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José Crisóstomo de Souza
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(artigo publicado nos Cadernos Nietzsche, v. 32)
Consideração Tempestiva I: Nietzsche como Jovem Hegeliano e Maître-à-Penser:


José Crisóstomo de Souza
Depto de Filosofia, UFBA

 

Resumo: Nietzsche vale-se nada extemporaneamente de uma ambiciosa narrativa histórico-dialética, tipicamente jovem hegeliana, para enquadrar/valorar a Modernidade, elevar sua própria filosofia a uma altura incontrastada e encontrar para si um lugar absolutamente superior e único, que lhe autorize como Crítico absoluto e Destino, tendo em última análise como alvo principal (típico do seu tempo alemão) o “filisteu”, o indivíduo humano comum e aquilo que politicamente lhe corresponde: a sociedade civil e a democracia. O que não exclui nosso interesse por sua notável crítica da cultura, seu naturalismo não-reducionista, romântico, sua contribuição à crítica do “platonismo” e do “cartesianismo”.
Palavras-chave: autorização transcendental ---- filosofia da história / filosofia narrativa ---- dialética antitética ---- modernidade e democracia

Abstract: Nietzsche, by no means extemporaneously, resorts to an ambitious historic-dialectical narrative, typically young Hegelian, to frame/evaluate Modernity, elevate his own philosophy to unmatchable heights and find for himself an absolutely superior, unique position which authorizes himself as absolute Critic and Destiny, having ultimately as his main target (typical of his German times) the “philistine”, the common human individual, and that which politically corresponds to her/him: civil society and democracy. That does not exclude our interest in his remarkable cultural criticism, his non-reductionist, romantic, naturalism, his contributions to the critique of “Platonism” and “Cartesianism”.
Key-words: transcendental authorization ---- philosophy of history / narrative philosophy ---- antithetic dialectics ---- modernity and democracy

Parte da filosofia mais típica da Europa do século XIX (e mesmo do séc. XX) emoldura-se com ambiciosas narrativas gerais, de pretensão universal, que seus autores usam para enquadrar/valorar a Modernidade europeia, e definir seu sentido. Para pôr-se de acordo com ela e eventualmente fazê-la avançar, quiçá ajustando-a; ou para pôr-se em oposição a ela, negá-la, superá-la. No caso dos alemães, muitas vezes cada filósofo definindo expressamente, no mesmo movimento, o alcance superior, absolutamente novo, epocal, às vezes até final, em todo caso extraordinário, de sua própria filosofia narrativa e mesmo de seu destino pessoal, em relação às outras expressões de pensamento que lhe antecederam - como negação ou superação mais acabada, destas últimas e de todo o passado. De um modo que frequentemente catapulta a figura do próprio filósofo para alturas inauditas e sumo-sacerdotais, muito além do comum dos mortais, como supremos e inéditos - proféticos - “maîtres-à-penser”, não apenas em relação a gente como você e eu, mas, ao fim e ao cabo, em relação a toda a humanidade.
Tal é o caso, em maior ou menor grau, de algumas das versões de (anti-)hegelianismo e crítica da Modernidade, em disputa, que compõem a esquerda hegeliana ou movimento jovem hegeliano - de David Strauss, Bruno Bauer, Ludwig Feuerbach, Max Stirner, Friedrich Engels, Karl Marx e outros. Suas filosofias envolvendo grandes “teorias históricas”, que pode-se dizer que apenas "hegelianizam" segundo distintas variações de narrativas doadoras de Sentido. O que sucede mesmo no caso das que se caracterizam de anti-hegelianas e pretendem chegar a conclusões radicais, inteiramente diversas, inversas, das de Hegel - ou de toda a filosofia até aqui, da metafísica toda, da filosofia clássica inteira, de dois mil anos de civilização, etc., etc. Posso até arriscar, para a maioria delas, apesar de tudo, um mesmo inimigo, das mais e menos românticas: em diferentes versões, “o filisteu”, o filisteísmo da Modernidade, a acanhada subjetividade do “homem comum”, ou ainda aquilo que politicamente lhe corresponde: a sociedade civil e a democracia burguesa.
Também a posição anti-hegeliana e anti-platônica de Nietzsche, sobre a Modernidade e a História, sobre seu tempo e sobre a condição epocal, decisiva, única, de sua filosofia, embora pretendendo ser algo de tipo inteiramente diverso e incomum (o que é justamente o mais típico e comum), parece não fugir desse modelo básico, hegeliano/anti-hegeliano. E pode ainda ser lida - é o que vou fazer aqui - como integrando, até exponencialmente, a mesma família de filósofos ateístas-históricos, radicalmente críticos, histórico-críticos, dialéticos e “inversores”, do séc. XIX alemão. Isso ainda que os mais astutos e autoconscientes deles, justamente como Nietzsche e Marx, não deixem de procurar escapar, brava e engenhosamente, a esse enquadramento comum, que contraria o seu próprio. Isto é, ainda que não deixem de se esforçar por construir e impor um outro, especialmente talhado por eles para consagrar sua absoluta diferença e superioridade - de maîtres-à-penser.
Entre esses alemães, ao fim e ao cabo, mutatis mutandis, é essencialmente o mesmo esquema (como entendo, levado por fim, por Nietzsche, ao exagero), esquema mais ou menos dialético/antitético, de uma progressão histórica, negativamente caracterizada como descaminho, do acirramento da “deformação” aí envolvida, de uma Crise denunciada, e de um Novo Tempo anunciado, totalmente diverso, inverso (daquele em que vivemos), cujas condições, não obstante, preparam-se ali onde “o Mal” se acentua no grau máximo, e por essa mesma acentuação. Ou seja, mais uma vez, uma “filosofia do futuro” - sempre com maior ou menor nostalgia do passado - que dá o sentido desvendado da História e da Modernidade, como Crise, para apontar para algo muito além e extraordinário. Uma filosofia nova (ou até uma não-filosofia) que se apresenta como deixando tudo mais para trás, inclusive e especialmente suas rivais mais próximas - que, de outro modo, arriscariam fazer-lhe parecer como “mais do mesmo”. O que é, aliás, essa pretensão de dernier-cri, um cacoete tipicamente moderno.
Isso é tanto mais verdadeiro para o caso do hegelianismo mais radical e virulento, aquele mais dialético-dramático. No caso hiperbólico do hiperbólico Nietzsche (por esse lado, um jovem hegeliano tardio), a história tem sido basicamente a progressão do Niilismo, originariamente implícito, como avesso dialético, na própria Crença (cristã), no Ideal Ascético negador do Mundo e da Vida. Um Mal (digno de maiúscula) que encontra na Modernidade (por isso, condenada) seu prolongamento e explicitação, revelados por trás de uma aparência de ruptura - v.g. com o Cristianismo. Uma ruptura falsa representada por seu falso contrário: a ciência, o racionalismo moderno, a moral humana, a política igualitarista, os ideais modernos. Ao mesmo tempo, esse prolongamento disfarçado de ruptura tem também o caráter de um acirramento extremo do “Erro originário”, da “Grande Calamidade e Corrupção”. De um acirramento que prepara, então, por essa qualidade de expressão-limite (do Niilismo/ Ascetismo, para Nietzsche), dialeticamente, “de dentro” (via “niilismo forte”, “niilismo perfeito”), sua negação/ inversão - catastrófica. Ou seja, no caso de Nietzsche, um acirramento que prepara a “recuperação” da possibilidade de valores inteiramente outros (valores de sinal contrário, os únicos finalmente não-ascéticos, não-igualitaristas, afirmativos), valores aristocrático-escravistas, como inversão da inversão originária, judeo-platônico-cristã. Esse é basicamente, em versão nietzschiana, o “senso comum” da ideologia alemã radical do século XIX, a língua franca do insuperável radicalismo filosófico alemão, ateu e “hegeliano” - do qual Nietsche pelo visto faz parte, exemplar e nada extemporaneamente. Por isso, por esse parentesco básico, por essa estrutura compartilhada, é que, por exemplo, os que saem de Marx para Nietzsche podem fazê-lo com relativa facilidade, em certa medida trocando seis por meia dúzia. Por isso é que há quem escolha simplesmente misturar, ou pelo menos aproximar, os dois - do que tem resultado um recriado Nietzsche de esquerda, ou mesmo, pós-marxianamente, um mal-arranjado filósofo anarquista da diferença.
Ainda que referida a outra figura que não exatamente a do sujeito clássico (consciente, racional, universal), até mesmo a tópica, recorrente no jovem hegelianismo, da alienação/hipostatização de uma “mera” criação dos homens (no caso, os valores), e de sua sucessiva reapropriação (recuperação, com consequências absolutamente revolucionárias, da sua verdadeira autoria), não deixa de encontrar aí, em Nietzsche, uma de suas versões. Como para outros jovens-hegelianos, a existência dos homens até agora, antes do seu providencial e extraordinário “Anúncio”, “Boa Nova”, “Revelação”, tem sido, universalmente, completa “alienação” - de si, de sua consciência, de sua corporeidade, naturalidade e mundanidade, de sua individualidade, distinção e diferença, ou, simplesmente, da “Vida” (o que quer que isso seja). Para os (anti-)hegelianos mais dramáticos e pirotécnicos (v.g. Bauer e Nietzsche), porém, o anúncio da Boa Nova é também - teológica, apocalipticamente - o anúncio de uma Catástrofe tremenda, de uma Crise sem igual, de um verdadeiro Juízo Final então, que se interpõe como vestíbulo para o Novo Tempo, para o Futuro inteiramente outro anunciado pelo filósofo sumo-sacerdotal. É fácil ver que a grandeza, terribilidade e dramaticidade da negação/inversão pretendida por Nietzsche crescem na exata medida da grandeza e terribilidade que ele empresta ao Objeto que declara negar/inverter. Do mesmo modo, outro tipo de relação com o objeto, para a sua “Crítica”, que não a de completa negação/inversão, tampouco proviria o mesmo efeito grandioso.
Por tudo isso, não surpreende que a filosofia afirmativa, do irrestrito Sim à Vida, de Nietzsche, tenha, apesar de tudo, e até mais acentuadamente, o mesmo pathos - de negação, de negatividade absoluta - de suas parentas mais reconhecidamente dialéticas, hegelianas, críticas. Que, a propósito, é ainda o mesmo pathos, dramático, do cristianismo apocalíptico, milenarista/messiânico, que, desconfio, marcou indelevelmente o imaginário político-religioso alemão desde as assim chamadas Guerras Camponesas (v.g. Thomas Müntzer), e encontrou, compreensivelmente, seu retorno triunfante na conjuntura alemã pós-Revolução Francesa, filosoficamente travestido. As conclusões variam, mas a estrutura, ao fim e ao cabo, é basicamente a mesma; sob muitos aspectos, no conjunto, Nietzsche parece um jovem hegeliano até mais exemplar, mais exagerado e fanfarrão (bufão, como ele - quase - chega a dizer de si mesmo), do que os outros assim nomeados. Ele aparece, desse modo, como um radical hegeliano tardio, que resgata o espírito do jovem hegelianismo (abandonado na segunda metade do século XIX), em versão mais abertamente romântica e dramática, agora com seus traços e cacoetes ainda mais hiperbolicamente concentrados e exagerados, a serviço de sua mais absoluta e epocal singularização pessoal.
Pondo de lado, então, nesse nosso breve ensaio de provocação, nessa nossa “Consideração Tempestiva”, seus protestos de extemporaneidade, peguemos nosso niilista perfeito, nosso empenhado candidato a maître-à-penser, pela sua moldura histórico-dialética tipicamente jovem-hegeliana, com que ele, precisamente, como entendo, “se autoriza”. Nietzsche poderia ser “pego” também, complementarmente, diga-se de passagem, por sua biologia especulativa, típica do século XIX alemão, inteiramente envolvida na recepção/ refutação romântico-alemã de um pseudo-Darwin, influenciada por gente como Wilhem Roux, Michael Foster e William Rolf - mas disso não vamos nos ocupar aqui. Seu para mim desajeitado empenho em buscar corroboração - e mesmo fundamentação - “científica” (em certa ciência natural do seu tempo) para sua crítica ao ascetismo da Modernidade, um cacoete típico do século XIX, deixa-o, de todo modo, na posição vulnerável de uma espécie de “Friedrich Engels” de si mesmo (entendido Engels, aqui, como “degradação científico-naturalista” da crítica histórica feita por Marx), um Engels que recorreria a uma ciência natural “romântico-heroica”, “vitalista”, “escravista”, ao invés de “moderna”, positivista-utilitarista, liberal, à inglesa, ou materialista-dialética, comunista, à la o Engels original mesmo.
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O próprio Nietzsche, no Ecce Homo, admite ter começado sua obra hegelianizando, por um texto que traz no seu âmago, até “chocantemente”, a clara marca do hegelianismo. O Nascimento da Tragédia, diz ele, apresenta basicamente “uma ‘Ideia’, a oposição entre dionisíaco e apolíneo, transposta para o metafísico”, expõe “a própria História como desenvolvimento dessa ‘Ideia’,” e, finalmente, apresenta, “na Tragédia, aquela oposição [dionisíaco-apolíneo] elevada a sua Unidade”. Aí pode-se ver algo de hegeliano e de filosofia hegeliana da História, sem dúvida, e dá para perceber que Nietzsche sabe do que está falando. Contanto que se entenda por hegeliana (como se deve) também uma narrativa que, ao contrário do que normalmente se concebe como Hegel, fundamenta um horizonte ainda por alcançar, além de distinto, oposto, à Modernidade até aqui - em especial, deve ser dito, oposto àquela Modernidade alemã, a meias, tingida de Ancien Régime, validada (n.b. criticamente) por Hegel, e não muito alterada ainda no tempo de Nietzsche.
Eu não recomendaria, entretanto, buscar o hegelianismo de Nietzsche nem apenas nem principalmente ali onde ele próprio o aponta, como descuido de iniciante, logo deixado para trás. Como ele o aponta num momento em que, ademais, quer, retroativamente, contrabalançar as influências, mais óbvias, incontestes, de Wagner e Schopenhauer, seus verdadeiros mestres-pensadores de juventude. Eu não o faria, em especial no caso de um autor tão afetado - ao modo mais plebeu e moderno - em proclamar (e construir) a qualquer custo a própria originalidade e novidade absolutas. E isso ainda que pudéssemos dizer mais sobre aquela sua “deixa” autocrítica; afinal, o par de opostos “dialetizado” no Nascimento da Tragédia (dionisíaco-apolíneo) é em muito comparável ao par dominante da dialética do movimento jovem hegeliano original: substância e autoconsciência. No momento, eu apenas registraria que os cuidados de Nietzsche em des-hegelianizar-se deveriam tê-lo prevenido de se representar como realizando, não só aí no Nascimento da Tragédia como também alhures, grandiloquentemente, “tarefas histórico-universais”. E de pleitear reiteradamente, depois, em plena maturidade, para si mesmo e para obras suas, ainda no Ecce Homo, esse alcance e essa medida, reivindicando um horizonte que o próprio Hegel em geral se contentava em definir mais modestamente como “histórico-mundial”.
A supostamente completa e inconteste distância nietzschiana de Hegel e do que é hegeliano, pretendida pela opinião de comentadores apologéticos, estaria principalmente construída, além de alardeada, por Nietzsche, logo em seguida ao Nascimento da Tragédia, na segunda das suas Considerações Intempestivas, “Da Utilidade e Desvantagem da História para a Vida”. A tônica do nosso autor, aí, é denunciar uma representação da história que deixa o presente (e o Estado Prussiano) como seu apogeu; uma perspectiva que vê o gênero humano como finalmente chegado, como diz Nietzsche, ao seu “tipo tardio”, maduro, e ao conhecimento de si mesmo; uma perspectiva que vê o “processo universal” como chegado à sua meta, ao “Juízo Final” (expressões de Nietzsche). Para a Segunda Extemporânea (ou Intempestiva), esse tipo de “historicismo” caracteriza uma crença “triste e paralisante”, e mesmo “terrível e destruidora”, que “acostumou os alemães a justificarem sua própria época como o resultado necessário desse processo”; este historicismo caracteriza uma ciência que “destronou” em proveito próprio “a arte e a religião” (§ 8). Assim concebido, aponta Nietzsche ironicamente, “o processo histórico universal” - como percurso e desenvolvimento do Espírito Absoluto, de Deus, ou do Gênero Humano - “tornou-se transparente e inteligível a si mesmo no interior da caixa craniana de Hegel”, “de tal modo que sua culminância coincide com a própria existência berlinense deste” (CE, § 8). Tal pretensão Nietzsche definitivamente não admitiria - a Hegel.
Ainda na Segunda Consideração Intempestiva (ou Extemporânea), ele insiste em que essa representação e essa valoração da História como “Potência” (“objetiva”, “em si”, i.e., posso dizer, Substância) promovem uma conformista e paralisante “admiração do sucedido”, uma “idolatria do factual”. Elas introduzem uma “tirania da realidade”, diante da qual - tal como, antes, o homem religioso - o “homem histórico” (“inartístico”, mero “espelho objetivo”), “de joelhos”, prostra-se e se nega, e “tudo compreende-justifica” (“compreender-justificar” é também a expressão de Marx, na Ideologia Alemã, para o que faria o hegelianismo de direita). Nietzsche chama essa visão, com muito cabimento, de “religião da potência histórica”, e vê aí uma submissão “à chinesa” (CE, § 8) - isto é, justamente, em hegelianês, à Substância. Ora, embora se possa entender (com boa vontade) o que Nietzsche quer dizer nesse ensaio, não deixa de ser curioso ver Hegel, um filósofo em geral acusado de idealista ultra-especulativo (em especial por sua filosofia da história), um filósofo tradicionalmente criticado por violar e desprezar a realidade concreta, particular, finita, i.e., os fatos históricos particulares, ser denunciado agora, por Nietzsche, como parece ser o caso, como expoente ou responsável de uma excessiva preocupação “positivista”, “cientificista”, “bem alemã” (!?), de demasiadamente “levar em conta os fatos [históricos]”.
De todo modo, dessa imagem nietzschiana de Hegel, o que primeiro se pode dizer é que ela retrata/critica essencialmente o Hegel quietista, conservador, da direita hegeliana. E por essa via apenas reitera, tardiamente, com sotaque romântico mais acentuado, a clássica crítica jovem hegeliana ao Grão-Mestre, segundo a qual ele, conciliadoramente, detém artificialmente o devir histórico-dialético (inexorável) no presente, por ele agora transfigurado/ justificado, apaziguadas especulativamente suas contradições. Ora, se apenas tal imagem fosse tudo o que é “Hegel” e “hegeliano”, o próprio Nietzsche sequer teria direito de usar o termo para referir-se a seu correspondente e admirador, o jovem hegeliano Bruno Bauer (já velho), expoente da radicalíssima “Crítica pura”, ou “Crítica crítica”, aquela que justamente, soberana, não se detém diante de nenhuma “positividade”, “dogma”, ou “objetividade substancial”. Nem teria Nietzsche o direito de apontar como hegeliano o suposto vício dialético de seu próprio Nascimento da Tragédia, texto francamente crítico do seu tempo burguês-filisteu. Hegel, entretanto, para seus contemporâneos, nunca foi apenas um só; ele tem muitos “véus” e “máscaras” (como foi dito dele já no seu tempo, bem antes de ser dito de Nietzsche), além daqueles de “conciliador” e “substancialista”. Os primeiros jovens hegelianos, ou hegelianos de esquerda, nos começos do movimento, cuidaram de desvelar, como verdadeiro, um Hegel cripto-radical, um mal-disfarçado jacobino (sic) da filosofia - no limite, literalmente, “Ateu e AntiCristo”. Depois é que preferiram, cada qual à sua maneira e uns contra os outros, desenvolver, como coisa própria, o potencial radical dialético, do hegelianismo, contra Hegel, como anti-hegelianismo - talvez para melhor tomar o lugar de Hegel, não para definitivamente desocupá-lo.
Todos os jovens hegelianos radicais, não apenas Nietzsche, são, por fim e por suposto, jovens anti-hegelianos, que disputam entre si, tal como Nietzsche, a palma do ultra-radicalismo, a coroa de “Crítico mais verdadeiro”, “Ateu mais completo”, “Destruidor mais acabado do Cristianismo”. Genericamente falando, todos eles buscam “sair” do hegelianismo (enquanto conciliação com o status quo, com a religião e com o Estado velho) para uma radical filosofia do futuro, reorientando o cumprimento das promessas dialéticas, hegelianas, de superação e culminância, repaginadas, do presente para o porvir - em benefício de tal ou qual (anti-)Ideal, radical-herético, seu. Todos eles, finalmente, sustentando o artigo de fé hegeliano de que vivem numa época extraordinária, dramática, de transição, véspera ou antevéspera de uma Grande Virada, da qual, podemos entender, a Revolução Francesa, os modos moderno-burgueses de pensamento, etc., mostram-se ao mesmo tempo como toscos ensaios e dissimuladores escamoteamentos. Quanto a isso, aliás, a paisagem filosófica radical pós-hegeliana chega a ser monótona, embora seja Nietzsche quem obtém disso tudo os mais espetaculares efeitos, os mais dramáticos, levando a dialética ainda um pouco mais longe, mais à frente, mais acima.
Por certo poderíamos dizer aqui outras coisas, mais simpáticas, sobre aqueles (anti-)hegelianos radicais, em seu conjunto, incluindo Nietzsche, com relação ao que representam. Como, principalmente, que procuram escapar do alcance metafísico e teológico da história especulativa de Hegel, em viés mais “terreno”, para longe do Espírito Absoluto, bem como do caráter abstrato e atemporal da filosofia anterior a Hegel, na direção do histórico simplesmente humano, concreto, prático-mundano, contingente, e de uma filosofia histórico-crítica - para o que nos legaram finalmente a filosofia como narrativa. Mas eles ainda estavam - uns mais, outros menos - demasiado impregnados de exaltação romântica e de inflada especulação alemã, para fazê-lo da melhor forma para nosso tempo, isto é, de forma “não-teológica”. Pensadores de transição é o que, então, sugiro possam ser esses “destruidores de moinhos de vento” (para nós, hoje, quero dizer), além de muitas vezes, desnecessariamente, ferrenhos adversários da Modernidade democrática.
Voltando, porém, à obra de Nietzsche, o que em segundo lugar pode-se dizer da crítica nietzschiana de Hegel no “Da Utilidade e Desvantagem da História” é que ela, em seu desenvolvimento, nos tons mais específicos que assume, anti-straussianos (v.g. a denúncia da “Potência objetiva” da História, a favor da “Personalidade”), aproxima-se - não obstante seu renovado solo romântico, seu elemento schopenhaueriano-wagneriano - das posições mais características de uma das alas do movimento jovem hegeliano originário. Não por acaso aquela de Bruno Bauer, representante máximo da “Crítica crítica”, no seu tempo o “Arqui-inimigo da Substância” (a tal “Potência objetiva”) e, também, como Nietzsche gostaria, arqui-inimigo da “Massa” (incluídos aí a filisteia burguesia e o “rebanho” em geral); Bruno Bauer que, tal como Nietzsche, e muito antes dele, entrou na cena filosófica pós-hegeliana (no início como hegeliano de direita) precisamente como crítico de David Strauss, que é também o objeto da crítica de Nietzsche na primeira de suas Considerações Intempestivas; Bruno Bauer que coroou sua radicalização hegeliana com um bem tecido “desmascaramento” de um Hegel concebido como “ateu e Anticristo”, na Trombeta do Juízo Final. Não é aqui, porém, que vamos desenvolver esses elementos histórico-biográficos, e outros igualmente “eruditos”, com o fim de arguir a favor de algum parentesco entre Nietzsche e Bauer, por exemplo, e de ambos com outros jovens hegelianos, agora em termos não apenas de sua estratégia - ou forma - dialética, narrativa, mais ou menos comum, mas de algumas de suas teses, como comparáveis. O que vamos fazer agora, em vez disso, ainda que resumidamente, é apresentar alguns dos traços característicos da hegelianamente anti-hegeliana narrativa histórico-dialética de Nietzsche, dramática como deve ser uma narrativa que quer seduzir e impressionar vivamente o leitor, como seu autor sabe mais do que qualquer outro fazer.
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Por dever de justiça, começo fazendo registro de uma apresentação sintética da “visão nietzschiana da história” pelo que eu chamaria de um “comentador apologético”, aquele que toma seu pensador como maître-à-penser, que basicamente se ocupa em tomar tudo o que Nietzsche diz que faz como estando sempre e inteiramente de acordo com o que ele “realmente” faz. Aquele que, como pano de fundo, assume a sério todas as suas alegações mais ambiciosas sobre si mesmo e sobre seus pontos de vista - de inaudita originalidade, extemporaneidade, epocalidade, superioridade, radicalidade, e o que mais seja. Queiram-me desculpar pela extensão da citação, com que, não obstante pequenos cortes, procuro respeitar a letra do comentário:
“A história do homem não é uma totalidade, mas uma pluralidade de processos de ascensão e declínio simultâneos, que não obedece, portanto, a qualquer sucessividade, a quaisquer ordem, plano, razão ou fim. (...) Como poderia haver uma razão e um sentido universal na história, se os povos possuem culturas diferentes (...)? Como poderia haver fins universais na história, se os ideais humanos foram sempre contraditórios? Na verdade, para Nietzsche, o mundo, assim como a história, são determinados por uma potência cega (...). Se há na história uma necessidade, trata-se da necessidade do acaso (...). A história não pode comprovar a existência de fins; ao contrário, o que ela prova é que os resultados alcançados estavam em contradição e eram incompatíveis com o que se desejava previamente [o que é uma máxima do próprio Hegel (JCS)]. Todas as tentativas realizadas para estabelecer um fim para a humanidade pressupunham de antemão um conceito de homem. No entanto, diz Nietzsche, os termos homem e humanidade são abstrações, generalizações, simplificações, pois somente existem de fato os indivíduos concretos e reais [creio que Nietzsche pode ser qualquer coisa menos um nominalista consequente a esse respeito (JCS)]. Quando se coloca a prioridade no destino da humanidade como um todo, ao mesmo tempo se criam obstáculos para a expressão de indivíduos excepcionais que poderiam apontar uma nova direção para os homens. Quer dizer: não há uma história universal e não há também um fim universal, ou pelo menos não é possível conhecê-lo (...). Nenhuma ideia abstrata pode promover a história ou levá-la a um termo.(...) Todos os fins foram destruídos”.
É bom saber disso tudo, pois, como entendo, é o que o nosso anti-hegeliano filósofo da “transmutação de todos os valores” mais precisaria ele próprio ouvir. Pois, cabe perguntar, será mesmo essa a concepção da “História” de Nietzsche? Para mim, quase que ao contrário, parece que ele, boa parte do tempo, vê na “História” um percurso geral, basicamente único, para “o homem”. Ele oferece sua própria e ambiciosa Grande Narrativa Alemã, para, entre outras coisas, obter o mesmo efeito, tradicional, de produzir e separar, tipicamente, os costumeiros dois lados únicos, os dois partidos, em luta desde sempre, do “Bem” e do “Mal”, do “Certo” e do “Errado”, do “Verdadeiro” e do “Falso”, do “Inferior” e do “Superior” (sempre com maiúsculas, naturalmente). E, na verdade, por praticamente toda a sua obra, esgrime a torto e a direito as noções de “homem” e “humanidade”, em sentido nada nominalista, mas como grandes “abstrações” ou “generalizações”; tanto quanto esgrime repetidamente a categoria mesma de “universalidade” (como, aliás, também as de “essência” e “conceito”). Por fim, parece que Nietzsche - tanto quanto qualquer “ascético cristão” tradicional - considera seu mundo, o mundo existente, como essencialmente (metafisicamente, epocalmente) errado. E, mais do que isso, ao modo teológico-apocalíptico mais típico, como mundo simplesmente invertido, mundo de cabeça para baixo, mundo “virado”. Essa é a sua Revelação.
Depois disso, em maus termos com o devir, de modo até “pior” do que Hegel, nosso filósofo junker “fecha”, na sua Super-Narrativa Histórica, não apenas o Passado e o Presente (como, supostamente, Hegel faria), mas também o Futuro, dos próximos séculos e mesmo milênios, antecipando-o como passado. E o faz com mais autoridade do que lhe daria o Espírito Absoluto, ou o Espírito Santo, ou qualquer outra figura metafísica ou teológica, hipertrofiada, delirante, de Sujeito, de grande Sujeito. Nietzsche aparentemente faz com o futuro o que acusa Hegel de fazer com o passado; até mesmo mais do que outras filosofias que se apresentam apenas como filosofias para o futuro (v.g. Feuerbach), ele quer este futuro como algo desde já definido e narrável - na sua filosofia - como passado. E como conduzindo necessariamente, através de uma inaudita Catástrofe, a algo de heroico, desigual, grandioso - e, claro, em se tratando de Nietzsche, cruento. Surpreende-me que haja estudiosos que o acompanhem até o fim, sem restrições, em tudo isso.
É certo que Nietzsche, como se fosse preciso dizê-lo, não é só isso, e que continuaremos a lê-lo pela riqueza dos seus sugestivos insights, de “psicologia” e “moral”, sugestivos para a crítica da cultura e para a auto-criação pessoal. Insights que estão misturados, porém, é preciso reconhecer, a toda essa “autorização” histórico-dialética, transcendental, de uma interpretação radical especulativa da “História”, narrada em maravilhosos tons de Sturm und Drang, cheios de sound and fury (em mais de um sentido) - e de poesia. Pois entendo que é essa gasta moldura jovem hegeliana - que ele não resiste a (re-)construir e dramatizar - que vai autorizar suas mais hiperbólicas pretensões de ‘maitre-à-penser’ (e insuperável “bad boy” apocalíptico da filosofia europeia), pretensões que, infelizmente, alguns ainda tomam, desavisadamente, por palavra do evangelho. Nietzsche mesmo, entretanto, diga-se a seu favor, lá para as tantas admite franca e provocativamente, para seus leitores: “Talvez eu seja um bufão”. Ao que proponho que arrisquemos responder agora: Sim, de fato, Nietzsche, de um lado podemos concordar com você nisso - pelo tom apocalíptico-epocal com que você, como outros radicais alemães do século XIX, trata de tingir suas posições poético-filosóficas; tanto como por suas alegações de “cientificidade” e por suas pretensões de constituir-se a si próprio como “Destino”. De outro lado, não queremos abrir mão dos preciosos elementos anti-platônicos e anti-cartesianos, potencialmente destranscendentalizantes, que você oferece â elaboração contemporânea de pensamento, especialmente em Além do Bem e do Mal, primeiro capítulo, Crepúsculo dos Ídolos (primeiros capítulos) e Vontade de Potência (§§ 466 ss.), uma verdadeira virada antimetafísica, prático-mundana, da filosofia, com insuperáveis recursos românticos e darwinianos: processo, história, natureza - contra a moral e o conhecimento transcendentais e a imagem abstrata e “racional-mentalista” do homem e da cultura.
Dito isso, voltemos à História, que tem sido até aqui, para Nietzsche, não a história da luta de classes como para Marx (salvo se com sinal trocado), nem somente a história da desnaturação do homem pelo cristianismo, como para Feuerbach, nem simplesmente a do apequenamento e sujeição do homem na religião, na filosofia dogmática e na política particularista, como para Bruno Bauer, mas a história do Niilismo e de sua escalada. Ou, mais precisamente, a história do Ideal Ascético, da sua ascensão e falência, no Niilismo como “lógica da Decadência”, no Niilismo como avesso ocultado da Crença (i.e. do Ideal Ascético), que, com a “Morte de Deus”, finalmente revela-se às escâncaras e flagela, cada vez mais abertamente, o nosso tempo. Trata-se de uma “História” que aponta para algo como “dois milênios de antinatureza e violação do homem”, como Nietzsche diz no Ecce Homo (EH, I, § 1); ou história da “grande Corrupção interior” e da “imortal desonra da humanidade”, como no Anti-Cristo (§ 62). Trata-se, em todo caso, de uma Narrativa segundo a qual “o homem”, “a humanidade”, percorre um largo rodeio, digamos, de “alienação”, de “estranhamento”, como que de si mesma e de seu caráter natural. Pois, embora “alienação/ estranhamento” não seja o termo a que Nietzsche (como tampouco o Marx maduro) recorre, isso não significa que não se trata de algo parecido. “A humanidade não segue por si o caminho reto”, diz ele; “foi o instinto de décadence que a governou [até aqui]” (EH, VII, § 79). Trata-se, portanto, da história de um “Erro”, de uma existência universalmente “em Erro”, uma existência submetida a uma verdadeira “Inversão”. Em contraste com a qual, Nietzsche, como veremos adiante, põe-se nada menos que como “o Caminho reto e a Medida da Verdade” para a Humanidade - à qual expressamente se dirige, e à qual quer, sim, como educador, melhorar. Apenas isso, mas com que tremenda qualidade poética, dramática, teatral!
O Ideal Ascético é desprezo e negação da vida e do corpo, da natureza e desse mundo; do sensível pelo inteligível, do presente pelo Além futuro, etc., etc. Ele é expressão de decadência, de enfraquecimento, de prevalência dos fracos, dos reativos, dos negadores do devir e do mundo; ele é aquilo que os judeus, o cristianismo e o platonismo nos impuseram - ou melhor, que nos impuseram os sacerdotes e os mais débeis e doentes, os mais numerosos. A esse respeito, o que o discurso de Nietzsche traz para primeiro plano é sua história filosófico-especulativa da Europa e do Ocidente, numa interpretação cheia de carga normativa anti-moderna - e de drama. Mas, embora ele muitas vezes fale em Europa e Ocidente, não é que seu diagnóstico, seu combate e seu remédio dispensem uma pretensão de universalidade trans-europeia (de outro modo ele não poderia falar tanto, com relação a isso, em “homem” e “humanidade”). Nietzsche reconhece, no seu tempo, “dois grandes movimentos niilistas”, “universais”, não só o cristianismo como também o budismo (VP, § 220), ambos ascéticos, que desembocam igualmente em niilismo explícito (§§ 19, 23). Fora suas considerações adicionais sobre os monoteísmos judaico e islâmico, o que não é cristianismo e budismo não existe nem lhe interessa; nem mesmo o que poderia ser considerado pagão em nosso tempo (parte da África, por exemplo), pois, para Nietzsche, paganismo, politeísmo, só o da “Grécia”. De acordo com ele, “as duas religiões universais, o budismo e o cristianismo”, são ambas expressão de um “adoecimento da vontade”, de uma vontade negativa, do “desejo de um tu-deves” (GC, § 347). Mais do que isso, não obstante as supra-aludidas “culturas diferentes”, ele se permite proclamar que “a Terra inteira” (sic) é possivelmente “a estrela ascética por excelência”, “um canto de criaturas descontentes, que jamais se livram de um profundo desgosto de si, da terra, de toda a vida”. Também a figura do “sacerdote ascético”, “essa espécie hostil à vida”, justamente o zeloso criador, propagador e beneficiário do Ideal Ascético, “floresce em toda parte, com regularidade e universalidade” (GM, III, §11), seu Ideal sendo definido por Nietzsche como o único oferecido aos homens até aqui. Isso não obstante o Cristianismo ser um caso especial e privilegiado do ascetismo, o mais agudo e mais ativo, ainda que também o mais grosseiro; que garante, entretanto, uma “tensão crescente”, capaz aparentemente de apontar para uma superação mais radical e completa do seu mal.
Detenhamo-nos ainda um pouco na Genealogia da Moral, na noção nietzschiana de Ideal Ascético, ideal que ofereceu, nas palavras de Nietzsche, “o único Sentido” (geral, supremo, suponho) para o homem até aqui: uma “finalidade para sua existência na Terra”, “um sentido para o seu Sofrimento”; um ideal que prevaleceu por falta de concorrência, já que “qualquer Sentido é melhor do que nenhum”. Com o Ideal Ascético, apesar de tudo, “a porta se fechava para todo niilismo suicida”, e o homem decadente podia então “querer algo”: “uma vontade de nada é melhor do que um nada de vontade”. Ao mesmo tempo, porém, aquele Ideal, ainda que provendo o conforto de um sentido para a existência, “trouxe consigo novo sofrimento, mais profundo, mais nocivo à vida”. Pois ele se orienta pelo “ódio ao que é o humano, animal, material”, por um “horror aos sentidos”, por um “medo da felicidade e da beleza” e, finalmente, pelo “anseio de afastar-se do que seja aparência, mudança, morte, devir, desejo, anseio” (GM, III, § 28), anseio de afastar-se, em última análise, do que seja “Vida”. Para Nietzsche, “a mentira do Ideal foi até agora a Maldição sobre a Realidade” (a qual, entretanto, tampouco o vejo bendizer). “Através do Ideal, a Humanidade tornou-se mentirosa e falsa, a ponto de adorar valores inversos aos únicos [destaques meus, JCS] que lhe garantiriam o florescimento, o futuro, o elevado direito ao futuro” (EH, pról., § 2). Não é coisa a que se possa ficar indiferente.
Através do Ideal (platônico-cristão), queixa-se Nietzsche, o mundo real sensível, existente, tal como ele se apresenta, foi depreciado em benefício do “Outro Mundo”, do “Além”, do “Ideal”, ficando este outro, pelo menos entre os filósofos metafísicos e entre os cristãos, como “Mundo Verdade” ou “Verdadeiro Mundo”; enquanto o nosso-mundo-realmente-existente, sensível, foi declarado errado, falso, enganosa aparência. Nossa vida real é, para o Cristianismo, uma existência falsa e degradada (VP, § 224), e diante dela Nietzsche pode dizer, como supremo maître-à-penser: “Antes de mim tudo estava de cabeça para baixo”, “eu sou o primeiro a ter nas mãos o metro da Verdade”, “ninguém antes de mim conhecia o Caminho reto” (EH, XII, §§ 1 e 2). Ora veja-se, então, também Nietzsche parece estar disposto a decretar a “inutilidade” e o “erro” essenciais do mundo, mas, ele esclarece, do “mundo moderno, não do mundo da existência” (VP, § 34) - o que quer que esse novo dualismo possa significar. O fato é que, de qualquer modo, com base em seu dramático diagnóstico binário, Nietzsche descarrega, sobre nossas pobres ombros e cabeças, nosso frágil ser finito, pesadas “tarefas” do Amanhã, verdadeiras Aufgaben filosófico-alemãs, penosas missões “epocais”, “universais históricas”, que nos afastam de nós mesmos e dos outros, orientadas por um tremendo “Ideal” (o seu), como aquele de “ser uma corda estendida para o Super-Homem”. Como me aparece, então: sempre o futuro como um “mais além” inteiramente outro, sempre o ser-para-além (senão para-o-além), sempre a tradicional “Jenseitigkeit” característica do pensamento “teológico” e da atitude “religiosa” levados demasiado a sério: o mundo como é, esse que está aí, também para Nietzsche, não vale nada. A mesma “Grande Recusa” também fazem outros hegelianos e não hegelianos, século XX a dentro. Será que só assim a vida, ou, pelo menos, a filosofia, hoje, pode ficar, digamos, interessante - como uma luta, ascética, sempre em maus termos com o mundo?
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Como o grande e milenar “Erro” pretensamente descoberto por Nietzsche teria começado? “Foram os judeus que realizaram esse milagre da inversão de valores”, ele denuncia; o que foi também “o começo da rebelião escrava na moral” (BM, § 195). Foi esse o começo de tudo de ruim que teve em seguida seu curso no platonismo e no cristianismo; o começo de tudo que encontrou sua “mundanização” na Modernidade, cujas consequências alcançarão o apocalíptico ápice ainda em séculos por vir. O Cristianismo e Platão, diz Nietzsche, são os fiéis herdeiros e continuadores daquela “megalomania” judaica (VP, § 202), aquela Grande Inversão a ser agora Invertida, aquela Grande Negação a ser agora Negada. Platão, acha nosso surpreendente poeta-filósofo, é “o instintivo semita e anti-heleno” (VP, § 195), “o grande veículo de corrupção”, “já marcado por um fanatismo judaico (- no Egito?)” (VP, § 202). “O Cristianismo” - que, já sabemos, é platonismo para o povo - “apenas retoma o combate [judeo-platônico] contra o Ideal clássico e nobre”, apenas retoma o “antipaganismo” (VP, § 196), a fim de promover o mesmo Ideal Ascético. Para acompanhar Nietzsche, porém, não fiquemos só no Cristianismo, nem num ponto singular do Passado remoto, da Antiguidade. “Dividir o mundo” em dois, “um ‘verdadeiro’ e um ‘aparente’, seja ao modo do Cristianismo [ou de Platão], seja ao modo de Kant, é apenas uma sugestão de décadence, um sintoma da vida que declina” (CI, III, § 6). Ou seja, toda a história posterior, a filosofia posterior, inclusive e principalmente a moderna, também padece do mesmo vício, que tem assim uma progressão, uma escalada, ameaçadora e bem ordenada.
Nietzsche apresenta, em poucas linhas, com botas de sete léguas, a sua genial condensação da história dessa filosofia (e do “Espírito”), uma brilhante e plausível Narrativa do desenvolvimento do Grande Erro, que é ao mesmo tempo a história de sua Dissolução. Recapitulando o notável trecho do Crepúsculo dos Ídolos: O “verdadeiro mundo [o outro mundo]” começa “acessível ao sábio, devoto, virtuoso” - com a proposição “eu, Platão, sou a verdade”. Depois ele se torna “prometido”, para após a morte, no Cristianismo, e, mais adiante, é apenas kantianamente “postulado”, como hipotético e “indemonstrável”. Para em seguida chegar a ser mesmo “não-obrigatório”, nada nos impondo (como, supostamente, no positivismo). Por último, ele é declarado “inútil”, “supérfluo”, e é, pena, simplesmente “descartado”. Finalmente livres dele, podemos - nós, os “espíritos livres” - abraçar de novo esse nosso mundo terreno, “aparente”, como o único. Para os espíritos livres, esse é “o fim do mais longo dos erros”, é “o ponto alto da Humanidade”, um radioso “Meio-Dia” (CI, IV, §§ 1-6), embora, infelizmente, para outros, para a imensa maioria, seja, possivelmente, em vez disso, o começo de uma noite escura e fria, sob a sombra do niilismo, do desalento, do vazio, do desespero. Com o fim do mundo verdade e com a morte de Deus, acha Nietzsche, estamos destinados, não a uma alegre mundanidade, ou a uma cultura mais interessante porque não-ascética, mas, em primeiro lugar, ao “niilismo completo”, que nos aguarda ali à frente, como “consequência necessária dos ideais até aqui sustentados.” Entrementes, transitoriamente, ainda “viveremos no meio de um niilismo incompleto” (VP, § 28) - um melancólico purgatório a caminho de outra coisa.
A morte de Deus, “o maior acontecimento recente”, “o fato de que ‘Deus está morto’, de que a crença no Deus cristão perdeu o crédito”, “começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa” - propõe Nietzsche, preparando o terreno para sua costumeira intensificação e dramaticidade. “Tudo irá desmoronar agora que esta crença foi minada, porque tudo estava sobre ela construído”. “Esta longa sequência de ruptura, declínio, destruição, cataclismo, que agora é iminente”, será “um eclipse solar tal como provavelmente jamais houve sobre a Terra” (GC, § 343 passim). Já agora, porém, em plena Modernidade, não só ainda estamos longe de ter superado o Ideal Ascético (do que não duvido), como, de certo modo, estamos pior, estamos piorando; pois, com efeito, nem a ciência nem o ateísmo modernos são verdadeira negação/ superação/ libertação coisa nenhuma. A ciência não é “o antagonista natural do Ideal Ascético; não expressa o Ideal oposto [destaque meu, JCS: sempre dois ideais, e opostos]”. “Ambos, Ciência e Ideal Ascético, acham-se no mesmo terreno, na mesma superestimação da Verdade”. “A Ciência pisa no mesmo chão que o Ideal Ascético: um certo empobrecimento da vida é o pressuposto, em um caso como no outro” (GM, III, § 25). Em vez disso, é “a Arte [que] se opõe mais radicalmente (do que a Ciência) ao Ideal Ascético: assim percebeu o instinto de Platão, esse grande inimigo da Arte” - e nisso podemos concordar com Nietzsche. “Platão contra Homero: eis o verdadeiro, o inteiro antagonismo” (GM, III, § 25), a dramatizada “luta de classes” nietzschiana dos últimos dois mil e tantos anos.
Nietzsche sublinha aqui (trata-se da Genealogia da Moral) uma tripla implicação. Na Modernidade, a) não saímos do domínio do Ideal Ascético, b) ele agora é mais insidioso e dissimulado, e c) ele na verdade fortaleceu-se e se agravou. Ainda que - falta dizer - isso signifique que ele agora está mais próximo do seu fim, que a Modernidade é mesmo o fim da picada. “A ‘Ciência moderna’ é no momento a melhor aliada do Ideal Ascético”, entende o nosso romântico heroico, “por ser a mais involuntária, inconsciente, secreta, subterrânea (...); nela o Ideal Ascético não foi de maneira alguma vencido, tornou-se antes mais forte.” (GM, III, § 25). De modo semelhante, o mais típico ateísmo moderno, enquanto outro lado da suposta negação/ superação do Cristianismo dogmático, na Modernidade, “dispensa Deus, dispensa o Ideal Ascético em sua forma tradicional, mas não dispensa a sua Vontade de Verdade - que é, entretanto, o mesmo Ideal em sua formulação mais estrita.” E, claro, para Nietzsche a vontade de verdade não é tanto o “resto” como o “âmago” do Ideal Ascético; donde o ateísmo, mesmo aquele “incondicional e reto”, “não está em oposição ao Ideal Ascético, como parece à primeira vista” (GM, III, § 27) - na verdade, nem perto disso.
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Pronto, o jogo dialético está jogado, e Nietzsche pode concluir: “O ateísmo [o dos outros, JCS] é uma das últimas fases do desenvolvimento do Ideal ascético, uma de suas formas finais e consequências internas” (GM, III, § 27). Estamos agora, com Nietzsche, no topo do topo, “altura tremenda” em que “um Goethe e um Shakespeare não saberiam respirar sequer um instante” (EH, 9, § 6)! Como prometido mais acima, temos aqui, sem nuances, o modelo tipicamente jovem hegeliano da escalada, da intensificação, da denunciada falsa superação, na Modernidade, do “Erro” pelo qual o mundo enveredou. A dissolução/ mundanização/ escalada/ realização do Ideal Ascético é entendida pelo nosso extemporâneo, em seus vários aspectos, ao modo costumeiro, dialético, dos jovens hegelianos (mais de uns do que de outros), nas mãos dos quais a dialética se radicaliza apocalipticamente em antitética. Pois, em Nietzsche, na sua filosofia da história como percurso/ processo, não faltam as dimensões de “necessidade lógica” e de “(auto-)superação”, de tipo especificamente dialético, e, mais ainda, no caso dele, de radical e teatral dramaticidade explícita. Pois Nietzsche entende que, “como todas as grandes coisas”, o Cristianismo, o Ideal Ascético, e também o próprio Niilismo, “perecem por obra de si mesmas, por um ato de auto-superação”. “Assim quer”, segundo ele, nada menos do que “a lei da Vida” (que suponho pretende ser melhor que uma “lei da História” à la Marx ou Engels): “a necessária auto-supressão está na essência mesma da Vida” (GM, III, § 27). E aqui Nietzsche introduz (e aparentemente “biologiza”) a mais hegeliana das noções, expressa nessa endeusada palavrinha alemã, Aufhebung, precisada, ainda mais hegelianamente, como Selbstaufhebung, auto-superação, auto-supressão - dialética.
Dessa maneira, segundo nosso contador de História, pereceu o Cristianismo como dogma: por obra de si mesmo, “por obra de sua própria Moral”. Resta ainda, pelo menos restava no tempo de Nietzsche, que o Cristianismo pereça “como Moral”. E é “no limiar desse acontecimento” que se encontrava seu tempo-lugar - o daquela Alemanha junker que, à semelhança ao da Rússia feudal-czarista de Dostoiévski, talvez não tenha mais muito a ver com o nosso. “Depois que a veracidade cristã tirou uma conclusão após outra, ela tira enfim sua mais forte conclusão, aquela contra si mesma, quando se coloca a questão: que significa toda vontade de verdade?” (GM, III, § 27). É interessante constatar, então, que Nietzsche se aplica a retratar o movimento histórico como um movimento lógico (além de dramático, por certo), não faltando à sua narrativa sequer a hegeliana Tomada de Consciência, final, própria das filosofias do sujeito histórico e da (Auto-)consciência, aqui envolvida em flagrante hipostatização explícita: “A vontade de verdade toma em nós consciência de si mesma como problema.” Naquela sucessão de “conclusões”, e “nessa gradual Consciência de si, perecerá a moral” - segundo o nosso dramaturgo, no “mais terrível dos espetáculos”, num “espetáculo em cem atos reservados para os próximos dois séculos da Europa” (GM, III, § 27).
Trata-se do conhecido movimento dialético, imanente e necessário: “É a própria necessidade que opera aqui”, revela Nietzsche no Vontade de Potência (VP, pref. §2). Trata-se mesmo de uma necessidade lógica e inexorável; o advento do Niilismo é “necessário”, pois é a “consequência final dos nossos valores até agora”: “o Niilismo é a conclusão lógica final de nossos grandes valores e ideais” (VP, pref. § 4). E, bem dialeticamente, a negação mais completa pressupõe necessariamente o que é negado: O “evangelho do futuro” de Nietzsche (o termo é dele), a prometida “transvaloração de todos os valores” (que, no futuro, “tomará o lugar do niilismo perfeito”), “pressupõe lógica e psicologicamente esse niilismo perfeito, e por certo só pode vir depois dele e de dentro dele.” (VP, pref. § 4). Depois do Cristianismo, da “Grande Calamidade”, “a Transmutação de Todos os Valores” (Anticristo, § 62). É por isso que nosso filósofo-profeta pode dizer: “O que conto é a história dos próximos dois séculos” - ou seja, o futuro já definido como passado, a narração antecipada do ainda não ocorrido, tomado como certo. Pode parecer estranho esse tipo de profecia, mas os efeitos dramáticos são insuperáveis.
Nem Hegel, entretanto, impôs a tal ponto ao devir sua “(Oni)Potência da História”; nem tão longe levou a ambição transcendental do pensamento, de um pequeno cérebro e de uma finita existência humana, mesmo alemã, berlinense ou não. “Faz algum tempo que toda a nossa cultura europeia está-se movendo para uma Catástrofe”; “descrevo o que não pode vir de modo diferente: o advento do Niilismo”; “essa história pode ser contada mesmo agora; pois é a própria necessidade que opera aqui” (VP, pref. § 2). E o que vem por aí, segundo Nietzsche, depois da intensificação do Niilismo e do colapso de tudo mais, é a Transvaloração de Todos os Valores, que virá como Catástrofe, como uma Grande Guerra do Fim do Mundo, como a “conjuração do Dia da Decisão” (EH, X, § 1) - de um Juízo Final, entendamos. “Uma Crise jamais vista sobre a Terra”, “a mais profunda Colisão de consciências, e uma Decisão conjurada.” (EH, XIX, § 1). Hegel, de seu lado, para o bem ou para o mal, nunca achou que o filósofo pudesse tratar o futuro como passado, muito menos um futuro de séculos e milênios, fundindo de forma tão estreita, providencial e ultra-jovem-hegeliana, prescrição e previsão. Nem quis ele nos assustar com tão graves tons de Assombração.
Na Grande Narrativa de Nietzsche, ao final, uma “Tomada de Consciência” dos homens lhes permitirá fazerem agora a História deliberadamente (não como Massa, por certo, mas, bem entendido, tampouco em Marx), trazerem finalmente a História para seu controle. Iluminados por seu pensamento, claro: “Minha tarefa é preparar para a Humanidade um instante de suprema Tomada de Consciência” (EH, VII, § 2). A “Transvaloração de todos os valores” é em última análise “um ato de suprema Auto-Gnose da Humanidade”, “que em mim se fez gênio e carne” (EH, XIV, § 1). Assim, também no caso de Nietzsche, a História e a Humanidade tornam-se transparentes a si mesmas no seu pensamento, no seu tempo; e, nele, a primeira poderá passar ao controle deliberado e consciente da segunda, dos homens. “Quero me dirigir à Humanidade com a mais alta exigência que jamais lhe foi colocada” (EH, pról. §1). Ou ainda: “Quero ensinar ao homem o futuro do homem como sua vontade, como dependente de uma vontade humana, e preparar grandes empresas de disciplinamento e cultivo, para desse modo pôr um fim ao pavoroso domínio do acaso e do absurdo que até o momento se chamou História” (BM, § 203). Pôr fim ao domínio do acaso na História não é coisa pouca; começa por concebê-la mesmo como uma Coisa, como Substância (digna de ser escrita com maiúscula e apta a ser apropriada por um Sujeito), vício característico do século XIX alemão, a história compreendida então como um Devir dotado de uma Lógica e de um Sentido, de uma “Providência”, “teologicamente”, entendamos. Dois mil anos depois do Senhor Jesus (o papel que parece capturar a imaginação de Nietzsche e de mais jovens hegelianos, sem falar de alguns filósofos posteriores), e algumas décadas depois do Espírito Absoluto de Hegel, nosso poeta filósofo está preparado para reger o mundo. Como chega a dizer, expressamente, em passagem não incluída na versão final do Ecce Homo: “Desde que o velho Deus está abolido, estou preparado para reger o mundo”. Seu fiel amigo Peter Gast refere-se a Nietzsche, em carta ao próprio, como “Espírito regente do Mundo”, título que o próprio Nietzsche reserva a si mesmo (EH 9, § 6). Engels, apesar de tudo, nunca chamaria Marx dessa coisa; e Hegel, “em sua particular existência berlinense”, jamais pretendeu tanto para si.
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Por isso tudo é que podemos dizer que Nietzsche é um pensador mais tipicamente confinado do que qualquer outro nos horizontes do pensamento alemão do século XIX (da transição alemã de Ancien Régime a Modernidade), que emoldura seu romantismo aristocrático-heroico, hierárquico-de-casta, enfaticamente antimoderno, antidemocrático, com uma Meta-Narrativa histórico-dialética exemplarmente hegeliana - mais especificamente, jovem hegeliana - a seu serviço. Podemos dizer que é a ela, junto com seu biologismo romântico-vitalista, também típico do século XIX, que ele recorre para autorizar o caráter superior, inflado, retumbante, ultra-epocal, que deseja atribuir aos seus juízos. Para coroar-se, monarquicamente, eficazmente, como “Maître-à-penser, como o Anticristo lui-même, como o Primeiro Imoralista (para quem não conhece Max Stirner), como incontrastado bad boy da filosofia ocidental - perfil de que, entretanto, dedicados comentadores apologéticos querem inadvertidamente privá-lo. Segundo o que sugerimos, é sua Narrativa Histórica, teológico-apocalíptica, intensamente dramatizada, que sustenta o tom normativo dogmático, além de irado, de sua filosofia racialista; é ela que sustenta e acentua as empobrecedoras (mas absolutamente impactantes) distinções binárias, maniqueístas, que marcam o conjunto de seu pensamento. É com a ajuda daquela narrativa dramático-dialética (e de um “cientificismo”, a meu ver, pelo menos hoje, risível) que nosso filósofo junker trata de deformar, metafísica e teologicamente, a oportunidade de renovação que se ofereceu ao pensamento europeu depois do colapso da metafísica e da teologia (e, logo, mais adiante, do Ancien Régime). Oportunidade cujo bom aproveitamento havia-se esboçado precursoramente em perfis mais desinflados, de autores como Montaigne, Rabelais, Voltaire ou La Rochefoucauld (para tomar ao pé da letra o cumprimento de Nietzsche à cultura francesa), além de alemães menos exaltados.
O que marca jovem-hegelianamente sua Metanarrativa Histórica e lhe dá sua função fundacionista transcendental (e sua disposição binarizante) é então essencialmente, como vimos, a ideia de um “Erro” epocal inicial (o Ideal Ascético), caracterizado como Grande Inversão/Negação (da “Vida”), confrontado então por sua Crítica Absoluta, esta como uma igualmente epocal Negação da Negação, ou Inversão da Inversão. E é também, antes dessa Ausgang, a ideia do desenvolvimento daquele “Grande Mal”, num percurso lógico-dialético, imanente, necessário, tomado como uma escalada, que desemboca então naquilo que já se encontrava desde sempre, “em germe”, na própria Crença original: seu aparente contrário, o Niilismo, agora explícito. A marca “autorizadora” jovem-hegeliana de Nietzsche está, por fim, na ideia do seu próprio tempo (a peculiar Modernidade centro-europeia do séc. XIX) como um tempo de dramática agudização do Ascetismo e dolorosa precipitação do Niilismo (enganosamente disfarçadas, como ele aponta, de sua superação), na direção de uma Crise/Hecatombe sem precedentes sobre a Terra, um dramático Juízo Final como véspera do “Reino” dos aristocráticos e cruentos valores transvalorados. Como sugerimos no início, embora referida a uma figura que não a do sujeito clássico, até a tópica, comum a todo o jovem hegelianismo, da hipostasiação de uma criação dos homens (no caso, valores e normas), e da sua reapropriação, da retomada de sua Autoria, com consequências hiper-revolucionárias, encontra em Nietzsche uma de suas versões, melhor dizendo, sua versão mais dramática, bombástica.
A sua é, então, mais uma filosofia do futuro, no seu caso antecipado como passado, e um pensamento aparentemente em maus termos com o devir, com a finitude, com a contingência. Que, em registro ainda “teológico”, coloca a si mesmo, e, para isso, também ao seu tempo, como um absoluto e singularíssimo divisor de águas da “História”, e, por isso, sustenta a própria existência finita, individual, de Nietzsche, como “Destino”, como destino histórico-universal, sobre-humano, gargalo de uma ampulheta pela qual devem obrigatoriamente passar as vastas areias do tempo. A inversão, a inversão da inversão, a lógica determinante do desenvolvimento histórico por vir, permitem a Nietzsche, mais do que hegelianamente, como weltregierender Geist, adivinhar o futuro e narrá-lo como passado, dominado, pode-se entender, pelo movimento dialético da Potência Objetiva da História.
Depois disso, não vejo como a ideia nietzschiana do “Eterno Retorno”, “a concepção fundamental do Zaratustra”, modifique efetivamente esse quadro, ou resgate o que ele tem, digamos, de problemático. E, isso, mesmo se seu Eterno Retorno quiser representar a “moldura cosmológica” dessa “moldura histórica autorizadora”, e não, principalmente, como a maior parte do tempo, para Nietzsche, apenas uma ideia desafiadora, a mais desafiadora e pesada, adequada à sua (da História até aqui) consumação. Como não poderia deixar de ser para o nosso hiperbólico dramático-heroico Nietzsche, “uma Ideia horripilante e paralisadora”, “o pensamento mais pesado”; ao tempo em que, de outro lado, o mais completo “amor fati” e “sim à vida” - por isso também “o que de mais divino se poderia ouvir de um demônio”. Tratar-se-ia da ideia de fundo (melhor, a clef de voûte da sua construção), sobre o tempo, exigida para sustentar a mais acabada e final transmutação de todos os valores, para a passagem ao pensamento do admirável mundo novo de Nietzsche: o fim mais acabado para todo titubeio com relação à mais completa afirmação da Vida (ou do “sem sentido” da Vida). Onde nenhum vestígio mais restaria de Cristianismo, de Ideal Ascético, ou de suas veladas sobrevivências modernas; uma ideia onde niilismo e anti-niilismo se combinam e se superam. Desejar o Eterno Retorno ficando assim como a máxima afirmação dessa vida, dessa vida individual de cada um; sendo nisso uma espécie de exercício espiritual adequado ao empenho de autocriação (audaz, desafiadora, artística) buscado por alguns de nós.
Não vejo o que essa ideia de Eterno Retorno poderia ganhar da “fundamentação científica” que Nietzsche, por outro lado, em dado momento, acha que deve buscar para ela; vejo o que pode perder. É uma ideia interessante que prefiro medir com outra, que diz respeito diretamente a nossa finitude comum, e que combina com um dar de ombros mais do que com apocalípticas tarefas histórico-universais. A de que todos morremos, de que nosso tempo não precisa ser em nada essencial e epocalmente especial, nem nosso papel de qualquer modo salvador; que o mundo não se acaba (ou que se acaba o tempo todo), que nós é que simplesmente passamos. Acho que essa ideia, sim, pode melhor favorecer o desenvolvimento de indivíduos inquietos, interessantes e artísticos, aqui e agora, inclusive entre leitores de Nietzsche. No rumo de um “desinflamento” do filósofo, perderíamos, quem sabe, algo do arrojo e da audácia do seu romantismo heroico e cruento, de seus tons mais espetaculares e dramáticos. Mas, por outro lado, com ele (digo, com tal rumo desinflador), haveria como contemplar, recriadas, as inclinações democráticas que porventura queiramos sustentar, na verdade enriquecidas e renovadas pelos elementos antiplatônicos, anti-essencialistas, agonísticos, de sua filosofia. Sem perdermos mais tempo nem mais nos embaraçarmos com a partie honteuse e o lado cansativamente fanfarrão do pensamento de Nietzsche. Sem perdermos sua poesia, tampouco.

Referência bibliográfica:
BAUER, Bruno. Die Posaune des jüngsten Gerichts über Hegel, den Atheisten und Antichristen: Ein Ultimatum. Em LÖWITH, Karl (ed.). Die hegelsche Linke. Stuttgard: Friedrich Fromman Verlag, 1962.
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