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Nietzsche: Perspectivismo, Romantismo Utilitário, Pragmatismo
Christine Hélène Leboucher

Este texto apresenta o pragmatismo de Friedrich Nietzsche (1844-1900) como descrito e analisado por René Berthelot faz cem anos. Baseia-se numa parte da sua obra intitulada Un Romantisme Utilitaire - Études sur le Pragmatisme (Um Romantismo Utilitário - Estudos sobre o Pragmatismo), publicada na França em 1911. Nela Berthelot se propõe examinar o pensamento “pragmatista artístico” de Nietzsche e o pensamento pragmatista físico-matemático, do matemático, físico e filósofo francês, Henri Poincaré (1854-1912), aos quais dedica respectivamente a primeira e a segunda parte do livro. Mas aqui nos circunscrevemos apenas à parte dedicada ao pragmatismo de Nietzsche, e, dentro dela, ao segmento que trata do perspectivo nietzschiano como pragmatismo.
Berthelot esclarece na introdução da obra que o motivo de seu estudo está em o pragmatismo ter-se difundido muito no final do século XIX e início do século XX e ter-se tornado o maior adversário do idealismo racional. Berthelot, como representante deste pensamento idealista racional, quer trazer à tona todas as deficiências que, a seu ver, o pragmatismo apresenta, e observar ainda assim se algumas novidades ou peculiaridades do pragmatismo podem ser aproveitadas para modernizar e flexibilizar o pensamento idealista racional. Berthelot levará mais adiante seu empreendimento e escreverá mais dois livros sobre o que ele chama de pragmatismo: em 1913 um volume dedicado exclusivamente a Henri Bergson e em 1922 um estudo sobre William James e os filósofos católicos modernistas franceses e ingleses.
É interessante observar que na época em que Berthelot publica este primeiro estudo sobre o pragmatismo, no início do século XX, outros pensadores franceses estavam com a mesma preocupação, de defender o “idealismo racional” frente ao “pragmatismo” ascendente. Emile Durkheim ministrou, em 1913-1914, na universidade parisiense de La Sorbonne, um curso intitulado Pragmatisme et Sociologie ( Pragmatismo e Sociologia ), que reflete sobre este mesmo tema, do pragmatismo e de sua relação com o racionalismo, O filósofo francês Georges Palante também escreveu, em 1911, um pequeno artigo em tom mais irônico, em que nos fala dos vários “inimigos da razão” e defende o racionalismo contra eles, entre os quais se encontra o pensamento pragmatista.
Os estudos de Berthelot sobre esse pragmatismo “experimental” parecem ter ficado esquecidos durante algumas décadas e sido redescobertos pelo filósofo neopragmatista norte-americano, Richard Rorty*, que os menciona em seus artigos Nietzsche, Sócrates e o Pragmatismo e O Pragmatismo como um Romantismo Politeísta. Nas palavras de Rorty, Berthelot era um cartesiano convicto, que não simpatizava com o pensamento pragmatista, mas ainda assim conseguiu realizar seu estudo dos pragmatistas “com perspicácia e vigor” .
Na introdução de seu livro, René Berthelot define com maior precisão seu objeto de estudo. Concordando com os três principais sentidos da palavra “pragmatismo” distinguidos por William James, quais sejam, 1) uma atitude que concede mais importância à prática de que à teoria, 2) uma nova concepção de verdade como crença mais favorável à vida, e 3) uma teoria do universo como sistema não-necessário no qual a liberdade do homem faz diferença, Berthelot elege a nova concepção de verdade como foco de sua reflexão pois a avalia como o sentido mais característico do pensamento pragmatista. Ele ainda enfatiza que serão necessárias muitas definições conceituais para tirar as palavras “ação”, “comodidade”, “prática”, “vida” da imprecisão, e que também a palavra “verdade” pode desdobrar-se em verdades religiosas, sociais, geométricas, científicas e de senso comum.
Nosso autor faz uma pequena apresentação histórica e panorâmica do pensamento pragmatista, colocando como marco zero do pensamento pragmatista a publicação, em 1878, do artigo de Charles Sanders Peirce (1839-1914), filósofo e matemático norte-americano, “Como tornar nossas idéias claras”. Neste artigo, Peirce faz das conseqüências práticas das idéias a pedra de toque de seu sentido, e o pragmatismo nasce então como este método intelectual. Berthelot descreve brevemente os pragmatismos de vários pensadores além de Nietzsche. Menciona William James, que diz inspirado na filosofia de Charles Renouvier, e sua obra Pragmatismo, um nome novo para velhas formas de pensar, e Ferdinand Schiller com seu artigo Axiomas como Postulados. Aborda também o pragmatismo, que qualifica de parcial, de Henri Bergson, que considera como inspirado no pensamento de Félix Ravaisson, e de Henri Poincaré. Cita finalmente as formas atenuadas de pragmatismo do “modernismo religioso” , com o Reverendo Campbell, na Inglaterra, e o abade Loisy na França, entre outros, e dos “sindicalistas revolucionários”, inspirados em George Sorel.
A parte dedicada ao pragmatismo de Nietzsche subdivide-se em cinco capítulos. O capítulo I expõe o “perspectivismo nietzschiano”, ilustrado por abundantes citações de A Gaia Ciência, Assim falou Zaratustra, Além do Bem e do Mal, Nos capítulos II e III, Berthelot desenvolve hipóteses sobre a dupla origem deste pragmatismo de Nietzsche, respectivamente romântica e utilitária. No capítulo IV é realizada uma crítica do pragmatismo de Nietzsche, no capítulo V, a tese da dupla origem do pragmatismo de Nietzsche é estendida ao pragmatismo em geral. Nos capítulos VI e VII, que fecham a parte do livro dedicada ao pragmatismo de Nietzsche, Berthelot propõe modos de utilizar respectivamente o pragmatismo teórico e o pragmatismo moral de Nietzsche no âmbito maior do idealismo racional. Como dissemos, vamos tratar aqui do conteúdo do capítulo I.
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Embora, para Berthelot, Nietzsche tenha esboçado sua concepção pragmatista em 1873, em fragmentos não publicados de Verdade e Mentira no Sentido Extra-moral, é apenas em 1881, na obra A Gaia Ciência, que ele formula seu novo pensamento, sob o nome de “perspectivismo”. Este perspectivismo estará presente também em Assim falou Zaratustra e em Além do Bem e do Mal, e finalmente exposto de modo sistemático em Vontade de poder, embora sem apresentar novidades. Berthelot qualifica o pragmatismo de Nietzsche de audacioso, pleno e poético, em contraste com o pragmatismo “prudente, moderado e prosaico” de Peirce.
O foco da apresentação do perspectivismo de Nietzsche é a teoria do conhecimento deste, em particular suas reflexões sobre a natureza da verdade. Sua teoria do conhecimento é orientada por esta idéia: a vida tem mais valor que o conhecimento (p.33). Em um escrito da juventude, Nietzsche, então professor de filologia, critica o ensino da história em seu tempo por configurar-se como o estudo de um passado morto, sem pertinência para a vida presente nem futura, desviando os estudantes de sua própria vida em vez de trazer subsídios para o desenvolvimento desta. Em A filosofia na idade trágica dos Gregos, Nietzsche prossegue nesta idéia, como nos diz Berthelot:
“Os primeiros pensadores helenos (...) não separavam a verdade da vida, e o momento crítico no desenvolvimento, não apenas da filosofia mas da vida grega, é o momento em que o conhecimento foi colocado acima da vida, e, deixando de ser considerado como um instrumento que o instinto vital se criava, foi pensado como tendo em si mesmo seu objetivo e um valor soberano. Percebemos esta transformação na passagem da filosofia pré-socrática para Sócrates e Platão. E é esta vitória do intelectualismo sobre o instinto vital que levou, ao fim de um tempo muito curto, à ruína de toda a civilização grega.” (p.34)

Em O nascimento da tragédia, Nietzsche observa nas tragédias gregas clássicas a mesma ruptura e inversão, sendo Eurípides o divisor de águas, a partir do qual o intelecto, como análise e raciocínio, suplanta a intuição da vida baseada no sentimento e na imaginação. Nietzsche, então, desde sua juventude, contrapõe-se à primazia do conhecimento sobre a vida e sugere novos valores, um novo ideal, o “Uebermensch”, o “super-homem”, um misto de herói e de artista. O ideal nietzschiano é o desabrochar e o harmonizar de todas as tendências vitais “na unidade da vida mais poderosa e mais rica”. (p.35)
No conceito de Nietzsche, numerosos ideais desviam o impulso vital humano deste máximo desabrochar individual, e, portanto, opõem-se ao desenvolver do “homem além do homem”: o ideal do cristianismo e do utilitarismo igualitário, por colocarem o bem geral como prioridade, e o ideal da busca científica, por estar à procura de uma verdade objetiva e impessoal. Nietzsche vai então combater a idéia desta verdade universal, impessoal e eterna, que sustenta os ideais hostis à vida, e para isso seu primeiro passo é retirar o valor de verdade absoluto de todos os ideais, com o argumento de que um ideal moral não pode ser nem provado nem refutado. “O ideal fica além do verdadeiro e do falso” (p.36). Todo ideal moral é altamente pessoal, individual, particular, e o único argumento de Nietzsche em prol do ideal do Uebermensch é que expressa uma vida em ascendência, à diferença de outros ideais que refletem uma vida enfraquecida. O próprio esforço de provar o valor dos fundamentos de um ideal mostra o esmorecimento do instinto vital, e a crença em uma verdade moral perene e impessoal, sejam hábitos arraigados ou costumes sociais, denota preguiça e comodismo, em contraponto a uma saudável confiança nos próprios impulsos e inspiração, dos quais um dia se originaram os hábitos.
Nietzsche denuncia a verdade filosófica como fundamentada na moral pessoal do filósofo e expressando suas tendências profundas.
“Aos poucos fui descobrindo o que até agora tem sido toda grande filosofia: uma confissão pessoal de seu autor, uma espécie de memórias involuntárias e despercebidas; e também percebi que as intenções morais (ou imorais) formavam sempre, em toda filosofia, o verdadeiro germe vital a partir do qual desabrochou a planta inteira...”

A busca de seu sentimento da vida é a ótica de Nietzsche quanto aos filósofos pré-socráticos e aos poetas trágicos: gozando de instinto vital vigoroso, todos esses aceitam o acaso da vida, a irracionalidade do mundo. Demócrito, por exemplo, pensa o universo como “um jogo do acaso e da necessidade” (p.39) e corajosamente dispensa uma teleologia otimista do universo. Nietzsche interpreta o mundo das idéias de Platão, o Nirvana hinduísta, o númeno de Kant, como tantas tentativas de escapar do mundo real e de seu constante e caótico crescimento e transformação. Essas criações de um mundo pacífico, imóvel e coerente, fictício portanto, tanto quanto o desejo que as gerou, refletem um instinto vital em decadência.
“Assim, a concepção do universo dos filósofos, bem como a concepção do bem e do mal dos moralistas, não expressa outra coisa senão as necessidades do instinto vital, e segundo este instinto seja a expressão de uma vida em ascendência ou de uma vida em decadência, a concepção do mundo será diferente em tudo.” (p.39)

Tal como a verdade moral e filosófica, a verdade religiosa e em especial o cristianismo - para Nietzsche uma vulgarização da filosofia platônica para uso popular - expressam esta vontade de fugir do mundo tal como é, para um mundo imóvel e feliz, sendo que o cristianismo traz ainda a vontade de vingança dos escravos sobre os senhores.
Por fim, as verdades do senso comum e as verdades científicas são incluídas nessa mesma concepção. Berthelot reitera que, para Nietzsche, o universo é um jogo de forças contínuo e incoerente, e esclarece neste momento o que é a vida, vida que podemos experimentar em nós mesmos: “É esta força, esta tendência para uma expansão tão completa quanto possível (...). Cada força está lutando com as demais, vitoriosa ou vencida, e tende incessantemente a vencer-se e a superar-se a si mesma” (p.40). Assim sendo o universo para Nietzsche, as verdades do senso comum são ficções, pois vêem o mundo imóvel, feito de objetos separados, com duração, ligados por relações de causalidade e reunidos em gêneros por identidade. Ou seja, o senso comum fragmenta, generaliza, imobiliza e organiza o mundo real. O senso comum cria, portanto, um mundo ilusório, no intuito de podermos agir sobre o mundo real, de lutarmos contra os muitos perigos que nos ameaçam. Nietzsche chama de “erros” estas diversas simplificações do mundo realizadas pelo senso comum para possibilitar a sobrevivência humana no mundo, de erros fecundos, erros que, com o passar do tempo, se tornaram critérios de verdade do conhecimento humano. São, neste ponto, citados três aforismos da obra A Gaia Ciência. O aforismo 110 vem para expor estes erros fecundos do intelecto humano, erros fundamentais do senso comum. O aforismo 111 é trazido para tratar da lógica do senso comum que opera com as noções de identidade e de substância, e também para expor a necessidade de velocidade para avaliar as situações práticas de perigo e tomar decisões tendo por objetivo a preservação do ser humano. O aforismo 112 questiona a causalidade com o argumento de que lidamos com um continuum, que nós parcelamos segundo nossa conveniência. Concluindo sobre as verdades do senso comum: “As crenças fundamentais do senso comum são (...) criações do instinto vital, de início casuais, que, em razão de sua utilidade, incorporaram-se ao organismo.” (p.42)
Passando para as verdades científicas, e examinando primeiro a geometria e a mecânica, Berthelot cita novo trecho do aforismo 112, de A Gaia Ciência, em que é desfeita a suposta superioridade das ciências contemporâneas sobre as ciências anteriores: aquelas pretendem explicar o que essas só descreviam, mas apenas descrevem melhor e sempre com o concurso de abstrações humanas:
“Basta considerar a ciência como uma humanização das coisas tão fiel quanto possível; aprendemos a nos descrever a nós mesmos sempre mais exatamente, descrevendo as coisas e sua sucessão.” E ainda: “Afinal de contas, são ciências práticas, baseadas nos erros fundamentais do homem, a saber que há coisas e que há idêntico. É surpreendente que para nossas necessidades (máquinas, pontos, etc.) as suposições da mecânica bastem: é que são necessidades muito grosseiras e que os “pequenos erros” não entram em linha de conta.”

Tais como os matemáticos, e no mesmo intuito de sobrevivência e de ação sobre o mundo, os físicos e os químicos raciocinam com base em um mundo simplificado, e onde há coisas duráveis. Por outro lado, a idéia de evolução universal, que expressa a mudança incessante do universo, contraria qualquer pretensão à enunciação de leis ou propriedades naturais eternas. e idênticas. Sempre há uma margem, por ínfima que seja, de mudança em todos os acontecimentos, e “é dentro desta [margem] que ocorre a eterna transformação, o fluxo eterno de todas as coisas.” Novamente, a idéia de identidade é colocada em xeque, e a proposta de Nietzsche é substituí-la pela idéia de analogia.
Portanto, todas as verdades científicas também não passam de interpretações e simplificações humanas do mundo. Pretendemos com nossas ciências explicar o mundo, mas apenas descrevemos cada vez com mais detalhes os fenômenos com nossas abstrações humanas. A ciência é “uma humanização das coisas tão fiel quanto possível.” As ciências são tão práticas quanto o senso comum, no sentido de que têm a mesma finalidade, que é nossa sobrevivência e nossa ação sobre o mundo. São baseadas nos mesmos “erros fundamentais”, e dão certo apenas enquanto as usamos para resolver estes problemas extremamente práticos. Para Nietzsche, a ciência desce de seu pedestal de verdade absoluta, impessoal, universal. Ela é agora filha, ou irmã, do senso comum, fundamenta-se na mesma simplificação humana do mundo, é um mero instrumento que o homem criou para agir sobre o mundo. Por fim, a ciência nos informa mais sobre o homem enquanto espécie, sobre sua relação com o mundo, do que sobre a verdade ou sobre o mundo.
A conclusão de todas estas colocações é que nem as verdades do senso comum nem as verdades da ciência são verdades necessárias, ao contrário, seriam verdades contingentes, pois não passam de hábitos enraizados correspondendo a necessidades da vida nos homens. “A origem do entendimento e de sua constituição deve ser deduzida de nossa relação prática com as coisas”. A genealogia nietzschiana para o entendimento é assim uma declaração pragmatista. Nietzsche ainda arremata que temos que acreditar nessas nossas verdades do senso comum, por mais simplistas que sejam, pois, fora destas crenças, não há possibilidade de sobrevivência.
Além das necessidades biológicas, as necessidades sociais também estão na origem da conformação do “pensamento racional”. Os homens, ameaçados pelo mundo real, precisavam do auxílio uns dos outros, e desenvolveram, para comunicar-se, tanto a consciência quanto a linguagem, que andam estreitamente juntas. Nietzsche enfatiza neste ponto que novamente é o homem enquanto espécie, rebanho, e não o homem individual, que é beneficiado pelo advento da consciência e da linguagem.
“Este é o fenomenalismo e perspectivismo, como eu o entendo: a natureza da consciência animal ocasiona que o mundo de que podemos nos tornar conscientes seja só o mundo generalizado, vulgarizado - que tudo o que se tornar consciente por isso mesmo torna-se raso, ralo, relativamente tolo, geral, signo, marca de rebanho, que a todo tornar-se consciente está relacionado uma grande, radical corrupção, falsificação, superficialização e generalização. (...)

As verdades do senso comum e da ciência, bem como nosso pensamento racional, expressam apenas esta imagem simplista do mundo. Entretanto, podemos perceber o mundo como ele é pela intuição artística, dionisíaca, que nos faz sentir “diretamente esta variedade, esta heterogeneidade indefinidas, deste fluxo continuamente renovado de fenômenos, esta expansão de forças vivas”. (p.48) Mas Nietzsche rechaça aqui a hipótese de que se possa ver uma certa verdade nesta intuição. Com efeito, a intuição não é a chave, o método, para alcançar uma verdade superior, ela é um acesso individual ao fluxo incessante do continuum que é o mundo, não poderia fundamentar nenhuma afirmação universal, impessoal, eterna.
A concepção de Nietzsche teria variado ao longo de sua vida, e, segundo Berthelot:
“no final, ele [Nietzsche] não admite mais nenhuma “realidade em si”, nenhuma “vontade divina”, superior aos fenômenos, nenhum “mundo verdadeiro”, que os reduziria a “aparências”; não há mais que os fenômenos mesmos e o jogo da imaginação criadora em cada um de nós, ora subjugada à utilidade da vida na espécie, na sociedade, no rebanho, ora pessoal e espontânea.” (p.49)

Nietzsche situa a perspectiva humana como uma entre infinitas outras perspectivas e ironiza, no aforismo 374 de A Gaia Ciência, a suposta maior legitimidade desta interpretação humana do mundo real, embora também coloque esta perspectiva como insuperável, inerente à condição humana. “Há uma curiosidade sem esperança em querer conhecer quais outras espécies de inteligências e de perspectivas poderiam existir”. Berthelot cita o aforismo 24 de Além do Bem o do Mal em que Nietzsche considera uma escolha moral desprezar as aparências em prol da verdade, e argumenta que, sem aparências e perspectivas, não haveria vida e a verdade também se esvairia. Nietzsche questiona a crença dos filósofos na diferença de essência entre o verdadeiro e o falso, propondo antes uma gradação nas aparências. Por fim, ataca o próprio conceito de oposição, especialmente a oposição de valores morais, conceito tão caro e tão característico dos metafísicos. ”Sua crença fundamental é a crença na oposição dos valores.” Para Nietzsche, a oposição de valores morais também faz parte das verdades do senso comum, que não passam de simplificações superficiais e avaliações provisórias. Além disso, ele defende que não haveria diferença de natureza entre as coisas “boas” e as coisas “más”, que estas coisas são entrelaçadas e que talvez as coisas com valor moral negativo, a exemplo do egoísmo e do desejo, sejam tão ou até mais importantes para a preservação e a ampliação da vida do que as coisas com valor moral positivo.
Nietzsche vê o homem como produtor de metáforas. Os conceitos do senso comum e da ciência são metáforas, de grande fecundidade para algumas necessidades da vida humana, as necessidades de sobrevivência. Segundo a expressão nietzschiana, o homem “razoável” vive subjugado a estas necessidades e habita “um novo mundo regular e rígido”, criado pelas metáforas da linguagem convencional e da ciência. Mas, em contraponto ao este homem “razoável”, há, para Nietzsche, o homem “intuitivo”, criando, ou ansioso por criar, novas metáforas que estilhacem as velhas metáforas, acompanhando assim a perpétua transformação do mundo. E ainda há a apropriação individual:
“Conhecer é um desejo e uma sede! Conhecer é gerar... Enquanto criação, todo conhecimento é um não-conhecimento. Ver através e exaustivamente seria a morte, o asco, o mal. Não há outra forma de conhecimento de que a criação primeira... O maior perigo é a crença no saber... A cada homem deveria corresponder uma explicação do mundo que lhe pertenceria por completo: a ele enquanto primeiro movimento.”

Berthelot arremata esta apresentação do pragmatismo de Nietzsche com algumas invocações do Zaratustra que tratam de três idéias centrais do pensamento nietzschiano: a vontade de verdade como vontade de dominação do mundo por representação, a vida como força sempre se expandindo e se superando, e o mundo como acaso totalmente desprovido de qualquer finalidade.
Já chegando à sua conclusão, Berthelot afirma:
“Em resumo, quer se trate de verdade moral, de verdade filosófica, de verdade religiosa, de verdade científica, do que o senso comum chama verdade, das leis necessárias de nossa representação, a afirmação da verdade nada constitui, para Nietzsche, senão uma forma da vida ascendente ou da vida descendente, uma condição útil ou necessária à vida em geral, condição que a vida cria por seu desenvolvimento mesmo e como o instrumento deste desenvolvimento.” (p.56)

Não havendo mais busca pela Verdade por não haver nenhuma Verdade, qual será para Nietzsche o papel da filosofia? O papel do filósofo é de “destruir em nós a crença no valor próprio e autônomo do conhecimento mesmo”, e junto com a arte e o artista, “criar imagens que provoquem o desenvolvimento integral da vida, e não imagens que provoquem sua decadência e enfraquecimento”. (p.57) Nietzsche, tal qual seu Zaratustra, anunciava o super homem, o homem que vive plenamente. Berthelot conclui sua exposição do perspectivismo de Nietzsche dizendo que é fundamental entendermos que:
a vida, para Nietzsche, “é este princípio profundo de realidade do qual o conhecimento é apenas uma manifestação e um instrumento; viver não é essencialmente nem conservar-se como o crê Schopenhauer, nem defender-se para não perecer como o crê Darwin; viver é desenvolver-se em detrimento dos outros e em detrimento de si próprio; é neste sentido que a vida está além do bem e do mal, além do egoísmo e do altruísmo, como está além do verdadeiro e do falso, porque há em sua potência criadora um princípio mais profundo que estas oposições aparentes”. (p.59)

Parece pertinente agora sair um pouco do texto de Berthelot para dar nova organização aos elementos do pensamento nietzschiano colocados por ele e tentar uma pequena reconstrução do edifício teórico do pragmatismo de Nietzsche. O universo na visão de Nietzsche é um universo trágico, incoerente e mutável, onde imperam o caos, a imprevisibilidade, a falta de sentido. É um universo contínuo que está sempre em movimento, em fluxo, em mudança, tudo está mudando sempre, nada nunca é igual a si mesmo. Inclusive, em termos lógicos, Nietzsche avalia esta visão do universo como incompatível com os fundamentos clássicos da lógica, tanto com o princípio de identidade, como com o princípio de não contradição.
A vida, por sua vez, é uma força que tende ao mesmo tempo à maior expansão e à superação de si mesma, nos lembrando a exuberante “physis” da Grécia pré-socrática. Os seres vivos, e em particular os seres humanos, têm o que Nietzsche chama de “instinto vital”, que é a realização neles desta força sempre em movimento, em mudança e em expansão, inclusive aniquilando formas prévias de si mesma para criar novas formas. Nietzsche considera que este instinto vital pode estar ascendente ou descendente, segundo a qualidade de sua correspondência com as características essenciais da vida, expansão e dominação. Nietzsche está sempre examinando e avaliando o estado deste instinto vital nas épocas históricas ou nos acontecimentos que lhe interessam.
A concepção nietzschiana do ser humano também é fundamental para a construção teórica do seu pensamento: Nietzsche vê o homem como um animal fisicamente fraco - se comparado com outros animais - que, por conta desta fragilidade relativa, desenvolveu naturalmente o intelecto como recurso para sua sobrevivência, virou um animal esperto. Visando maior velocidade de avaliação das situações de perigo e de decisão nestas situações, o homem com seu intelecto, criou uma versão simplificada do mundo, o que chamamos de senso comum. Na opinião de Nietzsche, a visão do mundo pelo senso comum imobiliza, fragmenta e organiza o mundo. Percebe-se então que o intelecto, entre cujos produtos o senso comum ocupa lugar de grande destaque, está fundamentado na utilidade com fins à sobrevivência. Para Nietzsche, ao menos em alguns textos, a ciência não se contrapõe ao senso comum, pois, embora contradiga em certos pontos o senso comum, atende à mesma utilidade orientada pela sobrevivência da espécie. Ainda por conta de sua relativamente frágil constituição física e do desafio da sobrevivência, o homem precisou da ajuda dos demais homens, e desenvolveu então tanto a consciência quanto a linguagem para poder comunicar-se com os seus semelhantes. Tanto a consciência quanto a linguagem refletem e expressam também a visão simplificada de mundo, oriunda da utilidade para fins de sobrevivência; estão segundo Nietzsche a serviço do “rebanho”, da espécie e não do indivíduo singularizado, do indivíduo forte.
A concepção de verdade de Nietzsche está construída com base em todos os elementos expostos acima: o mundo como caos e fluxo, a vida como força tendendo para expansão e dominação, o instinto vital refletindo a vida ascendente ou descendente, o homem frágil e esperto, o intelecto, a consciência e a linguagem humanas a serviço da sobrevivência da espécie.
Refletindo sobre o que até então era chamado de verdade, Nietzsche pensa que o homem cujo instinto vital está ascendente enfrenta corajosamente a realidade cruel e insensata do mundo, mas, quando o instinto vital humano enfraquece, os homens não mais conseguem suportar a idéia deste mundo imprevisível e cruel. O que ocorre então é que, por um lado, procuram estabelecer o que chamam de verdades universais, que são como bases estáveis e seguras sobre as quais podem fundamentar suas vidas. Por outro lado, criam serenos e harmoniosos mundos ficcionais tais como o Mundo das Idéias de Platão, o Paraíso do catolicismo ou o Nirvana do hinduísmo. Para Nietzsche, está muito claro que todas estas verdades absolutas e mundos paradisíacos são meras criações humanas, e ele rejeita a crença segundo a qual estas verdades descrevem o mundo tal como é. Denuncia finalmente como o absurdo extremo, embora de certo modo e até certo ponto inevitável, os homens darem todo valor a essas crenças coletivas suas, sejam essas o senso comum, a ciência, o conhecimento, as verdades religiosas e morais, pois com isso negam a força da vida neles mesmos, e enfraquecem seu instinto vital.
Berthelot vai agora se ocupar das origens do pragmatismo nietzschiano no romantismo e no utilitarismo, mas, por razões de espaço, devemo-nos deter aqui.

Referência Bibliogrática:

BERTHELOT, René. Un romantisme utilitaire. Étude sur le pragmatisme, Paris: Alcan, 1911.

RORTY, Richard, O Pragmatismo como Politeísmo Romântico. In RORTY, R. Filosofia como política cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

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