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Materialismo e Moral em Friedrich Engels: Uma Confusão do Século XIX.


José Crisóstomo de Souza


Antes que Karl Marx e Friedrich Engels escrevessem o “São Bruno (Bauer)” e o “São Max (Stirner)”, seções que compõem o que é hoje A Ideologia Alemã (1845-1846), outro jovem anti-hegeliano, Max Stirner, já havia escrito um verdadeiro “São Ludwig”, mostrando as implicações religiosas e morais (ou moralistas) do suposto materialismo (e empirismo) de Ludwing Feuerbach. Refiro-me a O Único e sua Propriedade (1844), em que Stirner procura mostrar que o autor da Essência do Cristianismo permanece no terreno “da teologia e da religião”.
Por certo, a imagem de Feuerbach que se tornou mais conhecida não é bem essa. Gheorgi Plekhanov, nos Princípios Fundamentais do Marxismo, por ex., não entende porque o autor da famosa História do materialismo, Friedrich Lange, recusou-se a reconhecer a concepção feuerbachiana como uma doutrina completamente materialista. Para o pai do marxismo russo, Feuerbach, que “está próximo de Espinoza”, “é quem desembaraça o materialismo espinozeano de seu apêndice teológico”.
Embora relativizada por David Riazanov, a opinião de Plekhanov é de que pensador o “homem genérico” forneceu a Karl Marx a base filosófica do marxismo: o materialismo. Que Marx teria apenas de desenvolver e retificar no sentido do reconhecimento do papel ativo do sujeito, nas relações entre este e o objeto. “As concepções materialistas de Marx e Engels”, diz Plekhanov, “desenvolveram-se no sentido indicado pela lógica interna da filosofia de Feuerbach”. E a base principal de um juízo tão favorável reside na tese feuerbachiana de que “o ser é o sujeito, e o pensar o atributo”. Ainda que tal posição, diríamos nós, possa corresponder, no fim de contas, à noção de que o “gênero” é o verdadeiro sujeito, e que o indivíduo, o sujeito aparente, é na verdade o “atributo”. “O pensar”, para Feuerbach, “não é a causa do ser, mas sua conseqüência ou, mais exatamente, sua propriedade”, diz Plekhanov com aprovação. Mas, podemos indagar, quem é “o ser”, então? Não seria por certo eu, Max Stirner replicaria. E que filosofia é essa onde o pensamento fica como uma propriedade “do ser” e não minha? Se, quando eu penso, é “o ser” que pensa, então, como em Espinoza, o pensar é um atributo da Substância. Onde ficam, então, a subjetividade e o indivíduo?
Depois disso, não deve surpreender o entusiasmo feuerbachiano de Friedrich Engels no Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã (1886) onde trata A Essência do Cristianismo (1841)e seu autor, Feuerbach, como tendo representado nada menos do que uma radical “libertação” para os jovens hegelianos. Engels recorda como o livro reduziu de um só golpe a contradição entre a natureza e a idéia, recolocando sem rodeios o materialismo “sobre o trono”. A partir do que ficava estabelecido que não havia “nada além da natureza e dos homens”, que também eram “produtos da natureza”. Marx, malgrado algumas “reservas críticas”, ter-se-ia deixado igualmente influenciar por aquela “nova maneira de ver” e teria sido “feuerbachiano” como os demais . Engels faz alguma restrições ao que chama de “apoteose do amor”, do mestre humanista, mas acredita que ela pode ser “desculpada” ou até “justificada”, face à contemporânea vigência de uma “insuportável soberania” do “pensamento puro” (FFC 272, s22-3). Afinal, a posição de Feuerbach teria sido nada menos do que uma “ruptura total” com o idealismo hegeliano, detendo-se apenas diante do preconceito que cercava a palavra “materialismo”(227, s31-2).
Engels admite que Feuerbach não foi materialista no terreno do social e da história, mas essa falha é debitada “principalmente” ao seu “isolamento campestre” (FFC 280-1, s37-8). Depois dessa apreciação generosa, Engels vai-se dedicar demoradamente a expor ainda a incompletude e a inconseqüência do materialismo feuerbachiano, em comparação com a concepção materialista histórica, dele e de Marx. É particularmente significativo, porém, que o faça, em grande medida e em última análise, com ralação às conseqüências indesejáveis da filosofia de Feuerbach... no terreno moral!
Antes de mais nada, Engels, sem mencionar Stirner, descarta en passant qualquer objeção à crença em ideais morais e políticos: a obediência a “tendências” ou “potências” ideais representa apenas o reflexo, no cérebro do homem, das necessidades vitais e das “repercussões do mundo exterior” (FFC 281-2, s38-41). Depois disso, Engels se fixa no problema de que a moral tem-se caracterizado até aqui por “impotente” e “hipócrita”, e que a nova moral “humana” (humanista) de Feuerbach, por ser ainda “abstrata”, padece dos mesmos defeitos. Da mesma forma que a moral kantiana do imperativo categórico, também a feuerbachiana se constituiria de “belas lições inaplicáveis” (291, 282, s58, 55), e estaria, “por menos que Feuerbach queira ou perceba, feita sob medida para a sociedade capitalista”(289, s54). Na moral feuerbachiana, segundo Engels, a preocupação pela igualdade e pela felicidade permaneceria no terreno das meras “palavras”, por desconsiderar a questão dos “meios” - “materiais” e “culturais” - necessários à sua “concretização” (288, s52-3).
Nesse aspecto, Hegel, apesar de idealista mais completo, não o sendo à maneira de Kant, acaba por se mostrar muito superior a Feuerbach (para Engels); pois ninguém teria criticado mais impiedosamente o “imperativo kantiano” e “a predileção filistéia pelos ideais irrealizáveis” do que o autor da Fenomenologia do Espírito. “A ética de Hegel”, apesar da “forma idealista”, tem um “conteúdo realista”, englobando ao lado da moral, também “o direito, a política e a economia”. Feuerbach, ao contrário, não tomaria conhecimento do mundo no qual o homem vive. Por isso Engels vai concluir que o homem feuerbachiano - como o indivíduo “único”, de Stirner, segundo a Ideologia Alemã - “não saiu do ventre de sua mãe” e “não vive dentro de um mundo real formado e determinado historicamente”. Ele “está certamente em relação com outros homens, mas cada um desses outros é tão abstrato quanto ele próprio” (FFC 286, s48-9).
Engels vai, ainda assim, citar com aprovação algumas idéias morais de Feuerbach, lamentando apenas que este não as tivesse desenvolvido. Além da idéia de que numa choupana se pensa de outra maneira que num palácio, ele destaca a afirmação feuerbachiana de que, “se a fome e a miséria lhe deixam sem nada de substancial no corpo”, o indivíduo “não tem tampouco, na cabeça, no espírito e no coração, substância alguma para a moral” (FFC 286, s49). E, ao que parece, a última coisa que Engels gostaria de ver é o indivíduo sem “substância” para a moral. Mais sintomático, porém, é que Engels destaque como precioso exatamente o lema feuerbachiano aparentemente menos materialista: “É preciso que a política se torne nossa religião” (286, s49). E que externe, como ressalva, que isso seja, em, Feuerbach, apenas uma “simples maneira de falar”!
O problema com a “teoria moral de Feuerbach”, diz Friedrich Engels, a mesma debilidade de “todas as teorias morais que o precederam”, permanece o fato de que ela “não é histórica”. E é aí, e frente a isso, que Engels vai oferecer o materialismo histórico e dialético como resposta mais conseqüente (FFC 289-90, s55): “Não se passa do homem abstrato de Feuerbach aos homens reais e viventes se não os consideramos em ação na história”(290, s55). Conclusão: “o culto do homem abstrato”, que é “o centro da religião feuerbachiana”, deve necessariamente ser substituído pela “ciência dos homens reais e do seu desenvolvimento histórico”(289-90, s55-56) - ou seja, pela concepção materialista da história. No lugar do “culto do homem abstrato”, uma ciência prenhe de potência moral: a do homem histórico e “concreto”. Aqui, porém, parece haver um “escamoteamento” (como Marx e Engels costumam dizer na Ideologia Alemã contra Stirner): uma ciência por um “culto” não é bem uma troca equivalente. Para que a “substituição” seja uma, a nova ciência deve esconder no seu “centro” o “culto do homem concreto”, pois está-se assumindo que, com a concepção materialista da história, temos finalmente resolvido a inconseqüência de toda moral anterior e particularmente da moral humanista.

Com a nova concepção (de Marx e Engels), a moral se tornaria afinal “concreta”, “potente” e “aplicável”. E, presumivelmente, seus ideais (os “predicados” de que fala Feuerbach, como o bem, a justiça, a fraternidade, a humanidade, o amor, etc.) tornar-se-iam realizáveis no mundo. O materialismo histórico é aparentemente, assim, a “moral potente”; e, com ele, pode-se supor, a assunção da política como religião não será mais “simples forma de falar”. Semelhante associação, entre materialismo e moral, e mesmo religião, está, aliás, sugerida do mesmo modo na Sagrada Família (1845) de Marx e Engels, onde os “laços óbvios” que “vinculam necessariamente” o “materialismo” ao “comunismo” e ao “socialismo” resumem-se essencialmente à perspectiva, que o primeiro abre, de formar finalmente o homem “bom” e “humano”, pela transformação adequada das circunstâncias objetivas. Como se pode ver, os tais “laços” não se resumem a qualquer necessidade de caráter estritamente científico. O século XIX nos legou essa tendência a fundar novos credos e convicções nas prestigiosas bases de uma ciência em ascensão, uma tendência que está agora, aparentemente, em franca decadência.

BIBIOGRAFIA:

Engels, Friedrich. Ludwig Feuerbach et la fin de la philosophie classique allemande. Paris, Éditions Sociales, 1966. Ludwig Feuerbach und der Ausgang der klassischen deutschen Philosophie. Em Marx & Engels Werke, Berlim, vol.21, Dietz Verlag, 1962, pp.263-307.

Feuerbach, Ludwig. L’Essence du christianisme. Paris, François Maspero, 1968.

________. Théses provisoires pour la réforme de la philosophie. Em Manifestes philosophiques: textes choisis (1839-45). Paris, Presses Universitaires de France, 1960, pp.127-200.

________. “L’Essence du christianisme dans son rapport à L’Unique et sa proprieté”. Em Manifestes philosophiques: textes choisis (1839-45). Paris, 1960, pp. 221-37.

Lange, Friedrich. Histoire du matérialisme, et critique de son importance à notre époque. Paris, tomo 2, 1879.

Marx, Karl, e Engels, Friedrich, L’Idéologie allemande. Paris, Éditions Sociales, 1968.

_________. La Sainte familie, ou critique de la critique critique, contre Bruno Bauer et consorts. Éditions Sociales, Paris, 1972

Plekhanov, Gheorgi. Anarchism and socialism. Westport, Hyperion Press, 1981.

________. Os Princípios fundamentais do marxismo. São Paulo, Editora Hucitec, 1978.

Stirner. Max. “Rezensenten Stirners” (“Anticritique”). Em : Le Faux principe de notre éducation + L’Anticritique. Edição bilingüe, Paris, Aubier Montagne, 1974, pp. 41-77.

__________. L’Unique et sa proprieté. Paris, Stock et Plus, 1978.

 

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