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José Crisóstomo de Souza
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MAIO DE 68: A VIDA PODE SER DIFERENTE

José Crisóstomo de Souza

O que a lembrança do Maio de 68 pode nos dizer, no Brasil, hoje? Que a vida pode ser diferente, que a juventude (não só ela) pode ter um papel na sua renovação, e que a imaginação também pode. Uma vida diferente como? Essa resposta já não é tão simples - depende da imaginação. O rebelde, breve e plural movimento francês pretendeu dizer também isso, que não se trata de ter um programa fixo e unitário, de tipo político tradicional. Mesmo assim, ao longo do texto, irei insinuando uma resposta à pergunta, no espírito do movimento, começando por sua rememoração e pelo mapeamento de sua paisagem. Para revelar algo de sua inspiração mais - e menos - interessante.

Contra a “Velha” Sociedade Moderna, a Revolução é uma Festa

A primavera de Paris foi uma imensa revolta, predominantemente universitária, em seguida também de professores, de secundaristas, operária e, por fim, “geral”. Acontecimentos menos retumbantes na Alemanha, na Itália, na Polônia. Não foi a decantada Revolução, nem um ensaio dela, mas uma espécie de revolução cultural, moral, política. Em pouco tempo encerrou-se, e a ordem retornou à França - democrática, desenvolvida, capitalista e... menos “católica”. Com mudanças (umas imediatas, outras graduais), com o florescimento de iniciativas alternativas, demandas e movimentos novos. Pode-se questionar se foram mudanças profundas, e é fato que algumas delas (no direito, por ex.) se iniciaram aí por 1966, mas pode-se também entender que, num certo sentido, nada ficou como antes.
A “grande explosão” começou pequena, com os estudantes da Universidade de Nanterre chocando-se contra os ranços conservadores, patriarcais, da então atrasada universidade francesa. E contra as injustiças sociais, de classe, reproduzidas no próprio ensino. Logo vieram, no começo de maio, com a ameaça de expulsão das lideranças, a ocupação da universidade, a repressão policial, governamental, as manifestações, a radicalização, as ruas tomadas, as barricadas. Por empatia e adesão, veio a propagação rápida do movimento às demais universidades e a outros setores da população. Um clima de festa tomou conta de Paris. Finalmente os franceses de bom humor e, ao seu modo, carnavalescos.
Entretanto, embora entre mortos e feridos escapassem quase todos, a coisa foi séria. Os operários, predominantemente os jovens, também tomaram ruas e fábricas. Ocupações e greves ocorreram país afora, de estudantes e trabalhadores, até milhões cruzarem os braços. Reuniões de milhares, manifestações de muito mais, reivindicações variadas, a começar pela derrubada do governo à frente do qual estava o “pai da pátria” Charles de Gaulle. O general presidente teve que procurar abrigo numa base aérea francesa, em território alemão, e arrebanhar apoio militar para garantir-se. Pôde finalmente, no último dia de maio, dirigir-se à nação, acenando com o “estado de emergência” (que não decretou) e dissolvendo a Assembléia Nacional para convocar eleições gerais (que venceu). Houve também manifestações públicas pró-governo.
A partir daí, o refluxo, com a colaboração do Partido Comunista Francês, que não quis saber do extremismo juvenil (e vice-versa). Com mais algumas escaramuças, a revolução acabou - em eleições democráticas, em ganhos para os trabalhadores, em mudanças nas universidades. No fim de contas, ficou a tal democracia, ficaram as instituições, renovadas, e a vida, quem sabe, mais interessante e variada. Isso apesar do colapso total que, por um breve período, chegou a acometer o governo, as instituições civis e o funcionamento geral do país.

A Poesia e o Imaginário do Movimento. Primeiro a Prática, depois a Teoria

A revolução foi cheia de bandeiras, de imaginação, de poesia. Ao lado das vermelhas, as negras, do anarquismo. A Internacional Comunista cantada em grandes reuniões: “De pé, oh vítimas da fome...”, por jovens de barriga cheia. O mais marcante, porém, ficaram sendo as pichações - românticas, hiperbólicas, juvenis. “É proibido proibir”, “A imaginação no poder”, “Sejam realistas, exijam o impossível”, “Viver sem horas mortas, fruir sem entraves”, “Sob o asfalto, a praia”. Tiradas contra o “espírito de seriedade”, pela “insolência”, por conjugar sexo e Revolução. Chamadas contra o “capitalismo” e contra o “burocratismo”, em toda parte. E contra o papel bitolado, tedioso, que o sistema supostamente reservava – ou reserva - aos jovens e ao seu futuro.
Inconformismo, espontaneidade, fermentação grupuscular, um significado cotidiano para a política, intervenções urbanas, suposta negação total do sistema, foram algumas das marcas do movimento. Frente ao extremismo juvenil, o psicanalista Jacques Lacan, apesar de simpatizante, entendeu: “Vocês querem uma mãe”, ou, segundo outras versões, “um novo senhor”. O que dá no mesmo. No plano ideológico, de novo, para a extrema esquerda, sobre o mitológico proletariado, deveria baixar ainda a filosofia (leia-se, o marxismo), mas agora também a arte moderna!
Marx, Max Stirner, Baudelaire, pelas ruas de Paris, de braços dados. Bob Dylan, Marcuse e Mao. Freudo-marxismo e Escola de Frankfurt. Oswald de Andrade e Nietzsche. No ar, algo de “revolução caraíba”, oswaldiana, “contra todas as servidões”. E do pensamento “pós-moderno”, de Foucault e Derrida. Mas, se se pergunta pela inspiração mais característica do Maio de 68, a resposta é o “Situacionismo”: crítica total da suposta alienação absoluta da sociedade moderna, e proposta de articulação entre arte “anti-burguesa” (dadaísmo, surrealismo) e luta proletária radical. Seu manifesto (junto com A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord, 1967): “Sobre a Miséria no Meio Estudantil, considerado sob os aspectos econômico, político, psicológico, sexual e especialmente intelectual, e sobre alguns meios para remediá-la”, de 1966, distribuído por uma seção da UNE francesa. Vale lembrar que, em Nanterre, o primeiro passo fora dado em 67, quando os estudantes patrocinaram a palestra “Reich e a função social da repressão sexual”, e distribuíram seu “A luta sexual da juventude”.

Uma Revolução Cultural: Romântica, Democratizante e “Caraíba”

Pode-se falar num espírito do Maio de 68, como no “espírito de 48” - não só uma rima como uma aproximação. Em 1848, a “primavera dos povos” foi uma onda revolucionária (liberal, democrática) que se iniciou em Paris, atingiu importantes cidades da Europa, e Recife, no Brasil, com a Revolução Praieira. O Maio parisiense apresenta também afinidades com outros movimentos predominantemente jovens dos anos 1960, mundo afora. A começar pela prolongada contestação nos EUA (Berkeley, etc.), política e hippie, primeiro por direitos civis (1964/65), depois contra a guerra do Vietnam, culminando no idílico festival de Woodstock (1969). Já no Leste Europeu, em 1968, a breve primavera liberalizante de Praga conduziu à invasão e soviética e a uma brutal repressão, a partir de agosto. Em outubro, México, a rebelião estudantil, que envolveu também trabalhadores e camponeses, contra a repressão e pela Revolução, encontrou (mesmo na ausência de uma ditadura) sua resposta mais sangrenta, na “matanza de Tlatelolco”.
No Brasil, três meses antes do Maio francês, o movimento estudantil contra a ditadura militar iniciou sua maré montante com manifestações de massa, apoiadas por artistas, intelectuais e religiosos, com slogans prosaicos como o - sempre atual - “Mais feijão, menos canhão”. Os operários marcaram presença com duas greves modestas, contra o arrocho salarial. Foi uma primavera em que não pudemos falar de flores, que pouco teve de lúdico, que acabou em brutal repressão e mais ditadura – com o tristemente famoso Ato Institucional no. 5. Em 1968 houve ainda um grande festival de música, no qual marcou presença a oswaldiana “heresia” tropicalista: É Proibido Proibir (vaiado, Caetano Veloso retrucou: “Se vocês forem em política como são em estética, estamos perdidos”), Panis et Circenses, Gil, etc. Mas, por muitos anos ainda (“anos de chumbo”), festivo só pôde ser mesmo, na esquerda, no Brasil, um termo pejorativo (desbunde nem se fala). Foi preciso lutar ainda muito, muito duramente, e recorrer também à política tradicional, para que uma primavera democrática viesse a nos sorrir, ainda que na sua expressão mais prosaica. Com o bônus, porém, de uma amadurecedora experiência política e histórica, e de uma resultante sociedade civil povoada de organizações e movimentos de base.
Depois disso, contudo, já se vão outros tantos anos. Agora, então, por ocasião dos 40 anos do tão colorido Maio de 1968 (um ano que aqui não acabou), seria hora de lembrar que, também entre nós, e aqui mais ainda, “sob o asfalto” está “a praia” – até mais ensolarada. E tratar de tornar a vida melhor e mais interessante, “já”: mais justa, mais criativa, menos careta, menos servil, no cotidiano, onde você estiver. Com arte e imaginação - pluralista, democrática, romântica e “caraíba”. Pergunte-se como. Façamos uma revisão dessa história de Modernidade, lancemos um novo olhar ao modernismo, ao tropicalismo, e à democracia como forma de vida. E, finalmente, deixemos certos exageros juvenis para a vida privada. À “praia”, então. Sem explosões, s’il vous plait.

 

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