. Essa causa ausente não é o trabalho como sujeito, é a identidade do trabalho abstrato com o trabalho concreto, na medida em que a sua generalização exprime a estrutura de um certo modo de produção: o modo de produção capitalista” (107).
Rancière, creio eu, poderia admitir que é justamente no nível das relações sociais de produção que os homens se fazem não sujeitos (no capitalismo). Ou se farão sujeitos - coletivamente, nas novas relações, no socialismo/comunismo. Pois, como diz a 6ª. Tese ad Feuerbach, a essência dos homens está nas suas relações sociais, e as relações sociais vigentes não fazem dos homens verdadeiros sujeitos. Sua negação é que conduzirá a isso.
Procurando precisar os termos do problema da manifestação como dissimulação, referido às distinções forma e conteúdo, fenômeno e essência, Marx examina em seguida os objetos econômicos, v.g. as mercadorias, como “coisas sensíveis-supra-sensíveis”, ou “coisas sociais” (108). A “objetidade” (ou caráter de objeto, Gesgenständlichkeit) das mercadorias é bastante particular, é uma objetidade “fantasmática”, que Marx esclarece quando fala de uma “ilusão da objetividade”, no primeiro tomo do Capital: “A descoberta científica de que os produtos do trabalho, enquanto valores, são apenas a expressão do trabalho humano empregado, na sua produção assinala uma época na história do desenvolvimento da humanidade, mas não dissipa a fantasmagoria que faz aparecer o caráter social do trabalho como um caráter das coisas, dos próprios produtos”. (Marx apud Rancière, 109). Novamente aqui, Rancière poderia admitir que a referência ao desenvolvimento da humanidade (posto em relação com um avanço na sua consciência) pode ter caráter “antropológico”, “humanista” e “filosófico”. Por outro lado, devo assinalar, é digno de atenção crítica que Marx procure recuperar, numa leitura supostamente científica, os dualismos metafísicos clássicos (que Feuerbach procurou abolir), como especialmente aquele que separa aparência de essência.
Nos Manuscritos de 44, o termo Gegenstand (objeto) seria tomado num sentido sensualista, segundo uma teoria feuerbachiana do sensível. E o caráter sensível dos objetos do trabalho remete ao seu caráter humano, ao seu estatuto de objetos de uma subjetividade constitutiva. Já no Capital, Marx entende que “à primeira vista, a mercadoria parece coisa trivial, imediatamente compreensível, [mas,] analisando-a, vê-se que ela é algo muito estranho, cheio de sutilezas metafísicas e argúcias teológicas” (I, 79). No famoso exemplo do casaco, este é depositário (suporte) do valor, “embora não se possa ver essa qualidade através dos fios do mais puído dos casacos”(I, 59). O sensível fica, portanto, desqualificado pela nova teoria, tanto quanto na filosofia especulativa de Hegel..
Rancière tem que admitir que no Capital se encontra de novo o conceito de “suporte” (Trager), da crítica antropológica, feuerbachiana, da especulação, e com uma função correspondente à da “encarnação”. Mas essa figura, embora já presente na Crítica da Filosofia do Estado de Hegel (de 1843), de Marx, não desempenharia no Capital o papel crítico que tem ali, nem o papel que lhe confere a escola italiana de Della Volpe. Nesse ponto, vale a pena citar mais extensamente o próprio Rancière:
A união do sensível com o supra-sensível exprime aqui a própria forma de aparecimento do valor, e não sua tradução especulativa. No Manuscrito de 1843, essa união é apresentada como operação da especulação. Hegel transforma o sensível (a empiria), que encontra no ponto de partida, para dele fazer uma abstração supra-sensível, que ele encarna depois numa existência sensível, a qual serve de corpo a essa abstração. Isso significa que a figura que, na crítica antropológica, designa o método de especulação, designa aqui [no Capital] o processo que transcorre no próprio campo da realidade (...). Impõe-se-nos cuidadosamente distinguir uma Wirklichkeit, real do ponto de vista da percepção, da wirkliche Bewegung (movimento real), que constitui o real da perspectiva da ciência. (111).
Cabe destacar que, assim, se a própria realidade é “especulativa”, como conclui Rancière, então qualquer leitura que pretenda dizer “as coisas como elas são” fica invalidada. Cabe aí uma tarefa da decifração que pertence tão somente à verdadeira ciência, a teoria. A estrutura que fecha a possibilidade de uma “leitura crítica” (humanista) é a mesma que abre a via da ciência, que irá desmascarar e explicar o fetichismo da mercadoria. Recorrendo às noções de forma (de manifestação / dissimulação) e de relação social (o manifestado / dissimulado), Rancière entende que Marx faz a crítica do conceito de “valor do trabalho”, que apresenta um problema insolúvel para a economia clássica, e o faz introduzindo a categoria “força de trabalho”. (111ss)
O trabalho aparece como mercadoria, ao passo que ele não pode absolutamente ser mercadoria (ele cria valor; não tem valor). Trata-se novamente, segundo Rancière, da estrutura já vista: a existência, na realidade (Wirklichkeit), de alguma coisa simplesmente impossível. Essa possibilidade de uma impossibilidade nos remeteria à causa ausente, que são justamente as relações de produção. Dada a separação dos produtores diretos, dos meios de produção, eles são obrigados a vender a força de trabalho como mercadoria. Mas, no trabalho assalariado, surge a impressão de que o que é pago pelo capitalista é o valor do trabalho. A categoria “valor do trabalho”, então, é forma de aparecimento/dissimulação da categoria “valor da força de trabalho” (118). No primeiro caso, tratar-se-ia de uma expressão irracional, cuja irracionalidade está na posição de uma relação impossível, que dissimula a relação verdadeiramente determinante, última, de fundo.

4) Estrutura do Processo e Percepção do Processo (no Capitalismo): Inversão, Ilusão e Ideologia.

Depois de fixar um primeiro conceito para exprimir a relação da “determinação interna” do processo com suas “formas de aparecimento” (Erscheinungsformen), que é o conceito de “dissimulação”, Rancière trata de um segundo conceito - mais radical ainda - que define aquela ralação: o de inversão (Verkehrung). A respeito do valor do trabalho, Marx diz que “essa forma de manifestação torna invisível a relação real”. Não só isso, como mostra exatamente “o seu contrário”. Aí, o conceito de valor “não apenas desapareceu mas inverteu-se em seu contrário” (II, 61).
Um dos pontos essenciais da revolução operada por Marx na economia política consistiria justamente em ter trazido à tona, em seu campo, essa relação de nítida inversão, entre a determinação científica e a forma fenomênica. Tal inversão, segundo Rancière, é, para Marx, nada menos que uma verdadeira “lei geral da cientificidade”. Com efeito, no segundo volume do livro primeiro, lemos que “todas as ciências, exceto a economia política, reconhecem que as coisas apresentam freqüentemente uma aparência oposta à sua essência” (II, 620). No lugar de “freqüentemente”, Rancière prefere entender “sempre” e “rigorosamente”. Independentemente disso, é um tanto estranho, convenhamos, que Marx queira entender ciência como conhecimento de essências, o que, me parece, está em dissonância com o trabalho de ciência (teórico, inclusive) em qualquer área que seja, e em desacordo com o conceito moderno, não alemão, de ciência.
Já no nível da simples circulação monetária, encontraríamos uma nítida inversão. “À primeira vista, o movimento unilateral da moeda não parece provir do movimento bilateral da mercadoria[, mas,] ainda que o movimento da moeda seja apenas expressão da circulação das mercadorias, é, pelo contrário, a circulação das mercadorias que parece resultar apenas do movimento da moeda” (I, 128). Assim estaria feita, por Marx, a distinção radical entre um movimento real, de um lado, e, de outro, um movimento aparente, ao qual a experiência cotidiana dos homens atribui veracidade, e que é nada menos que o inverso do primeiro. Essa relação da inversão confirmar-se-ia na medida em que se passa das formas mais abstratas e menos desenvolvidas do processo capitalista às suas formas mais desenvolvidas e mais concretas.(126)
Rancière, em seguida, estuda a “lei da inversão”, com base no exemplo constituído pela teoria das “razões de compensação”, no Capital. A análise das razões de compensação distingue, segundo ele, as tendências gerais e necessárias do capital, das formas sob as quais elas aparecem: “As tendências imanentes da produção capitalista refletem-se no movimento dos capitais individuais, prevalecem como leis coercitivas da concorrência e, por isso mesmo, impõem-se aos capitalistas como móveis de suas operação”. A análise da concorrência pressupõe a análise da natureza íntima do capital, “do mesmo modo que o movimento aparente dos corpos celestes só é compreensível para quem concebe o seu movimento real”.(I, 364). É esse o modelo de ciência com que Marx pretende estar trabalhando, ou seja, uma nova “revolução copernicana”.
A análise das “razões de compensação” faz parte do estudo da igualação da taxa de lucro pela concorrência, o que, para ser compreendido, supõe a passagem da mais-valia ao lucro, bem como o estabelecimento de uma taxa de lucro média. O lucro é forma de aparecimento e dissimulação da mais-valia, e nele não se considera a relação conceitual da mais-valia com o capital variável, mas sua relação não-conceitual (begriffslose) com o conjunto do capital. A taxa de lucro é determinada pelas variações do capital constante. Se o capital tem uma composição orgânica inferior à composição média, a taxa de lucro vai aumentar. Mas, numa situação de livre-concorrência, o aumento da oferta nas esferas onde a taxa de lucro for maior (e a diminuição onde for menor) fará com que capitais iguais dêem lucros iguais. A lei do valor, conclui Rancière, acha-se, assim, invertida, ou mais exatamente, realiza-se sob a forma do seu contrário. (127)
A existência de lucros médios independentes da composição orgânica do capital (portanto da massa de trabalho vivo de que um capital se apropria em determinada esfera), a alta e a baixa dos preços de produção, consecutivas a uma modificação de salários, a gravitação dos preços de mercado em torno de um preço de produção diferente do valor de mercado, são todos fenômenos que - nas palavras do próprio Marx - “parecem contradizer tanto a determinação do valor pelo tempo de trabalho, quanto a natureza da mais-valia que consiste em sobre-trabalho não-pago”. O que lhe permite dizer que, “na concorrência, tudo aparece invertido”: o que se exibe na superfície, a forma acabada (fertige Gestalt) das relações econômicas, é não apenas diferente como inverso e oposto à forma nuclear (Kerngestalt) e ao seu conceito (Begriff). E é sobre a primeira que seus “agentes” e “suportes” - os homens comuns - formam sua distorcida percepção da realidade. (129)
A abstração insuficiente da economia política clássica, limitar-se-ia a formular uma relação entre a unidade interna e a diversidade das Erscheinungsformen. Mas se, como Marx mostra, no desenvolvimento das formas do processo, a “essência interna” (a forma nuclear) desaparece, dissimulada e invertida, nas suas formas desenvolvidas, se ela se torna o “elemento invisível” (como a mais-valia na forma do lucro), então a ciência é fundada como ciência desse invisível, como redução do “movimento visível” ao “movimento invisível”. Diferentemente disso, nos Manuscritos de 44, a operação begreifen (conceber, compreender) estabeleceria uma simples diferença de nível entre a essência (antropológica) e fenômenos que são todos do mesmo nível. Já no Capital, o trabalho conceitual apreende a articulação das formas na medida em que capta o que determina a articulação delas, a saber, as relações sociais. (131-2)

5) Os Homens como Falsos Sujeito: Inconscientes, Não-Livres, Alienados.

Vejamos agora como fica o sujeito no Capital. Rancière pretende mostrar que se, nos Manuscritos, o par fundamental era “sujeito-objeto” ou “pessoa-coisa” (ação do sujeito sobre o objeto, inversão da relação sujeito-objeto, reconhecimento do sujeito no objeto), no Capital é a posição de “excentricidade” das relações de produção que determina o lugar do sujeito e do objeto. Neste caso, o sujeito é apenas um falso sujeito, o “suporte” das relações de produção, que são o verdadeiro “motor” do real. O sujeito aí não é o princípio constituinte de toda a objetividade, de toda substancialidade. E, se a especulação e a mistificação não são o resultado de uma transformação operada na Wirklichkeit, por certo discurso, “mas caracterizam o modo mesmo segundo o qual a estrutura do processo se apresenta na Wirklichkeit, então é o ser mistificado que constituirá o conteúdo essencial da função do sujeito”. (132-3)
O agente da produção é definido aqui tão-somente como personificação ou suporte das relações de produção. Não é sujeito constituinte, mas apenas um pseudo-sujeito percebedor (na verdade, “desconhecedor”), cujas representações são apenas “a expressão consciente do movimento aparente”. A ilusão do sujeito capitalista, no caso das “razões de compensação”, está em que ele interioriza como móveis de suas ações os fenômenos do movimento aparente através dos quais se realiza a lei do movimento real que ele ignora. (135)
Aqui haveria novamente um deslocamento conceitual com relação aos Manuscritos. Nas palavras de Rancière:
Nos Manuscritos, (...) o capitalista, calculando para si, servia como agente de negócios, não ao espírito universal hegeliano, mas ao desenvolvimento da essência humana. Aqui [no Capital], o cálculo do capitalista se situa no nível do movimento aparente da estrutura. O capitalista crê que seu cálculo determina o movimento do valor ao passo que é determinado por ele. A teoria do cálculo capitalista é uma teoria da ilusão necessária ao capitalista para que ele ocupe seu lugar de agente de produção, de suporte da relação capitalista. Assim, no Capital, está explicado e fundamentado o conceito de “inversão” (Verkehrung), utilizado na Ideologia Alemã para definir a ideologia, mas que permanecia aí sem fundamento, devido a que Marx não estabelecera a diferença entre a “Kerngestalt” e a “fertige Gestalt”. Na Ideologia Alemã, Marx estaria ainda preso ao conceito ideológico de Wirklichkeit. Para ele, a ciência se situaria no nível da Wirklichkeit. Tratava-se de estudar a realidade como homem comum. Como Marx ainda não pensava a diferença da “realidade” em relação ao “movimento real”, a inversão apareceria como simples função da subjetividade. (136)
E a ciência, aí, não levaria tão além da realidade do “homem comum”.
Rancière não quer entender que também em Feuerbach o sujeito é propriamente a essência genérica do homem, e que, alienado dela (enquanto separado da comunidade), nenhum homem é verdadeiramente sujeito. Marx trata apenas de mostrar que o tornar-se sujeito do homem não se pode dar por uma transformação na consciência, com o conseqüente estabelecimento de laços afetivos entre os indivíduos. A essência humana é o conjunto de suas relações sociais (tendo as de produção como base), mas, na vigência de relações capitalistas, ela está aí, digamos, em devir e em negativo, e é só ilusoriamente que os indivíduos se percebem a si mesmos - isoladamente - como sujeitos. Apenas a mudança das relações capitalistas, antecipada, na consciência, por aquela compreensão teórica superior e pela ação política orientada por ela, é que pode conferir aos indivíduos a condição de verdadeiros sujeitos. Esse é o fundo normativo’(e a base da “crítica”) no Capital, por mais implícito ou mesmo “recalcado” que aí esteja: a diferença entre a condição dos homens sob o capitalismo e aquilo que eles, segundo Marx, podem - precisam e devem - tornar-se.

6) Fetichismo e Exteriorização: uma Teoria da Ignorância

Para culminar a sua distinção entre o campo teórico de Marx no Capital e aquele dos Manuscritos, e para conceber o Capital como super-teoria científica, Rancière enfrenta agora diretamente o conceito de “fetichismo”, que constitui o ponto a que se agarram os que interpretam a obra da maturidade a partir da antropologia do jovem Marx. Para esses, o fetichismo não passa de um novo nome para a alienação. No fetichismo, as relações entre os homens convertem-se em relações entre coisas, como diz o próprio Marx; a atividade dos homens passa para um ser estranho, torna-se determinação da coisa, e os homens são dominados por essas relações entre coisas (I, 79ss). O fetichismo seria, assim, um processo “antropológico”, semelhante à alienação (147). Para Rancière, entretanto, não é nada disso.
Segundo ele, podemos ter um outro entendimento do fetichismo, a partir do que vimos anteriormente, “sobre a estrutura do processo e sobre o desenvolvimento das suas formas”. O movimento que constitui o fetichismo é aquele da passagem a “formas mais concretas do processo de produção capitalista”, onde vai desaparecer a determinação interna do que o rege, onde a “forma nuclear” desaparece na “forma acabada”. Marx resumiria o discurso fetichista na conhecida “fórmula trinitária”, e, para estudar a constituição do fetichismo, Rancière examina a “condição de possibilidade” de um dos três pares da fórmula, o par capital-lucro (ou capital-juro). Essa “condição de possibilidade” é chamada de Veräusserlichung da relação capitalista, que Rancière traduz, apropriadamente, por “exteriorização”. (147-8)
No cap. 24 do livro III do Capital (“Exteriorização da relação capitalista na forma do capital a juros”), Marx caracteriza a forma do capital de empréstimo (a juros) como a mais exteriorizada - ou alienada - da relação capitalista. Ela é definida como “a mais concreta, a mais mediatizada, a mais fetichizada, a mais alienada (entfremdetste)”! O movimento da fetichização surge, assim, como idêntico ao movimento de exteriorização e associado ao conceito de alienação (Entfremdung). Portanto, Marx, aí, retoma, aparentemente, para embaraço de Rancière, a noção humanista-feuerbachiana de alienação(149). Mas, como já dissemos, para o nosso althusseriano, não é nada disso.
No caso do capital empréstimo, a exteriorização da relação capitalista repousaria no fato de que aquela forma (capital empréstimo) seria begrifflose, “a-conceitual”, sem conceito. Trata-se da forma A - A’, e a Begriffslosigkeit (“a-conceitualidade) consiste em que, nessa forma, desaparece o próprio processo que a possibilita. O movimento A - A’, colocado como movimento espontâneo de A, na verdade só é possível se o capital dinheiro A entrar num processo de produção no qual seja valorizado. E o processo de valorização de A torna-se possível pela presença no mercado dessa mercadoria absolutamente particular que é a força de trabalho. A relação impossível, “irracional”, de A’ com A, só é possível por ser sustentada pelo que rege todo o ciclo: o capital como relação de produção, com seu complemento, o trabalho assalariado. O ciclo do capital empréstimo se caracteriza pelo desaparecimento do processo em seu resultado, e, caso venha a se tornar autônomo, presta-se ao conhecimento equivocado do processo capitalista. Mas, no conjunto do processo de reprodução estudado por Marx no livro II, não haveria risco de dar-se essa autonomização; a autonomia do ciclo do capital-dinheiro desaparece no ciclo do capital-mercadoria. O que, entretanto, só é revelado pela superior ciência de Marx. (151-2)
A essa altura Rancière já considera excluído certo tipo de interpretação feuerbachiana da Veräusserlichung e da Entfremdung, como estão presentes no Capital. Os termos em questão aqui, diz ele, não são: “sujeito”, “predicado” e “coisa”, mas “relação” e “forma”. O tornar-se estranho de que se trata aqui não assinalaria a exteriorização dos predicados de um sujeito num ser estranho, mas designa o que acontece com a relação capitalista na forma mais mediatizada do processo (153-4). Rancière, entretanto, é forçado a admitir que o conceito de Verkehrung só adquire uma determinação conceitual rigorosa num primeiro sentido (inversão como função determinada pelo desenvolvimento das formas, pela passagem da Kernsgestalt à fertige Gestalt). E que a segunda função desempenhada pela Verkehrung (duplo movimento de coisificação das relações sociais e subjetivização dos suportes materiais) está envolvida por um “halo antropológico” e mesmo por uma referência não-refletida, não-criticada, ao campo conceitual dos Manuscritos.
Para sanar esse equívoco de Marx, Rancière começa por assinalar que, no movimento da coisificação (Versachelichung ou Verdinglichung), o que passa para a coisa não é a essência de uma subjetividade, mas uma relação. Na Veräusserlichung, não é um sujeito que se separa de si mesmo, passando os seus predicados para o ser estranho; é uma forma que se torna estranha à relação que é seu suporte, e, por se lhe tornar estranha, converte-se em coisa e acarreta a coisificação da relação. Essa definição da Veräusserlichung valeria também para a Entfremdung (156), que é a principal palavra alemã para alienação.
Quanto à subjetivização, no Capital, ela tampouco significa a inversão ou conversão do predicado em sujeito, em detrimento do sujeito verdadeiro e originário. O que Marx designa como subjetivização da coisa seria a aquisição pela coisa da função de motor do processo. Essa função não pertenceria, no processo, a um sujeito ou à ação recíproca de um sujeito e de um objeto, mas às relações de produção (157). Onde o homem, insisto eu, não se encontra como sujeito, mas onde ele se encontra “em vias de tornar-se” sujeito, não pela consciência ou independentemente de “suas” relações no nível das famigeradas relações de produção. Aqui, novamente, Rancière deixa de considerar que, em Marx, mesmo no jovem Marx, tampouco o homem pré-existe como sujeito. Ele pré-existe como não-sujeito, dadas as relações sociais (que constituem sua essência) capitalistas vigentes. Mas a passagem para além delas é a realização das potencialidades contidas - ainda que ao inverso - nessas mesmas relações, potencialidades do homem para ser, coletivamente, sujeito - sem o que tampouco o será individualmente.
Por fim, Rancière, além procurar acentuar diferenças de estrutura, essenciais, entre O Capital e os Manuscritos, precisa ainda dar conta das coincidências persistentes. O que ele faz atribuindo a Marx certos deslizamentos conceituais (anfibologias?) - em última análise, descuidos ou recaídas - decorrentes, segundo ele, do fato de que Marx não teria criticado rigorosamente o próprio vocabulário. Seu uso inadequado das mesmas palavras para significar coisas distintas e incomparáveis estaria destacadamente na própria fórmula sempre empregada por Marx para caracterizar o fetichismo: as relações entre os homens tornam-se relações entre coisas. Fórmula em que, segundo Rancière, os dois complementos assumem sub-repticiamente o lugar de sujeitos (163).
De sua análise de uma dos três pares da fórmula trinitária, Rancière tira duas conclusões. A primeira é que o processo de constituição daquele par faria intervir uma estrutura inteiramente diferente da estrutura “sujeito/predicado/objeto” dos Manuscritos. A segunda é que as formas que o fetichismo apresenta não seriam formas deformadas pela especulação. Seriam as próprias formas nas quais o processo capitalista existe para os agentes da produção (163). O que, no nosso modo de ver, é basicamente algo que Marx levanta contra Feuerbach e os jovens hegelianos em geral, já nos anos 1844-45. Ou seja, a idéia de que é “materialmente” - e não na consciência - que o homem (cuja essência são as “relações sociais de produção”) está dividido e alienado. É por isso que o que cabe empreender não é uma conversão ideológica, pela crítica, de uma ilusão subjetiva,`mas uma transformação revolucionária, material, objetiva.
O fetichismo, diz Rancière, representaria apenas o deslocamento específico segundo o qual a estrutura do modo de produção capitalista se apresenta no campo da Wirklichkeit, da Alltagsleben (vida cotidiana). São as formas do fetichismo que a economia vulgar (tanto quanto o senso comum) sistematiza no seu discurso. A teoria de Marx compreende essas formas “alienadas” e “irracionais” como formas de aparecimento da essência interna do processo. Como diz Rancière; ao mesmo tempo em que faz a teoria do processo, Marx faz também a teoria do seu desconhecimento (109), em que vivem os homens, em que fundam seus juízos mais gerais e em que se fundam mesmo suas outras teorias. Tudo isso estaria preso à “percepção vulgar” dos homens, à “essência” de sua subjetividade sob o capitalismo, em última análise às sua “incapacidade de perceber a realidade” (109, 137). É o que mostra a “Super-Teoria” marxiano-althusseriana exposta por Rancière, como continuadora e herdeira legítima do que os alemães, no século XIX, denominavam de “Ciência (Wissenschaft) alemã” ou “Teoria alemã”. Se isso não é alienação, não sei o que seria.
Quanto a mim, prefiro ver em Marx não a verdadeira e única ciência, a luz que nos desvela a realidade essencial e última dos homens e da sociedade, mas uma análise que ilumina aspectos freqüentemente desconsiderados de sua dinâmica, uma análise motivada por uma aspiração humanista e por uma confiança (talvez exagerada, mas fortemente animadora) numa possibilidade / necessidade de mudança radical, que se quer, apesar de tudo, realista, enquanto baseada em fatores reais já presentes no movimento dessa mesma sociedade. Por fim, é de se supor, em todo caso, que Marx concebe que, superadas as relações capitalistas, cessariam essas ilusões e o homem se tornaria efetivamente sujeito. Ou será que a Revolução apenas promete uma troca de ilusões e a mesma incapacidade para perceber o real como ele é e para dominá-lo?

Referências Bibliográficas:

RANCIÈRE, Jacques. “O Conceito de Crítica e a Crítica da Economia Política dos Manuscritos de 1844 a O Capital”. No segundo volume de Ler O Capital, Althusser, Rancière e Macherey. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, 2 vols. Tradução de Nathanael Caixeiro, da edição francesa de 1975 (Lire le Capital, Paris, Maspero)

MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. Vols. I e II, livro um. Tradução de Reginaldo Sant’Anna.

SOUZA, J. Crisóstomo de. “Essência Humana e Teoria Crítica em Marx”. Em Revista da Faeeba , Universdade Estadual da Bahia. Salvador, vol.6, n.8, 1980.

 

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