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José Crisóstomo de Souza
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A Filosofia Marxiana da História como Ação de Auto-Engendramento (Selbsterzeugung) do Homem Plenamente Social

José Crisóstomo de Souza

 

Em Marx, a história pode ser considerada como o processo de (auto-)engendramento do homem pleno, isto é, processo de realização, plena, da sua essência genérica. Nos Manuscritos de 1844, Marx representa “o movimento inteiro da História” como “ato de nascimento” do homem - como sua “pré-história” ou história natural. E, tanto na Sagrada Família como na Ideologia Alemã, ele volta a oferecer elementos significativos nessa mesma linha. Na verdade, como Marx admite expressamente, sua filosofia da história (a que ele quer depois dar o feitio de uma ciência) encontra sua origem mais imediata em Hegel, particularmente na Fenomenologia do Espírito, e, de outro lado, na antropologia filosófica de Feuerbach, no seu conceito de “essência genérica” do homem (Gattungswesen). Vale notar, entretanto, que há nessa concepção marxiana um alcance insuspeito ou, em todo caso, subestimado: esse homem, concebido como um universal concreto, histórico, adquire o papel de fundamento forte, verdadeira Letztbegrudung, para o alcance normativo da teoria “científica” de Marx. Tal fundamento pode ser entendido como versão aperfeiçoada, tanto do universal “transcendente” oferecido pela concepção platônico-cristã, como daquele, moderno, secular, antropocêntrico, mas ainda “abstrato” e “a-histórico”, oferecido pelo Esclarecimento. Como contraprova para essa leitura da concepção de Marx, tomo em consideração, além de seu próprio texto, as interpretações, sobre o assunto, de autores marxistas como Della Volpe e Adam Schaff. E mesmo Louis Althusser, cujo marxismo se quer depurado de todo elemento “antropológico” e “filosófico”, hegeliano-feuerbachiano.
Na Ideologia Alemã, Marx certamente não mais é o mesmo humanista dos Manuscritos de 44, mas creio que se pode ainda percebê-lo aí comprometido com a permanência e transformação do princípio do “homem genérico”. O que é o comunismo - que Marx, ainda na Ideologia Alemã, chama feuerbachianamente de “humanismo real” - segundo sua nova “concepção materialista da história”, elaborada em 1845-46? Antes de tudo, o comunismo supõe o fim da divisão do trabalho, que está, para Marx, praticamente na raiz de todas as contradições que flagelam o gênero humano (IA 61). Tal divisão está por trás da separação entre prazer e trabalho, e entre interesse particular e interesse geral (61-2). Em decorrência dela, os indivíduos encontram-se escravizados a uma determinada esfera de atividade (63, 80). Ela é ainda e sobretudo responsável pela transformação das “potencias pessoais” em “potências objetivas” (93), com a perda de controle, pelos indivíduos, de sua atividade social (63). Essa situação, em que a força multiplicada e as relações sociais resultantes da cooperação dos indivíduos aparecem como algo de “estranho”, que “não conseguem dominar”, Marx, ainda na Idelogia, não regateia em chamar de “alienação”, mesmo que com aspas. Ora, é essa “alienação” que a revolução comunista deve suprimir, abolindo por fim e definitivamente a divisão do trabalho (61, 63), e instaurando o homem “genérico” e o comunismo, em seu lugar.
A revolução comunista, na Ideologia Alemã, parece representar simplesmente a “derrocada do estado social atual” (IA 67, d37), necessária “para fundar a sociedade sobre bases novas” (68). Na verdade, bem entendida, significa muito mais que isso. Ela envolve uma tal mudança, uma tal inversão ou negação, que, para Marx, além de implicar na “dissolução de todas as classes”, representará a “apropriação”, pelos indivíduos, da “totalidade das forças produtivas” (68, 103, d67). E se constituirá mesmo na inauguração de uma outra história (104 d68). Com o comunismo, todo indivíduo “ver-se-á libertado das limitações nacionais e locais”, e não mais estará submetido “a uma esfera de atividade exclusiva” (63). No marco do comunismo, cada homem poderá “fazer uma coisa hoje e amanhã outra, por ex., caçar pescar, fazer a crítica” - “sem jamais tornar-se caçador, pescador ou crítico” (ibid.) O comunismo é, finalmente, a transformação dos indivíduos em “indivíduos completos” (104, d68), e a criação do indivíduo verdadeiramente universal (94).
Naturalmente, Marx admite, pois não é um idealista especulativo qualquer, que “só é possível realizar uma libertação real do ‘homem’, no mundo real e com meios reais” (IA 52-3). E que tudo isso supõe um determinado “desenvolvimento das forças produtivas” e de “relações universais” de intercâmbio (64, d35). Mas, como ele próprio declara, são aqueles “indivíduos completos” - “os indivíduos que não estão subordinados à divisão do trabalho” - que “os filósofos representam, como ideal, sob o termo ‘homem’.”(104, d69). Portanto, podemos entender que o comunismo do Marx da Ideologia Alemã é finalmente a instauração do “homem” (do homem ideal, ou do ideal “homem”), do “homem genérico”, que é o resultado da história (67, d37). E, como vimos, a sucessão histórica dos ainda-não-homens, através dos tempos, “pode [na filosofia] ser representada como um indivíduo único que realiza esse mistério de engendrar-se a si mesmo” - como “homem” (ibid.).
Também nesse caso, os escritos anteriores ajudam a tornar visíveis certas implicações mais ou menos recalcadas pela nova postura teórica do Marx maduro. Coisas que ele agora muitas vezes só se permite mencionar como simples imagens, ou como concessões à fantasia - ou à linguagem - dos filósofos. Nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos (de 1844), Marx declarava literalmente que o “ato de nascimento do homem” [que, “como tudo que é natural, precisa nascer”] é “a História”. Que é simplesmente o “engendramento do homem pelo trabalho humano”. Como tal engendramento ainda não se completou, podemos inclusive concluir que, para Marx, os indivíduos humanos atualmente existentes não são verdadeiramente homens - por esdrúxula que a idéia possa parecer. Tal idéia por certo deixaria muita gente indignada, mas é bem o que Marx sustenta, na própria Ideologia Alemã, quando reprova “os filósofos” [seus companheiros rivais na esquerda hegeliana] por “não dizerem diretamente que não sois homens”, mas apenas que “falta-vos a consciência de homens” (IA 283, d232).
Quanto ao comunismo, Marx, nos Manuscritos de 1844, afirma a respeito dele precisamente a mesma coisa que a propósito do “homem”: “o movimento inteiro da história é seu ato de procriação real”, o ato “de nascimento de sua existência empírica”. Que será afinal “a solução do antagonismo entre homem e natureza” e da oposição “dos homens entre si”. Bem como será o fim da “luta entre existência e essência”, e entre “indivíduo e gênero” (ibid.) - tudo que, para bom entendedor, Marx repete na Ideologia Alemã. O comunismo é exatamente o “homem” realizado, o “gênero” constituído, e Marx, aí na Ideologia, tem apenas de mencionar aquele (o comunismo) no lugar deste (o homem genérico).
A história, pelo que vimos, “não é história real do homem enquanto sujeito dado de antemão”, já que representa somente “seu ato de engendramento ou nascimento”. Ora, o mais interessante a respeito de tal concepção é que sua origem imediata encontra-se em Hegel, particularmente na Fenomenologia do Espírito. O grande mérito desta obra hegeliana, segundo Marx, estaria justamente em que ela “apreende a auto-produção do homem como um processo”. Ela concebe o homem “como resultado de seu próprio trabalho”, que é “o devir para si do homem no interior da alienação”. Hegel teria encontrado “apenas a expressão abstrata e especulativa, do movimento da história”. Mesmo assim, é segundo a receita do grande filósofo especulativo (e da sua Fenomenologia), que Marx representará tal movimento como engendramento do comunismo e do homem-sujeito. Talvez mais interessante do que essa constatação, entretanto, é notar como o que Marx afirma aqui a respeito do “homem” corresponde ao que é dito na Fenomenologia a propósito do... Espírito Absoluto. Com o que, em Marx, o “homem” parece ser mesmo não o homem real corpóreo mas um novo avatar do Espírito...
Que tal figura - o homem - está concebida segundo a imagem do Espírito, de Hegel, o próprio Marx se encarrega de mostrar, nas obras anteriores, e ainda, tacitamente, na Ideologia Alemã. Em Hegel, o Espírito vem propriamente no fim; seu processo de constituição “precisa de um sujeito”, que todavia “só aparece como resultado”. Ora, na Sagrada Família (1845), Marx afirma que o Espírito Absoluto é o “homem” e o “gênero” sob “vestimenta metafísica”, e atribui a Feuerbach a glória de ter realizado seu “des-travestimento”. Pelo que vimos até aqui, porém, Marx vai se aproximar do modelo hegeliano mais do que Feuerbach, defendendo o caráter histórico do homem-espírito, e concebendo-o como resultado do referido processo.
Na concepção hegeliana, o Espírito, no seu devir, aliena-se de si mesmo na “sua” substância, o mundo material. Marx, na própria Ideologia Alemã, tem sua versão para isso: a dominação do homem pelas “circunstâncias sociais”, com a divisão do trabalho. Assim, o homem, tal como o Espírito na Substância, está primeiro como negado, nas relações sociais existentes. E só com a universalização das relações sociais e o fim da divisão do trabalho constituir-se-á em universal para si e verdadeiro sujeito. É esse o futuro que lhe espera.
Para o filósofo marxista Louis Althusser - é assim que ele próprio resume a “tese essencial” de seus estudos -, Marx abandona o homem hegeliano-feuerbachiano, e o discurso “ideológico” humanista, em 1845, quando funda a verdadeira “ciência da história”. A partir de então, Marx afastar-se-ia completamente de “toda teoria que fundamente a história e a política numa essência do homem”, e rejeitaria “toda a problemática da filosofia anterior”. Ora, como pode ser assim se o próprio Marx acredita, tanto nas “Teses ad Feuerbach” como na Ideologia Alemã, que justamente agora consegue resolver (“num fato empírico” e “na prática”) “todo problema filosófico profundo” e todos os “mistérios” da filosofia? Para Althusser, o abandono do “homem” e da “essência” estaria expressa na afirmativa de que esta última “não é um atributo dos homens tomados isoladamente”, mas “o conjunto das relações sociais”. Como entendemos, porém, tal proposição significa apenas que tal essência encontra-se, hegelianamente, em devir, nas relações sociais.
Althusser acha ainda que Marx, na sua teoria científica da história, substitui a oposição “indivíduos-essência”, por conceitos inteiramente novos, como forças produtivas, relações de produção, etc. - o que significaria uma “revolução teórica total”, com o abandono de toda noção filosófica. De fato, não há dúvida de que se trata de uma extraordinária revolução conceitual: Marx dispõe agora, com sua teoria nova, de uma concepção que empresta sentido “empírico” àquela oposição e concebe como resolvê-la “na prática”, pela revolução. Certamente tal concepção não é um humanismo “contemplativo” e contraditoriamente “empirista”, à la Feuerbach. Mas tampouco representa simplesmente uma pura “ciência da história”. Pois por ela é deve entender que são determinadas “relações de produção”, decorrentes da “divisão do trabalho”, que apartam o homem da sua “essência” - mesmo com aspas. E a imaginar que aquelas relações representam um momento do devir desta essência, uma vez que esta não está dada de antemão, nem tampouco pertence ao indivíduo isolado. Trata-se de uma concepção revolucionária, coisa que a de Feuerbach claramente não é. Na qual, contudo, a “essência” e sua realização no comunismo não parecem ter perdido o caráter de um ideal (inscrito na história, naturalmente), nem a força de uma “missão” - antes pelo contrário.
Louis Althusser acha que, quando Marx diz que “a essência humana é o conjunto das relações sociais”, não se trataria mais daquela, “mas do conjunto das relações sociais”. Ora, Marx está claramente propondo uma noção de essência humana (“real”), no lugar de outra, dada, “muda”, “natural”, etc.: a de Feuerbach. Por que não tomá-lo respeitosamente a sério, se, à luz da “filosofia anterior” (o hegelianismo), suas palavras podem ser aceitas pelo que dizem? Tanto mais que, na seqüência, Marx deixa patente como seu ponto de vista é exigido para uma crítica daquela “essência humana real” (enquanto “desvirtuada”), coisa que Feuerbach não alcança fazer. Ao contrário do que sugere Althusser, o problema de Marx não é apenas “pensar” a realidade, mas “criticá-la”.
Para Althusser, “o par humano-desumano constitui o princípio oculto de todos os humanismos”. Não será esse, ao contrário, o princípio manifesto de todo humanismo, e o princípio mais ou menos oculto - na verdade reelaborado - na nova concepção? A divisão do trabalho e as relações de produção capitalistas não representam, como muitos marxistas diriam espontaneamente, o “desumano”?
Althusser entende que algumas das expressões favoritas de Marx (na verdade, favoritas da esquerda hegeliana e do próprio Hegel), como “concreto”, “real”, etc., “são palavras introduzidas na ideologia pela própria oposição à ideologia”. Ora, não seriam elas, em vez disso, o mais próprio da ideologia? O jovem (anti-)hegeliano Max Stirner poderia concordar com Althusser: aquelas palavras estão na linha dos esforços para romper com o mundo das abstrações, ou do espírito. Dos esforços que têm redundado, porém, apenas em tentativas para tornar o “espírito” (ou o homem genérico) algo de “real” e “material”. Por acaso Marx - agora com a palavra “científico” - representará uma ruptura absoluta com tudo isso, ou será antes a culminância disso tudo?
Althusser fala “na disparidade teórica entre um termo científico [socialismo] e um termo ideológico [humanismo]”. Não será essa uma disparidade análoga a uma existente entre um “termo filosófico” [humanismo] e um “termo religioso” [cristianismo]? Sem dúvida há uma diferença entre os pares “humanismo... real” e “socialismo... científico”, mas parece haver também uma certa homologia.
Em dado momento, Althusser manifesta dúvidas acerca da “existência concreta da universalidade do gênero humano atualmente” - preocupação singular para um anti-humanista convicto. Nem por isso, porém, ele deixa de concluir pela importância de “denunciar” e “lutar” contra a fome, a exploração, a guerra e outras... desumanidades. Com as quais o discurso humanista - segundo ele, “hipnotizador”, “cortina de fumaça”, etc. - estaria na verdade solidário. Bem, essa poderia ser também, e de fato é, repetidas vezes, a crítica de Marx: o humanismo (“filosófico”) está entre “impotente” e “hipócrita”, para realizar... o “humano” verdadeiro.
Não há por que negar que o universal “homem” sofre uma transformação radical em 1845, na concepção materialista da história, e no chamado socialismo científico. Em algumas formas que o marxismo tem assumido, o “recalcamento” de tal princípio chega quase a fazê-lo desaparecer. Ainda que - e isso parece mesmo uma lei - apenas para deixá-lo ainda mais poderoso. O fato é que o “homem” parece continuar sempre ali, implicitamente ou não, a se fazer valer como medida, norma de ação e “telos” da história. A ter o seu papel como “universal fundante”, de atitudes e valores - morais, políticos e sociais. Marx, com sua “ciência nova”, obtém muito mais do que apenas uma maneira distinta de explicar os fatos e o desenrolar da história. Como deixa ver, por exemplo, Galvano Della Volpe, para quem a nova concepção oferece precisamente um “universal histórico” para ocupar o lugar do antigo Espírito (Deus).
O universal “transcendente” (Deus) terá sido útil aqui, diz Della Volpe, mas sempre albergou, vejam só, um “egoísmo implícito”. E hoje mais do que nunca revelaria sua “impotência axiológica” de base, para fundar uma igualdade humana verdadeira. Para o marxista italiano, a superação desse limitado ponto de vista envolveria a crítica da concepção rousseauista-cristã (“individualista”), de um “indivíduo abstrato” - solitário e pré-social. Marx seria quem oferece tal crítica, fornecendo ao mesmo tempo o universal finalmente encarnado na história: o “gênero histórico chamado gênero humano”. Della Volpe recorre a Marx para opor o que ele chama de “universalidade real histórica, própria do gênero humano”, àquela “irreal”, que transcende o “humano”. Em Rousseau, a igualdade dos homens “abstratos” ensejaria apenas o “amor humanitário”. Ou seja, envolveria uma simples “laicização da caritas cristã”, que decorre da relação de cada um “com o universal transcendente”. Em tal caso, o indivíduo seria “pessoa” - ou seja, valeria alguma coisa - pela sua união privada com aquele, e não, como em Marx, com “o universal histórico que é o gênero humano”.
O universal “humano” teria sido primeiro descoberto na concepção “platônico-cristã” da natureza humana. Mas agora, como entende Della Volpe, com a crise de tal fundamento “metafísico”, “religioso” e “abstrato”, sua “função revolucionária” passa ao marxismo. Que se coloca assim como continuidade e superação do rousseauismo, e, pelo que se pode entender, também do cristianismo e do platonismo. Com Marx, a igualdade dos homens passaria a ser finalmente “substancial” e “real” (além de, por suposto, não metafísica e não religiosa) porque “social”. Tal igualdade, aliás, é também a única que comporta a “liberdade real”, “a liberdade na comunidade e para ela”. Para o marxista italiano, o gênero ou universal humano, “ao qual o indivíduo pertence”, é que pode agora efetivamente “investi-lo” com o valor e a dignidade de “pessoa”, dotá-lo de liberdade e de direitos. Ora, se isso é a verdadeira concepção de Marx, ela se oferece como um alvo vulnerável à crítica anti-hegeliana de contemporâneos seus, como Bruno Bauer e Max Stirner, sem falar na de contemporâneos nossos, cujos argumentos Althusser gostaria de neutralizar...
De acordo com Mario Rossi, discípulo de Della Volpe, Marx, retrucando ao individualista Max Stirner, opõe à individualidade stirneriana “pura e simplesmente a concepção materialista da história”. Sendo assim, Rossi admite, esta não deve ser entendida apenas como um instrumento de interpretação da história, mas como uma doutrina da “fundação do indivíduo orgânico”, entendido como o único indivíduo verdadeiramente pessoal. Através de tal doutrina, Marx teria estabelecido que “só organicamente unido aos outros” o indivíduo deixará de ser “contingente” para tornar-se “pessoal” - sendo a revolução comunista precisamente o “ato de nascimento” desse “homem total”. Segundo Rossi, a concepção materialista da história opera uma “total resolução do indivíduo no corpo social”, como único modo, entretanto, de lhe garantir um “âmbito total e ilimitado de manifestação pessoal”.
Outro marxista, o polonês Adam Schaff, entende que a afirmação do “homem”, no marxismo, é a afirmação da verdadeira singularidade ou individualidade de cada um. Mesmo se Schaff não consegue para tal equação (homem marxiano = indivíduo singular) mais do que fórmulas “fracas” como essa: “O marxismo admitirá a tese da unicidade dos indivíduos”, “reconhecerá que todo indivíduo é único”, e que a personalidade humana constitui também “um certo valor” [grifos nossos]. É que aí o indivíduo continua entendido essencialmente como “parte” da natureza e da sociedade - ou seja, do gênero. E a “personalidade” continua considerada como um “produto social”, como uma “função das relações sociais”. O que significa, como o marxista polonês mesmo diz, que ela “é única simplesmente pela complexidad” de tal produção.
Schaff alardeia ainda as vantagens do marxismo como “antropologia antropocêntrica” (frente à uma antropologia “teocêntrica”, da religião) e como afirmação essencial da “autonomia” do “mundo humano”. Como se o esforço marxiano só pudesse ser entendido como um ataque contra a heteronomia do homem firmada pela religião. É certo que Marx procura desenvolver seu combate às pretensões “individualistas” e “subjetivistas” do secularizado indivíduo moderno (radicalizadas por Bruno Bauer e Max Stirner, contra os quais Marx escreve a Sagrada Família e a Ideologia Alemã), como um prolongamento da crítica materialista, sua e de Feuerbach, à religião. Sabemos, porém, como seu empenho se enfrentava com a iniciativa inversa, de seus adversários, de enquadrar certas concepções humanistas e socialistas, aquelas essencialistas, como “religiosas” e “heteronomistas”... com relação ao indivíduo realmente existente. Entregando a um humanismo ingênuo a defesa das prerrogativas do indivíduo enquanto “único” e “autônomo”, não admira que Schaff termine por concluir tal defesa com uma catilinária “religiosa” contra o “egoísmo moderno”. Termine por concluí-la com a proposição de que o socialismo é a verdadeira “doutrina do amor ao próximo”, e de que o comunismo representa a “causa” e a “realização” do “homem novo”, ainda não existente. São opiniões de marxistas que aparentemente trariam embaraço a Marx na polêmica com seus contemporâneos anti-idealistas e anti-metafísicos, e, mais ainda, com alguns dos contemporâneos nossos.

Referências:

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BAUER, Bruno, “The Genus and the Crowd” (Die Gattung und die Masse), in The Philosophical Forum, vol. 8, nos.2-3-4, Boston University, 1978.
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HEGEL, G. W. F., Fenomenologia del Espiritu, Fondo de Cultura Econômica, México, 1973.
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MARX, Karl, “Thesen uber Feuerbach”, in Marx & Engels Werke, vol. 3, Dietz Verlag, Berlin, 1958.
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MARX, Karl. ENGELS, Friedrich, La Saint Familie, Éditions Sociales, Paris, 1972.
ROSSI, Mario, La Concezione Materialistica della Storia (Da Hegel a Marx, vol. 4), Feltrinelli, Milano, 1975.
SCHAFF, Adam, Le Merxisme et l’Individu, Armand Colin, Paris, 1968.
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