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José Crisóstomo de Souza
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A Polêmica Stirner-Marx em relação ao Debate Rorty-Habermas
José Crisóstomo de Souza

Em comparação com outro confronto que também apresentei em livro mais recente, aquele com os debates Rorty & Habermas, trata-se aqui da peleja, não entre dois pragmatistas explícitos, mas entre dois representantes de filosofias práticas de corte mais especificamente narrativo-hegeliano: a individualista radical, de Max Stirner, e a comunista materialista, de Karl Marx. Trata-se, mesmo assim, de um confronto análogo ao outro, embora o pensamento de Habermas não sustente um ‘fundacionismo transcendental’ forte como o de Marx, nem o nominalista Rorty chegue ao desconstrucionismo extremo de Max Stirner. Ainda que, de fato, para Rorty e Stirner, os ideais políticos e morais modernos não tenham o fundamento que posições iluministas clássicas lhes atribuem (seja a razão ou o humano universais), e ainda que os dois compartilhem um certo traço nietzschiano (avant-la-lêtre, no caso de Stirner), entre outras coisas por sua ênfase na contingência e na criação pessoal, do indivíduo como um ser corpóreo e particular. E embora que, do outro lado, Habermas e Marx sejam de fato, ambos, herdeiros por igual do Esclarecimento universalista alemão - e, em diferente medida, também do ‘humano genérico’.
Podemos dizer que, entre Stirner e Marx, está em disputa, já no meio do séc. XIX, a ‘crítica verdadeira’ da Modernidade, senão seus próprios destinos, por vias radicalmente antagônicas; enquanto que em Habermas e Rorty as posições sobre ela (a Modernidade) divergem no âmbito de uma filosofia prática eminentemente democrática. Tal como Rorty, o antiplatônico Max Stirner quer um mundo sem essências nem substâncias, sem realidades em si nem objetividades plenas, enquanto que no mundo de Marx o primeiro par (essência e substância) permanece para dar suporte ao segundo em sua versão robusta, e, no de Habermas, no seu lugar, sem semelhantes suportes, permanecem pelo menos as pretensões de universalidade e incondicionalidade da verdade, do paradigma anterior, moderno, iluminista clássico.
O cabimento de uma aproximação entre os dois debates encontrar respaldo também na observação, um tanto exagerada, de David Hall: “Fica claro que, do mesmo modo que Habermas pode ser acusado de moldar qualquer esfera privada, que estivesse disposto a reconhecer, aos critérios da vida pública definida pela comunicação não-distorcida, o desejo de Rorty de uma cultura poetizada é essencialmente o de moldar a esfera pública segundo as linhas da esfera privada; nos dois casos, não há nenhum equilíbrio verdadeiro mas, antes o predomínio das preocupações de uma esfera sobre as da outra.” (HALL, Richard Rorty: Prophet and Poet of the New Pragmatism. NewYork: SUNY Press, 1994, p. 151). Pois, paa nós, o mesmo pode ser dito, e com mais razão, sobre a polarização entre Stirner e Marx, embora a busca de um equilíbrio - verdadeiro ou aparente - entre aquelas duas esferas, pública e privada, não seja o caso para nenhum desses dois, que, ademais, elevam o tom da disputa a uma radicalidade e animosidade (principalmente no caso de Marx) infinitamente maiores do que no caso de seus sucessores pragmatistas contemporâneos.
O A Questão da Individualidade, 208 páginas, sobre a polêmica Stirner-Marx a propósito do ‘humano’ e do ‘social’ (os quais, com a pretensão de fim e medida objetivos para o indivíduo, consciente de si em sua particularidade, seriam ‘nada’ segundo Stirner e ‘tudo’ segundo Marx), está dividido em quatro seções, além de uma parte final de apêndices, as quais tratam de: I - Um desenvolvimento do indivíduo, singular e ciente de si, reconciliado com sua corporeidade e com o mundo; II - O homem como ser igual e universal, para os filósofos iluministas, modernos, e especialmente para o ‘humanismo real’, feuerbachiano; III - A promessa não cumprida da Modernidade secular e ‘pós-metafísica’: a apropriação de si e do mundo, pela rebeldia individual ou pela revolução social; IV - A individualidade e a ação pessoais e criadoras, de Stirner, versus a individualidade posta pelas circunstâncias sociais, a serem apropriadas coletivamente, para Marx. Por fim, os apêndices: a) sobre o significado e o alcance contemporâneo do debate Stirner-Marx, b) sobre o que é A Ideologia Alemã no desenvolvimento do pensamento de maturidade de Marx e c) sobre a questão do humanismo e da essência humana em Marx - para Althusser, Della Volpe, Adam Schaff e o autor (JCS). Esses itens dão uma boa ideia do que está em jogo na pendência entre os dois hegelianos prático-críticos, radicais e anti-idealistas - pelo menos segundo nossa interpretação.
De qualquer modo, como Stirner é um pensador pouco conhecido, frequentemente mal conhecido, mal-entendido, que sequer estava traduzido para o português quando escrevemos o livro, este traz uma apresentação substanciosa do texto stirneriano, em cotejo, ponto por ponto, com as críticas de Marx (e de Engels), também abundantemente expostas. Além disso, boa parte da bibliografia mais relevante disponível na época, em português, inglês, francês, alemão, espanhol e italiano, foi por mim utilizada na pesquisa e no livro. Assinale-se ainda que esse livro sobre Stirner e Marx vem na sequência de outro que o completa, o Ascensão e Queda do Sujeito no Movimento Jovem Hegeliano (UFBA, 1993), que dá uma visão geral e introdutória do contexto de interlocução e da trama conceitual das posições que se desenvolvem no interior do hegelianismo crítico, ateu, depois de Hegel, onde nossa polêmica encontra seu lugar e ganha contornos mais nítidos. É um campo inteiro em que deitam raízes posições de parte relevante das filosofias da práxis posteriores (‘existencialistas’ ou ‘históricas’), que desdobram o que aí está em embrião.
Stirner chega até nós pintado como risível idealista subjetivo e idealista histórico delirante, por seu ferrenho adversário, que entretanto cremos sabe muito bem que ele não é nada isso. No outro extremo, Stirner nos chega reduzido a um teórico do anarquismo, agora pela mão de seus defensores e difusores mais tradicionais, justamente os anarquistas, que querem resgatá-lo para suas fileiras. Stirner, entretanto, como apresentamos no livro, fica mais bem descrito como uma ‘combinação’ de filósofo proto-nietzschiano, imoralista, iconoclasta, e proto-existencialista ateu, nadificador (mais pelo corpo do que pela consciência). Fica como um desafiador gesto antiessencialista e dessacralizante a favor da individualidade absolutamente singular e irredutível, do ser si mesmo, corpóreo, particular, finito. Diante do qual Marx, que não sem razão lhe dedicou mais páginas do que a qualquer outro pensador, apareceria então, previsivelmente, para bom entendedor, como empenhado num novo esforço fundacionista para seu ‘humanismo real’, objetivo, comunista, até aí compartilhado por ele com o ‘amoroso’ Feuerbach; um esforço que aparentemente infletiu seu projeto filosófico (teórico) para um - mais depurado - materialismo prático-normativo-transcendental de tipo novo.
A partir daí Marx tratará de transformar o imperativo categórico humanista, digamos, moral, ético, de seus textos de juventude, em um ‘decreto’ inteiramente objetivo, material, causal, da própria realidade, desde seu nível essencial, não-aparente, ocultado, cuja lógica seria por ele ‘decifrada’ no Capital, com recurso a categorias da lógica de Hegel. Diante de Stirner, Marx trata de repor por essa via aquilo que ele mesmo chama (na Ideologia Alemã) de um tertium comparationis universal e objetivo, uma medida e fim gerais, que confronta os indivíduos e suas eventuais pretensões subjetivistas, para além das disposições ‘niilistas’, ‘relativistas’, individualistas, do indivíduo moderno, que Stirner quer incentivar. Mesmo assim, os homens são, para ambos Marx e Stirner, seres práticos, interessados, lidando, como podem, da perspectiva do uso e da satisfação, com o mundo e suas imposições, que, de outro lado, são, de um modo ou de outro, resultado de sua própria faina criadora. E, na sua diferença, o pensamento de Stirner pode talvez, ao fim e ao cabo, resultar ser um contrapeso ou um complemento, necessário, pelo lado das prerrogativas da particularidade e da subjetividade, àquele de Marx, que fala desde o social, material, e desde o que é geral e generalizável. Como Sartre imaginaria depois que seu próprio existencialismo pudesse ser, para o mesmo marxismo, ainda no século XX. Ou, quem sabe, tal resultado ‘conciliador’ poderia ser melhor obtido por uma outra consideração, prática, nova, pragmatista, democrática, à la Rorty & Habermas, do argumento dos dois, que remetesse cada uma das duas perspectivas a sua respectiva esfera própria, a pública e a privada. De qualquer forma, não se pode dizer que Stirner não se abra a uma consideração prática - concessiva, e realista, ‘agonística’ - da esfera social e política, nem que Marx não se empenhe, a partir da polêmica com ele, em ‘traduzir’ os ideais públicos, gerais, estritamente nos mesmos termos: práticos, materiais, interessados.

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