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Pragmatismo Kantiano de Habermas vs. Pragmatismo Romântico de Rorty
José Crisóstomo de Souza

Os debates Habermas-Rorty são travados entre dois filósofos que, vindo um de Marx e outro da filosofia analítica (mas também de Marx, se considerados juventude e círculo familiar), e embora comumente pensados como antípodas, um ‘sério’ e racionalista (Habermas), outro ‘pós-moderno’ e ‘relativista’ (Rorty), entretanto reivindicam ambos a democracia, o pragmatismo (o de um mais ‘peirciano’, o de outro mais ‘deweyano’), a virada linguística da filosofia (em sua versão analítica e pós-analítica, e também heideggeriana), e coincidem na noção de verdade como justificação (à audiência concernida - envolvida aí alguma idealização, universalista em Habermas mas não em Rorty). Significativo e frequentemente desconsiderado é que Jürgen Habermas não só se assuma nesses debates como filósofo pragmatista (‘kantiano’), e considere que integra uma família pragmatista que inclui outros da mesma espécie (como Putnam), mas também digno de registro é que ele critique Richard Rorty (que prefere Hume a Kant) como menos pragmatista do que ele - por não recuperar intuições realistas do mundo da vida, exigidas na prática cotidiana.
No fim de contas, o pragmatismo de Habermas preocupa-se em incluir ainda incondicionalidade e universalidade para suas pretensões de validade, por receios de alemão, enquanto o pragmatismo de Rorty, com ânimo de americano, prefere abrir mão delas para colher benefícios do lado da efetividade, mas também da novidade e da criação no campo das crenas (essa, sua tinta romântica, nietzschiana), acreditando que verdade como justificação (para uma comunidade aberta) já é o suficiente e o melhor para exorcizar recaídas em violência nos negócios humanos, em especial na política. Bem entendidos, os pragmatismo de ambos Habermas e Rorty têm igualmente pretensões a algo como 'transcendência de contexto', porém não do mesmo tipo: a do primeiro kantiana, a do segundo romântica. E se declaram, os dois, anti-logocentristas (Rorty mais completamente), ou seja, atribuem prioridade à prática frente à teoria - embora, como entendo, estariam melhor se o fizessem menos ‘linguicentricamente’.
Podemos acrescentar que ambos são filósofos não-correspondentistas, não-representacionistas, não-mentalistas, adversários da ‘razão centrada no sujeito’ e do ‘paradigma da filosofia da consciência’, que, por tudo isso, concebem uma mudança considerável no papel tradicional da filosofia (para Rorty, quase seu fim): de ‘juíza transcendental’ da cultura, para partícipe interna a ela, como mediadora entre saberes especializados, e entre estes e o mundo da vida. Embora ela ainda seja, para Habermas, a guardiã da racionalidade, e, para Rorty, intervenção transformadora (sem papel privilegiado) na cultura: no sentido prioritário da solidariedade (um nome melhor para racionalidade), em vez da verdade ou da objetividade (esta tomada por Rorty como uma espécie de reminiscência de reificação ou alienação).
Embora Habermas, quando distingue sua posição da de seu parceiro Karl-Otto Apel (que ainda sustenta uma ‘fundamentação transcendental última’), pareça fazê-lo por concessões práticas, contextualistas, empiristas e destranscendentalizantes, a Rorty, ele decididamente não está disposto a acompanhar este até o fim numa empresa historicista, nominalista e naturalista. Já Rorty, com pretensões de minar o ‘platonismo’ da filosofia e da cultura, alega que o que faz é apenas acompanhar Habermas até o fim na sua via de ‘socialização’ da razão (intersubjetiva) como disposição para o entendimento mútuo. O fato é que Rorty, com a virada intersubjetiva na racionalidade, quer abrir mais espaço do que concede Habermas para seu antiplatonismo, não só para um completo naturalismo não reducionista, destranscendentalizante, e um contextualismo historicista, como também para uma radical contingência, do laço social e da própria individualidade, e, assim, para uma ‘poética’ invenção pública e uma livre autocriação privada. Isso, sem abrir mão da solidariedade, mas, ao contrário, colocando-a acima e no lugar da objetividade, ou seja, pondo justificação no lugar de verdade, e solidariedade no lugar de objetividade e universalidade.
Por fim, Habermas e Rorty são herdeiros dos ideais do Esclarecimento, são também filósofos ‘pós-metafísicos’, críticos do sujeito metafísico clássico, moderno, adversários da razão centrada no sujeito, e críticos moderados da Modernidade, cujos ideais querem tornar mais inclusivos e ver mais completamente realizados. É isso que os debates mostram, e que aponto (talvez hoje com mais clareza) no livro que publiquei sobre o assunto, junto com suas reveladoras estratégias argumentativas e suas engenhosas opções conceituais.

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