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José Crisóstomo de Souza
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Karl Marx como John Dewey:
O Marxismo Pragmatista de Sidney Hook
José Crisóstomo de Souza

Resumo:
Entre os anos 1920 e 1940, aproximadamente, Sidney Hook, filósofo universitário e ativista político norte-americano, procurou desenvolver e aplicar uma leitura pragmatista e revolucionária das concepções de Marx (e de Lênin), sob a influência do “instrumentalismo” de John Dewey, defendendo a idéia de uma coincidência essencial e de uma complementaridade - digamos, compensatória - entre as duas linhas de pensamento. O artigo trata de apresentar tal projeto filosófico hookiano (que envolve também uma consideração do jovem hegelianismo), com referências histórico-biográficas, desde seus primeiros ensaios até o ápice de sua realização, passando pelas polêmicas envolvidas e, finalmente, chegando ao seu gradual e – quase - completo abandono. Trata-se de uma narrativa que acompanha pari passu os desenvolvimentos da esquerda norte-americana no período e os cruzamentos, com ela, do pensamento e da atividade do próprio Dewey.
Palavras-chave: pragmatismo - marxismo – leninismo

Abstract:

Between the years 1920 and 1940, approximately, Sidney Hook, North-American academic philosopher and political activist, endeavored to develop and apply a revolutionary and pragmatist reading of Karl Marx’s (and Lenin’s) ideas, under the influence of John Dewey’s “instrumentalism”, arguing for an essential coincidence and a “compensatory” complementariness of the two lines of thought. The paper presents the development of such philosophical project (that also involves an attention to young Hegelianism) with historical and biographical references, starting from Hook’s first attempts till its fullest accomplishment, the debates therewith involved and, finally, his gradual and – almost - complete abandonment of that project. It is a story that runs entangled with the story of North-American left itself, and involves Dewey’s own position in it.
Key-words: pragmatism – Marxism – Leninism

 

Introdução: Nós, Richard Rorty e Sidney Hook

Comparar, relacionar e distinguir a concepção filosófica de Karl Marx (1818-1883) e aquela de John Dewey (1859-1952), para alguns uma tarefa sem cabimento, poderia, como entendemos, resultar até em um livro ou alguns ensaios interessantes. Uma abordagem filosófica capaz de produzir distinções ou aproximações conceituais mais precisas e esclarecedoras começaria por uma investigação da noção de prática em ambos os autores, e haveria de explorar, entre outras coisas, sua diferente relação com a idéia de teoria e sua compreensão diversa acerca do que seja ciência. No presente texto, no entanto, nosso propósito é menos ambicioso e o tratamento conceitual não muito desenvolvido - mesmo que algumas entradas nesse terreno sejam apontadas. Nossa abordagem tem uma base essencialmente biográfica e histórica: trata-se de apresentar em poucas páginas um caso concreto de aproximação ou síntese de marxismo e pragmatismo (deweyiano) na evolução do pensamento filosófico de um autor particular, Sidney Hook (1902-1989), e nos desafios e debates que, nesse movimento, ele teve de enfrentar. O que não deixa de ter, junto com limitações, também alguma vantagem; pois, dependendo do caso, a ocorrência histórica pode valer como, além de introdução ao assunto, uma espécie de prova real, ou pelo menos indício adicional, no que diz respeito à “natureza” desse ou daquele pensamento, bem como da efetiva possibilidade de convergência e síntese entre pensamentos filosóficos de filiação distinta que em algum momento se cruzaram. No nosso caso, o entrelaçamento de marxismo e pragmatismo (ou “instrumentalismo”), na atividade teórica e político-prática de Sidney Hook, que inclui também um interesse pelo jovem Hegelianismo.

O leitor poderia perguntar por que se ocupar de Hook e de seu período marxista, ele um filósofo menor de outro país, quando pensadores menores (sem nenhum sentido pejorativo), inclusive marxistas, são o que também podemos encontrar entre nós, na nossa própria história periférica de idéias, em nível e papel algo semelhantes. Realmente, nós, que gostamos de estudar filósofos menores, teríamos alguma inclinação para, em primeiro lugar, dedicarmo-nos a alguns dos nossos. Por outro lado, haveria uma certa graça em caracterizar – e com cabimento - como periférico e até provinciano, junto com menor, um pensador e um desenvolvimento intelectual recente dos Estados Unidos. E daí colocarmo-nos, no seu estudo, como uma espécie de “Brazilianist ao contrário”, laborando em algum “estudo de área”. No entanto, não se trata disso; antes é que, sendo a aproximação entre marxismo e pragmatismo o que nos interessa, para isso não encontraríamos material semelhante no percurso intelectual brasileiro. Ademais, o fato é que Hook, como tentaremos mostrar, é um pequeno filósofo digno de atenção per se, com um pensamento que representa num dado momento um esforço de síntese singular. Além de ter sido provavelmente o mais brilhante – o favorito - dos alunos de John Dewey, e o mais importante e original dos estudiosos marxistas americanos de seu tempo.

O destacado filósofo estadunidense contemporâneo Richard Rorty, que gosta de valorizar filósofos e assemelhados de sua própria cultura nacional (e da dos outros também), tem Sidney Hook em alta conta. E não é só que ele se declare próximo do desenvolvimento representado por Hook, e que entenda que este andou basicamente certo em suas posições ao longo do século passado. Por essa proximidade declarada, entendo que algumas das posições do próprio Rorty podem-se esclarecer melhor com o conhecimento do pensamento e percurso daquele seu antecessor imediato.[1] Quanto ao deweyismo, a que ambos Rorty e Hook se filiam, trata-se de um pensamento que, é verdade, encontrou considerável repercussão no Brasil. Não, por certo, entre marxistas, mas, através de Anísio Teixeira, na renovação do nosso pensamento educacional. Além de - nesse terreno mas também em outros - ter tido uma influência considerável na Europa e em outras partes do mundo.[2]

A posição de Hook que nos concerne aqui, que ele desenvolveu desde a primeira metade dos anos 1920 até quase 1940, é que, “bem entendidos”, marxismo e pragmatismo, ou materialismo histórico e naturalismo experimental, necessitam um do outro e se completam, ou até coincidem e se identificam. Cabendo ao pragmatismo deweyiano, com sua ênfase na dimensão humana prático-ativa, junto com sua flexibilidade e sua consideração pela democracia, funcionar como um antídoto contra o determinismo e o burocratismo que, sem serem vícios de Marx (daquele “bem entendido” por Hook, nos seus anos de radical), não obstante acometeriam historicamente o marxismo. Entretanto, no seu desenvolvimento intelectual filosófico, antes de chegar aí, assinale-se, Hook não foi logo de saída nem deweyiano nem marxista, mas teve outras relações e influências cuja consideração mais detida poderia contribuir para a compreensão do perfil e dos rumos de seu pensamento maduro. Mesmo que politicamente rebelde e mobilizado desde os anos pré-universitários, e entusiasmado com a Revolução Russa que então progredia, Hook começou a articular suas idéias filosóficas bem longe das concepções de Karl Marx e John Dewey, como aluno e seguidor de Morris Cohen, no City College de Nova York, onde estudou de 1919 a 1923.[3] Cientificista e realista lógico, Cohen opunha um racionalismo naturalista ao ponto de vista de Dewey; e, sob sua orientação, Hook começou por escrever uma refutação realista do pragmatismo.[4]

A juventude de Sidney Hook foi também marcada por uma grande admiração – que prosseguiu na sua maturidade - pelo empirista lógico britânico Bertrand Russell.[5] No City College, ele iniciou, além disso, uma amizade de toda a vida com Ernest Nagel, a quem dedicaria seu primeiro livro, publicado em 1927, originalmente sua dissertação de doutorado (que foi orientada por Dewey, na Universidade de Colúmbia), com o título algo paradoxal de Metafísica do Pragmatismo. Com o grande amigo Nagel, que foi seu colega também na pós-graduação na Universidade de Colúmbia, Hook constituiu um grupo de discussão, de ex-alunos dessa universidade, que se reuniu regularmente durante muitos anos para ouvir os trabalhos uns dos outros.[6] Não seria o caso de tomar por base apenas essas alusões para afirmar categoricamente outras influências importantes (além das de Dewey e Marx) no pensamento de Hook – no caso, uma influência “neo-positivista”. Mesmo assim, cremos que ele pode ser visto como representante, na cultura intelectual e política de seu país, de uma vertente (o pragmatismo) do conjunto mais amplo de influências cientificizantes, de filósofos norte-americanos (e anglo-saxônicos). Creio que tais alusões atestam, ademais, o genuíno e continuado interesse filosófico, dialógico e investigativo de Hook, sustentado mesmo durante seus anos mais engajados, ativistas e revolucionários. Algo, sem dúvida, admirável.[7]

2. Engajamento e Espírito de Investigação: Um Percurso Acadêmico e Político.

Com efeito, como outros já observaram, Sidney Hook não foi apenas o expoente de uma tentativa de síntese de marxismo e pragmatismo, mas personificou também uma outra síntese: de ativismo político e estudo filosófico acadêmico sério. Foi em 1926, na Universidade de Columbia, em contato com Dewey, que ele virou pragmatista. Depois disso, durante praticamente toda a vida, foi um professor universitário e um filósofo acadêmico respeitado, na Universidade de Nova York, de 1927 a 1967. Nessa universidade, em 1929, foi responsável, segundo consta, pelo primeiro curso sobre Marx numa universidade norte-americana, e, quando começou a publicar trabalhos sobre o pensamento de Marx, nos começos dos anos 30, era possivelmente o único filósofo acadêmico declaradamente marxista nos EUA. Quanto a seu engajamento político, se é controverso que tenha chegado a ser membro do Partido Comunista dos EUA, é fato que, de começos dos anos 1920 até 1933, esteve muito próximo dele, mesmo que com pequenos desencontros e com gestos de impaciência com o baixo nível teórico e o desinteresse pelo estudo de Marx apresentado por seus quadros.[8] Em 1928-29, com uma bolsa de estudos da Fundação Guggenheim, Hook fez uma viagem de pesquisa à Alemanha, para estudar filosofia hegeliana e a formação do pensamento de Marx, visitando ainda a jovem União Soviética. Significativamente, ele voltaria dessa viagem com o projeto de introduzir no marxismo uma sensibilidade às características específicas dos EUA e de obter para o marxismo “um lugar na cultura intelectual norte-americana”.

Na viagem de 1928-29, Hook foi primeiro a Munique, onde se impressionou com o desempenho dos professores universitários alemães, mas irritou-se com o jargão e a pompa do discurso filosófico nacional.[9] Depois passou por Viena, na Áustria, onde encontrou Dewey, que voltava de uma visita às escolas da URSS. Finalmente, em Berlim, onde se alojou, Hook dedicou-se a ampliar e aprofundar seu conhecimento do debate filosófico alemão dos anos 1840, envolvendo o jovem Marx e os outros hegelianos de esquerda, tornando-se, no seu tempo, o especialista americano no assunto, além de respeitado conhecedor da teoria marxista e da filosofia alemã em geral. Nessa viagem, ele pôde também se encontrar com o líder “revisionista” alemão, Eduard Bernstein, e assistir às palestras do dissidente revolucionário Karl Korsch. A concepção marxista deste último, autor de Marxismo e Filosofia (1923), agradou-lhe por sua ênfase na ação e na idéia de democracia (operária), além de sua oposição a todo determinismo (ou “fatalismo”) e à idéia de “ortodoxia”, no marxismo. Com relação a Kautsky e Hilferding, bem como a Bernstein, isto é, tanto a “ortodoxia” anterior a Lênin quanto o revisionismo social democrata, Hook diria mais adiante: “Em vez de materialistas dialéticos, os socialistas alemães tornaram-se sensacionistas e mecanicistas, ignorando a praxis”.[10] Da Alemanha, Hook passou à URSS, para pesquisar na biblioteca do Instituto Marx e Engels, de Moscou, onde foi um dos primeiros a consultar materiais raros ou não publicados, de Marx, de Engels e dos jovens hegelianos.[11]

De volta aos EUA, em 1932, apoiou ativamente a chapa presidencial do Partido Comunista, junto com outros intelectuais radicais (entre os quais James Rorty, pai de Richard). Mesmo assim, já nos anos 1930-32, por suas concepções filosóficas heterodoxas e por causa dos desenvolvimentos na URSS sob Stalin, Hook começara a se afastar do comunismo oficial soviético. Isso, além de ter sempre buscado preservar alguma independência intelectual com relação ao mesmo, expressa em críticas, no plano da teoria e da filosofia, a formulações de representantes individuais do PC - sem prejuízo de continuar alinhado com a política da organização. À medida que o monolitismo e a uniformidade filosófica tomavam conta do partido, porém, Hook começava a ler Trotsky e passava a ser percebido como seu simpatizante – o que de fato foi-se tornando, coincidindo, mais e mais, com posições trotskistas sobre a natureza dos acontecimentos na União Soviética, ainda que sustentando uma posição diferenciada no plano filosófico, em função do componente naturalista experimentalista deweyiano. Em 1933, finalmente, Hook rompeu com o PC, embora por algum tempo chegasse mesmo a aumentar seu envolvimento com o trabalho político de organização. No meio dos anos 30, ainda ingressou no pequeno e recém-criado Partido dos Trabalhadores Americanos (de inclinação trotskista), para ele menos burocrático e restritivo e mais compatível com suas preocupações democráticas e com sua idéia de ditadura do proletariado como democracia dos trabalhadores.[12]

Nos começos dos anos trinta, muitos intelectuais estadunidenses radicalizados passaram a opor-se ao PC e a se voltar para Trotsky, que teve uma grande influência nos EUA. Da mesma maneira que, mais adiante, desencantados com o marxismo e com Trotsky, iriam voltar-se em maior número para o pragmatismo.[13] Quanto a Hook, a partir de 1935 afastou-se de qualquer envolvimento direto com organizações político-partidárias.[14] Na mesma época, John Dewey sustentava suas posições políticas e democráticas mais radicais, como a defesa da socialização do “topo do comando da economia” e a crítica à colaboração do New Deal com as grandes corporações capitalistas. Hook, que sempre procurou puxar Dewey mais para a esquerda, possivelmente favoreceu, em 1936-37, seu envolvimento com o Comitê Americano para a Defesa de Trotsky.[15] Finalmente, em 1938, num confronto havido entre Trotsky e Dewey, Hook ficou definitivamente com o segundo e com sua posição social democrata, embarcando ele próprio na crítica a Trotsky e ao bolchevismo, em suas reflexões sobre a Revolução Russa.

Sidney Hook aparece, assim, como um capítulo particular – e filosófico - da história do pensamento de esquerda no século XX, um capítulo norte-americano e pragmatista do marxismo. Ao mesmo tempo, aparece como partícipe de uma história nacional (da esquerda nos Estados Unidos) cujos marcos principais são em grande medida os mesmos de qualquer outra naquele período: a Revolução Russa e sua primavera, a crise de 1929, o “racha” de Trotsky, os tristemente famosos julgamentos de Moscou, o fracasso da esquerda na oposição ao nazismo na Alemanha, o pacto Stalin-Hitler, a Segunda Guerra Mundial, a “Frente Popular”, a Guerra Fria, etc., etc.

3. Complementaridade e Coincidência de Pragmatismo e Marxismo.

Foi no meio dos anos 20, quando do seu doutorado na Universidade de Columbia, que Hook se impressionou com os pontos de coincidência entre o método histórico de John Dewey, em Reconstrução em Filosofia (1920), e o materialismo histórico de Marx (principalmente na Ideologia Alemã). No Reconstrução, Dewey defende que, “quando for reconhecido que (...) a filosofia brotou de um conflito, de fins sociais e instituições herdadas, com tendências contemporâneas incompatíveis, poderemos ver que a tarefa da filosofia futura é esclarecer as ideias dos homens sobre as lutas morais e sociais de seu tempo.”[16] Na mesma linha, Dewey defende a inseparabilidade de conhecimento e ação, o teste das idéias no que chama de “prática melhorativa” e a substituição da universalidade absoluta pela provisoriedade e falibilidade do conhecimento. No plano moral e político, as concepções de Dewey envolvem ainda a defesa da democracia como modo de vida, além de participativa e “radical”.[17]

O autor de Reconstrução em Filosofia havia-se inicialmente formado sob a influência da filosofia de Hegel, mas as bases de seu “instrumentalismo” foram dadas, em seguida, pelo pensamento filosófico americano do século XIX. Especialmente as idéias de Charles Peirce e de William James, para os quais convicções e crenças são regras e hábitos de ação, e a concepção de um objeto é determinada pela compreensão de seus efeitos potenciais práticos. Na esteira deles, como o pragmatista mais importante do século XX e “o” filósofo americano que veio a ser, Dewey chamava sua filosofia de “instrumentalismo” e de “experimentalismo”, sustentando a extensão do método científico (entendido de forma ampla e flexível) ao campo moral e político. Para Dewey, filósofo antimetafísico e contrário a certezas definitivas, a ciência trazia a marca da falibilidade e validava-se pela experimentação. O verdadeiro conhecimento caracterizava-se pela provisoriedade de suas verdades, comprometendo-se antes com o espírito de investigação do que com a fidelidade doutrinária. O pragmatismo deweyiano distinguia-se dos empirismos especialmente pela ênfase no pensamento criativo na produção do conhecimento, bem como pelo não-determinismo e não-passividade. De acordo com Dewey, os seres humanos antecipam, visam e moldam, em grau muito relevante, o estado futuro das coisas. E, desde quando as conseqüências de suas ações nem sempre podem ser previstas, o pragmatismo exige que todas as proposições sejam tratadas como hipotéticas. Sem que nada disso, entretanto, deva dar lugar a ceticismo, cinismo ou niilismo.[18]

Quanto ao marxismo, Sidney Hook o avalia pela primeira vez em “A Filosofia do Materialismo Dialético”, artigo de começos de 1928, segundo o qual o pensamento de Marx deveria ser entendido como “a união viva da filosofia com a vida, do pensamento que professamos com as atividades que empreendemos” (35-6).[19] E deveria ser reconhecido como a combinação da crítica ao idealismo de Hegel, feita por Ludwig Feuerbach, com a crítica aos limites do próprio materialismo feuerbachiano enquanto preso a uma “crua teoria correspondentista da verdade”, que privaria o pensamento de seu poder de iniciativa.[20] Tomando as “Teses ad Feuerbach”, de Marx, como uma notável antecipação da teoria “instrumentalista” do conhecimento, de Dewey, Hook conclui que, tal qual o pragmatismo científico, que lhe sucedeu na mesma rota, Marx combatia simultaneamente “duas tendências opostas: o empirismo sensacionista e o idealismo absoluto”.[21] Nessa linha, ele critica o Materialismo e Empirio-Criticismo (que ajudou a traduzir para o inglês), de Lênin, por padecer de uma epistemologia pobre, onde o conhecimento simplesmente “reflete” a realidade. Lênin aí incorreria em “monismo” e “determinismo”, por influência de afirmações isoladas de Engels, embora este e Marx estivessem na verdade comprometidos com a idéia de “reciprocidade causal” e não com aquela de uma determinação unilateral “pela matéria” ou “pelo desenvolvimento econômico”. Hook advoga então, para evitar tais erros, que o “materialismo dialético” deve ouvir o “pragmatismo científico” (de Dewey), no que diz respeito ao materialismo e à questão epistemológica. Nesse momento, porém, a proposta de Hook ainda deixaria confusa a relação entre marxismo e pragmatismo: ora o primeiro seria uma antecipação do segundo, ora o segundo pareceria um corretivo necessário para o primeiro.[22] Hook ainda teria de aperfeiçoar sua síntese e sua defesa da compatibilidade teórica de pragmatismo e marxismo na luta contra seus adversários.[23]

Em 1930, numa resenha da antologia Filosofia Americana Contemporânea, Sidney Hook queixava-se da grande ênfase, do livro, sobre a religião e a epistemologia, em contraste com sua desconsideração pela vida pública: “Há pouca simpatia e ainda menos interesse pelos prementes problemas de filosofia social ou pela filosofia da política, do direito e da educação”. E completava: “Dewey, naturalmente, é a exceção mais conspícua a essas generalizações”.[24] Depois disso, Hook contribuiu para a Enciclopédia das Ciências Sociais (1930-31), com verbetes sobre filósofos como Bruno Bauer e Ludwig Feuerbach.[25] Escreveu um bom número de resenhas de livros sobre Hegel, para revistas acadêmicas de primeira linha, e vários artigos sobre a fenomenologia de Husserl, que ele criticava por seu transcendentalismo, mas elogiava por sua crítica a uma epistemologia “sensacionista”. Hook escreveu também um tributo a seu primeiro mentor, Morris Cohen, embora, pouco tempo depois, uma divergência, em plena conferência da Associação Americana de Filosofia, tenha-os posto em confronto, seu antigo mestre argüindo pela existência da lógica intuitiva e nosso pragmatista pelo caráter naturalista experimental do instrumentalismo de Dewey.[26]

Na primeira metade dos anos 1930, nosso radical professor nova-iorquino defendia que o compromisso irrestrito do pragmatismo com a democracia e o espírito científico de investigação exigia a defesa de uma sociedade socialista, que só poderia ser alcançada por via revolucionária. Nessa linha, ele estava sempre se esforçando para persuadir Dewey de que uma política revolucionária era a conseqüência lógica de seu pensamento democrático social pragmatista; enquanto seu mestre achava que os meios para uma mudança social eram a educação democrática e uma reforma progressiva. Não obstante isso, Hook entendia que, em comparação com outros reformistas, Dewey era autenticamente radical, profundamente democrático e igualitarista, e tinha como meta o fim da sociedade de classes. E citava-o com aprovação: “A precondição objetiva do uso completo e livre do método da inteligência é uma sociedade na qual os interesses de classe que se furtam à experimentação sejam abolidos”.[27]

4. Sidney Hook: Uma Leitura Pragmatista Revolucionária de Marx.

Do ponto de vista de vários críticos, o projeto de Hook tratava apenas de “subsumir o marxismo no pragmatismo deweyiano”. Nicholas Lobkowicz, no seu Teoria e Prática (1967), refere-se à “tentativa de Hook de identificar o pai do comunismo como um precursor de Dewey e indiretamente de si mesmo.”[28] Outro crítico entende que “Hook não tentou transformar Dewey num marxista; tentou, em vez disso, descobrir um instrumentalismo no pensamento de Karl Marx”.[29] Para Christopher Phelps, de certo modo Hook realmente tentou fazer de Dewey um marxista, ou, ao menos, através de uma argumentação pessoal, tentou fazê-lo adotar uma perspectiva revolucionária. Por outro lado, a expressão “marxismo pragmatista” aplicada a Hook seria em grande medida redundante, pois no seu caso não estaria claro “onde o pragmatismo começa e o marxismo termina” (Phelps, 57, 54). A verdade é que, durante os anos 30, Hook tinha, sim, diferenças com Dewey, e sabia que o marxismo não podia ser subsumido tal e qual no pragmatismo deweyiano, nem Marx podia ser visto como um estrito precursor de Dewey. Ao mesmo tempo, como vimos, procurava cobrar de Dewey, de um ponto de vista marxista, que seguisse “as implicações revolucionárias de seus escritos”, como, por exemplo, “a visão de democracia radical implícita na sua concepção de ciência, em que os resultados da investigação deviam ser examinados e testados pelo conjunto do público educado e interessado”. O que Dewey chamava de “experimentação social” suporia “a abolição da dominação de classe, com seu predomínio do ganho privado sobre o interesse público”. E Hook concluía (em 1931): “A única discordância (de Dewey) que se pode ter é com sua dificuldade de perceber o valor instrumental da luta de classes, em lugar da colaboração de classes, na promoção da transição da América das Corporações para a América Coletiva”. (Phelps, 54, 57-58)

A natureza do empreendimento filosófico de Hook parecia, entretanto, estar suficientemente clara, pelo menos entre ele e Dewey, que lhe escrevera, em 1929, com aprovação: “Penso que sua afirmação de que o importante é como Marx deve ser interpretado, e não o que ele ‘realmente quis dizer’, é uma boa abordagem para sua discussão sobre ele”. Pois “isso poupa você da acusação de introduzir idéias novas no texto de Marx” – no caso, justamente as idéias de Dewey. Com efeito, o trabalho mais ambicioso e mais relevante, de Hook, para o assunto que nos interessa, é seu Para a Compreensão de Karl Marx: uma Interpretação Revolucionária, sua maior contribuição no campo do pensamento marxista, celebrada por vários de seus contemporâneos, mesmo alguns de seus críticos. Aí Hook praticamente não cita Dewey[30], mas ainda assim ninguém deixou de perceber a influência de Dewey na sua original “interpretação revolucionária” de Marx, que fez dele o mais destacado conhecedor do pensamento marxiano, naquela época, nos Estados Unidos. Publicada em 1933, a partir de posições desenvolvidas em artigos anteriores, a idéia central do livro é que o marxismo é, sobretudo, uma “filosofia de ação social”, uma “teoria da revolução social”. Depois da morte de Marx até 1917, essa compreensão teria sido perdida pela reformista social-democracia alemã, dando lugar a uma ossificação do marxismo e ao abandono do seu verdadeiro método, defeitos alicerçados, sobretudo, num uso seletivo e equivocado de trechos de Friedrich Engels. Hook reconhecia aí, no Para a Compreensão, uma convergência de sua própria leitura com aquela do Lukács de História e Consciência de Classe, em especial no capítulo “O que é o Marxismo Ortodoxo?”, embora deplorasse a vinculação demasiado estreita de Marx com o hegelianismo defendida pelo pensador húngaro. Mas, acima de tudo, no seu livro, Hook realçava sua proximidade com Karl Korsch, que teria, ele sim, assumido integralmente o “eixo prático-histórico do pensamento de Marx”.[31] Finalmente, a preservação do verdadeiro método revolucionário de Marx estaria, para Hook, em Rosa Luxemburgo e Vladmir Lênin, com suas posições pela auto-emancipação da classe trabalhadora, pela tomada revolucionária do poder político, como objetivo do movimento socialista, e pela oposição sem meias ao imperialismo e à guerra. Entre os dois, Hook ficava com Lênin - como já sabemos, não com seu Materialismo e Empirio-Criticismo, mas com a ênfase na prática revolucionária de O que Fazer?, que tornaria Lênin, para ele, o único intérprete fiel de Marx, no seu tempo.

Segundo o livro de Hook, o que parecia contraditório no pensamento e na obra de Marx, e dava lugar a diferentes leituras pobres e estéreis, resultava dos contextos polêmicos diversos em que o autor do Capital escrevera, voltado para a refutação de diferentes doutrinas. Ademais, não se deveria buscar em Marx uma lei absoluta ou uma ciência pura: “A ciência social é uma ciência de classe; e o que Marx quer dizer por ciência não é o que a palavra significa hoje, mas a crítica baseada em tendências observáveis do desenvolvimento social”. O marxismo, assim, não seria nem ciência nem mito, mas um método realista de ação social. Seu núcleo estaria no método dialético, que tem as seguintes características essenciais: “1) uma base histórica e material, em distinção da abstração idealista de Hegel; 2) a insistência em uma interconexão cultural sem um princípio explicativo único; 3) a admissão da inter-relação de causa e efeito, de modo que a consciência não resulta ser o simples efeito, nem o mundo externo meramente a causa; 4) a compreensão de que a mudança social ocorre através de uma combinação de condições sociais, necessidades sentidas e ação”.[32]

O trabalho de Sidney Hook teve um impacto considerável e suscitou vários elogios, inclusive de Bertrand Russell. Entretanto, houve quem, junto com elogios, entendesse que, “através do uso de termos caracteristicamente pragmatistas, com todas as suas implicações técnicas, Dr. Hook se convence de que Marx foi uma espécie de Dewey esquerdista e revolucionário”, quando na verdade tratar-se-ia de duas filosofias opostas: “O ‘instrumentalismo’ marxiano não tem nada da adoração do empirismo dos pragmatistas”; ele “é calculado para fazer avançar a tática revolucionária no interior de uma lógica social estritamente a priori”. De outro lado, no que diz respeito às lideranças comunistas do Comintern, apesar de lhes agradar a apreciação favorável sobre Lênin, e apesar de Hook não polemizar com a linha oficial do partido nem criticar a realidade soviética, elas absolutamente não apreciaram a heterodoxia do Para a Compreensão de Karl Marx.[33]

5. O Marxismo Pragmatista de Hook no Confronto com Trotsky, Max Eastman e o Liberalismo.

Como dissemos, em 1933, Sidney Hook, que já se afastava do PC, passou a desenvolver relações amistosas com Trotsky. O que, entretanto, não impediu que os dois viessem a divergir abertamente, e a debater, numa rápida troca de opiniões, as posições pouco ortodoxas de Hook. Não exatamente aquelas expressas no Para a Compreensão de Karl Marx, que Trotsky não teve tempo de ler, mas no artigo “Marxismo: Dogma ou Método?”, que Hook tomara a iniciativa de lhe enviar. Diante das posições aí expressas, Trotsky achou necessário contrapor que “o marxismo não é um dogma, mas não é apenas um método, é também uma doutrina”. Se, para Hook, o marxismo não era “nem dogma, nem mito, nem ciência objetiva, mas [apenas] um método realista de ação classista”, para Trotsky o marxismo podia ser chamado de realista justamente por basear-se “no verdadeiro conhecimento dos processos objetivos”, e, por isso mesmo, era, sim, uma ciência.

Não obstante essa pendência com Trotsky, o grande e acirrado debate que Hook teve após a publicação de sua interpretação do pensamento de Marx não foi com o revolucionário e teórico russo, mas com Max Eastman, numa polêmica que prolongava uma escaramuça anterior, havida entre os dois, em 1927-28. Mais velho do que Hook e igualmente socialista e revolucionário (naquela época), e também ex-aluno de Dewey, Eastman era, desde 1912, o editor do jornal independente As Massas, porta-voz de uma esquerda intelectual e literária, e visitara a União soviética de 1922 a 1924, tendo em seguida denunciado sua “degeneração burocrática”. Considerava-se marxista, mesmo rejeitando aspectos centrais do pensamento de Marx, como a dialética, e tomando o teórico revolucionário alemão como um antecessor de Sigmund Freud e da psicanálise. Por outro lado, embora seu perfil eclético e mais inclinado para as artes e para uma vida boêmia contrastasse com o de Hook, ambos consideravam-se, por igual, discípulos de John Dewey, e inclinavam-se para um pensamento social que desse abrigo à “inovação” e à “experimentação”.

Diante da crítica de Max Eastman, de que a filosofia dialética de Hegel era “um resíduo do absolutismo prussiano”, e que sua herança levava os marxistas a tratarem a política “como uma religião”, Hook alegava que o marxismo não era um dogma, mas “um amplíssimo juízo prático no sentido deweyiano”, cuja verdade ou falsidade era uma questão experimental. Enquanto Eastman era freudiano e dizia que Marx antecipara Freud, para Hook Marx não tinha nenhum parentesco com a doutrina “especulativa” e “anticientífica” do pai da psicanálise.[34] Eastman dizia-se antimetafísico, enquanto que, para Hook, “rejeitando a metafísica do marxismo, Eastman se comprometia com uma posição metafísica particular, ainda que tal posição possa estar confusa em sua mente”. E, mesmo concordando com seu adversário quanto a Hegel, Hook argumentava que Marx aproveitara o método dialético despojando-o de seus aspectos místicos e especulativos hegelianos, quando então revelaria afinidades com o pragmatismo, naturalista, de Dewey: “A fluidez da coisa e do fato, e o cambiante contexto de julgamento representam o coração da dialética, e não os termos antiquados com que Hegel revestia a ideia”.[35]

Depois disso, em 1933, Eastman publicou uma resenha do Para a Compreensão de Karl Marx, com o provocativo subtítulo “O sonho de Sidney Hook com o que Marx poderia ter dito se tivesse sido um aluno de John Dewey”. Aqui, novamente, seu ponto central era que o método dialético de Marx, por mais que fosse pintado como científico, era místico e enganoso. Era preciso ver no marxismo um pensamento orientado para um propósito, e distinguir suas definições de fato de seus objetivos e de seu método de ação, para, desse modo, pôr fim a uma cantilena baseada em nossos desejos, que, ainda por cima, queria-se passar por ciência. Hook, dizia Eastman, recusava-se a tomar o marxismo “dessa maneira científica e, portanto, filosoficamente cética”. E acrescentava: “Ele insiste em manter o marxismo como uma filosofia, mas pensa identificar essa filosofia substancialmente com ‘a metafísica do pragmatismo,’ em que ele acredita”.[36]

A resposta de Hook dirigiu-se, em primeiro lugar, ao entendimento de Eastman de que Marx propunha um determinismo econômico em contradição com seu ativismo político: “O problema é dar conta do caráter condicionante do meio econômico, e do caráter ativo da consciência de classe que transforma uma determinada probabilidade em uma necessidade histórica”. A solução para o problema estava apenas numa determinada filosofia, o materialismo dialético, “tal como pode ser encontrado num estudo crítico e renovado dos escritos de Marx”. Além disso, segundo Hook, o conhecimento marxista válido para Eastman – preso a uma concepção elitista de ciência, distinta da idéia de “investigação democrática” –
não seria nem pragmático nem cético, mas tecnocrático, dando lugar a um entendimento da revolução como “engenharia social” dirigida por uma elite científica dissociada das massas. Finalmente, em 1934, para encerrar toda essa discussão, Eastman desafiou Hook para um debate público, que teria John Dewey como moderador. O debate não chegou a se realizar; Dewey recusou sua participação, respondendo humildemente que conhecia pouco de Marx e que, talvez por isso, via razões nas interpretações de ambos os contendores.[37]

Ainda em 1934, no entanto, Sidney Hook enfrentou uma oposição de outra natureza. Naquele ano, o Modern Monthly, periódico socialista independente que já abrigara os debates de Eastman e Hook, publicou ensaios dos filósofos Bertrand Russell, Morris Cohen e John Dewey, respondendo à questão “Por que não sou um comunista”, ensaios cujo fio comum era basicamente que “o comunismo desprezava os valores do liberalismo”. A resposta de Dewey, além de fazer restrições aos métodos dos comunistas, como pouco éticos, criticava o materialismo histórico como “monista” (por sustentar em última instância uma causalidade única, aquela material e econômica), e como apegado à ideia de que a sociedade, no seu desenvolvimento, devia atravessar um conjunto mais ou menos fico de estágios. De sua parte, Cohen defendia que o individualismo e o comunismo eram, tomados isoladamente, apenas verdades unilaterais e princípios insuficientes. Na sua réplica, Hook alegou que os três filósofos liberais não ofereciam uma alternativa realista à luta revolucionária pelo socialismo, já que a colaboração de classes jamais fizera nada pela segurança, pela democracia e pela paz. Ademais, tomar as regras da democracia, na sociedade do lucro, “como limites fixos” para a luta por uma sociedade “verdadeiramente humana”, seria o mesmo que eternizar “a ditadura capitalista sobre as vidas das pessoas.” Já os marxistas não se prenderiam a uma equivocada não-violência e a um fetichismo da legalidade, embora também rejeitassem golpes de estado, que não dotavam de poder a maioria dos trabalhadores.

Por outro lado, Hook tratava de esclarecer que, no seu entendimento, o liberalismo não significava apenas o laissez-faire econômico e social, mas também os valores da livre investigação, que lhe eram tão caros. No século vinte, a burguesia abrira mão desses últimos (como no caso do fascismo), e o capitalismo tornara-se em verdade um impedimento para os valores liberais do livre pensamento, da livre indagação e discussão. Nessas circunstâncias, o reformismo, o compromisso e a colaboração de classes, não seriam – de um ponto de vista pragmatista - uma estratégia satisfatória. Sobre a filosofia educacional de Dewey, “na qual seu pensamento culmina”, Hook concluía que ela, “antes de poder sequer ser tentada, requer obviamente, como uma precondição, a existência de uma sociedade sem classes”, sem o que “permanece um ideal abstrato”. Por fim, a ascensão do fascismo, na Alemanha e na Itália, e a ameaça de guerra interimperialista eram a mais forte justificativa prática para o socialismo revolucionário; sem que isso quisesse dizer que, para atingi-lo, os comunistas estivessem dispostos a “martirizar um povo inteiro, como fizeram os fascistas”, ou a cometer barbaridades contra vítimas inocentes.[38]

A publicação, por John Dewey, de Liberalismo e Ação Social, em 1935, contribuiu para influenciar o entendimento de Hook acerca do assunto liberalismo versus. marxismo, levando-o à idéia de que a política socialista era perfeitamente comensurável com os valores liberais. O liberalismo, enquanto distinto do laissez-faire econômico, seria “uma filosofia social e, em última análise, ética”, baseada em noções como o valor da pessoa, o uso da razão, a liberdade de investigação, a liberdade social, a democracia e a “caridade espiritual”: “O socialismo, como um sistema econômico, simplesmente estende a esfera dentro da qual o liberalismo como uma filosofia social pode operar”. Muitos anos depois, Hook recordaria em outros termos o confronto com aqueles filósofos democráticos, progressistas, não-comunistas: “Nos grandes debates do começo dos anos 30, aqueles que eram criticados como apóstolos de um liberalismo sem nervos e sem sangue – Dewey, Russell, Morris Cohen e outros – revelaram-se corretos acerca da viabilidade do processo democrático para fazer frente ao desafio da depressão, sem violência ou fascismo”.[39] Mas não era assim que Hook pensava em 1934.[40]

Depois do Para a Compreensão de Karl Marx, seu outro trabalho, segundo em importância, sobre Marx, foi o livro De Hegel a Marx. Estudos sobre o Desenvolvimento Intelectual de Karl Marx, de 1936, onde, de novo, praticamente não menciona John Dewey. Nessa obra, depois de tratar das relações de oposição e continuidade entre Hegel e Marx, e da diferença de suas respectivas concepções de dialética, Hook lida com os antecessores e rivais de Marx no pensamento pós-hegeliano: David Strauss, Bruno Bauer, Arnold Ruge, Max Stirner, Moses Hess e Feuerbach.[41] Na opinião de Christopher Phelps, Hook aí “conseguiu explicar a relação de Marx com Hegel sem fazer de Marx um hegeliano, como Georg Lukács e muitos outros fizeram”. O próprio Hook, no De Hegel a Marx, diz que Lukács fez justiça “ao aspecto dialético do pensamento de Marx às custas de seu naturalismo”.[42] Em síntese, como a respeito de outros trabalhos seus, o que se pode dizer é que, nesse livro, Hook – contra tendências da esquerda no seu tempo – trata de realçar o lado ativo, revolucionário e filosófico do pensamento de Marx. Posso acrescentar que ele toma demasiado literalmente, para não dizer acriticamente, a caracterização que Marx faz do pensamento de seus rivais na esquerda hegeliana. O que se explicaria por sua disposição, por aquela época, para uma aceitação integral do pensamento de Marx, nos termos de sua leitura humanista pragmatista. Como discípulo de Dewey, Hook poderia ter valorizado o caráter anti-substancialista e anti-essencialista dos desenvolvimentos anti-metafísicos daqueles rivais de Marx: Bruno Bauer e, especialmente, Max Stirner.[43] O que certamente teria deixado suas concepções bem mais próximas do neopragmatismo de esquerda de Richard Rorty, dos nossos dias.

Ao contrário do Para a Compreensão de Karl Marx, que Hook recusou-se mais tarde a ver novamente publicado, o livro de 1936 foi reeditado em 1962. O conjunto do texto não é tão central para o nosso assunto quanto o livro de 1933, embora Hook entendesse que a Auseinandersetzung de Marx com os jovens hegelianos, nos anos 1840, correspondia em grande medida ao debate filosófico de seu próprio tempo, no século XX. E embora aí suas considerações, particularmente sobre Feuerbach e sobre as “Teses ad Feuerbach”, expressassem com clareza seu ponto de vista de sempre: humanista, naturalista, secular e prático-ativo, oposto ao socialismo abstratamente normativo, de inspiração feuerbachiana, e à separação do socialismo da atividade revolucionária da classe trabalhadora. A nova introdução à edição de 1962, no entanto, é muito relevante para nós, enquanto, tanto tempo depois, já na década de 1960, apresenta a posição hookiana de que o “naturalismo experimental” é uma continuação do que havia de mais sólido e fecundo na visão filosófica de Marx. Já tendo aberto mão de se dizer marxista, Hook reitera ainda assim que o que Marx entendia por comunismo é muito diferente do “sistema de terror e despotismo político” existente na União Soviética. Marx ainda era para ele um socialista democrático, um humanista secular e um combatente pela liberdade humana. Ao mesmo tempo, Hook propõe que a existência do “Leviatã comunista”, a União Soviética, desafiava a validade da teoria do materialismo histórico, que não teria antecipado a possibilidade dessas novas “servidões industriais”, nem tampouco estaria em condições de explicá-las. Mesmo assim, segundo ele, haveria razões de fidelidade à verdade - além de considerações políticas - para que o legado de Marx não fosse abandonado aos “inimigos da liberdade humana”. Levantando ainda o ideal da desalienação dos homens numa sociedade onde os mesmos se pudessem livremente auto-determinar, Hook não só creditava a Marx ter percebido o caráter histórico e social da “natureza” dos homens do mesmo modo que Dewey, mas o “ter ido mais longe do que este” ao sustentar que até os impulsos biológicos do homem são transformáveis pela cultura.[44]

6. O Destino do Projeto Marxista-Pragmatista de Sidney Hook.

Logo nos anos seguintes à primeira publicação do De Hegel a Marx, Hook ainda manteve uma posição socialista, anti-stalinista, e um engajamento correspondente. Foi em 1937 que ele contribuiu para a participação de Dewey na comissão que investigou as acusações soviéticas contra Trotsky. No entanto, defendia cada vez menos Lênin e a Revolução Russa, achando que tanto o autor do O Que Fazer quanto Trotsky nunca tiveram um interesse verdadeiro pela democracia. Por outro lado, continuava sustentando que Marx não tinha nada a ver com o que resultou ser a experiência soviética, com Stálin, e prosseguia defendendo uma complementação necessária de marxismo e pragmatismo deweyiano. De todo modo, a discussão crítica sobre a moral dos comunistas na prática política, a famosa querela sobre meios e fins, foi-lhe afastando ainda mais, a ele e a outros intelectuais estadunidenses de esquerda, da simpatia pelo bolchevismo e pela revolução. No fim de 1938, quando se deu um acirrado debate entre Dewey e Trotsky, Hook – como já dissemos - acabou por alinhar-se com seu mestre e com sua posição social democrata. A partir daí, abraçou centralmente uma crítica do “totalitarismo”, categoria que aplicava por igual ao fascismo e ao comunismo. E passou a ocupar-se, sobretudo, da questão da falta de liberdade na URSS (incluindo a condição alienada do proletariado naquele país), em comparação com as “democracias imperfeitas” do Ocidente. A URSS não era mais considerada um aliado confiável contra o fascismo, além de – segundo ele – ser, ela própria, anti-semita, o que para ele poderia importar também pessoalmente. Assim, as instituições ocidentais e a democracia burguesa, vigentes no capitalismo, tornaram-se a alternativa realista aos totalitarismos fascista e soviético,com o que Hook tratou de empenhar-se mais na garantia dessa democracia do que na luta pelo socialismo. Uma vez aproximados comunismo e nazismo, parece que não haveria mais nada a fazer especificamente à esquerda, e Hook fez do antitotalitarismo e da liberdade cultural, científica e de ensino, suas grandes bandeiras, alegando que as lutas pelas liberdades democráticas envolviam inevitavelmente lutas por “condições de vida progressivamente superiores”. [45]

Em 1940, Hook publicou Razão, Mitos Sociais e Democracia, justamente em oposição ao “totalitarismo” e à ideia de uma política revolucionária, embora ainda se autodenominando socialista democrático.[46] Por essa época, abrira mão da filiação ao marxismo, o que não excluía que continuasse, como pudemos ver pelo texto de 1962, um admirador de Marx como expoente de um pensamento humanista naturalista e socialista democrático. Stalin era agora considerado por ele como uma decorrência do marxismo como doutrina histórica, mas não uma decorrência de Marx bem entendido. Mesmo Lênin, no seu novo entendimento, teria degradado Marx, abandonando seu humanismo e seu racionalismo. O socialismo continuava valendo por sua crítica ao capitalismo, mas os socialistas deveriam primeiro provar que o socialismo era realmente algo melhor, o que já não podia ser considerado óbvio. Toda essa compreensão levou Hook a conceber John Dewey, naquela obra, como “a mais notável figura, no mundo, hoje, em quem os melhores elementos do pensamento de Marx estão presentes” - tais elementos sendo, sobretudo, o racionalismo, o humanismo e os valores da ciência.

Em nossos dias, Richard Rorty, em Filosofia e Esperança Social (1999), celebra a contribuição de Hook (daquele pós-radical, por suposto) e Dewey para evitar que intelectuais norte-americanos se tornassem marxistas, como se tornaram na França e na América Latina.[47] O que, em se tratando de Rorty, supõe que os dois o fizeram sem que a alternativa fosse o conservadorismo. Contudo, foi aparentemente aí, ao conservadorismo, que Hook chegou ao longo dos anos. Mesmo que até o fim seu humanismo secular assustasse a direita religiosa estadunidense, como no caso de sua defesa do “suicídio voluntário” para pacientes terminais. Mas, se seu marxismo chegou a “evaporar-se”, também seu pragmatismo – pelo menos aquele de inspiração deweyiana – pode ter virado uma “pálida sombra” do que antes havia sido.[48] Na opinião de Christopher Phelps, foi por causa de seu pragmatismo que “Hook foi levado a enfatizar os elementos revolucionários de ação, experimento e democracia em Marx”. Agora seu pensamento teria passado a ter “pouco em comum com o pensamento experimental e radicalmente democrático de John Dewey”. De fato, enquanto Dewey permaneceu até o fim da vida tão reformista e “democrático radical” como dantes, seu discípulo agora se esforçava para envolver o mestre na sua cruzada liberal contra o “totalitarismo” e se debatia com a hesitação desse em endossar seu investimento militante na Guerra Fria. Para Phelps, Hook, ao fim e ao cabo, teria perdido, ao afastar-se igualmente do marxismo e do pragmatismo, passando a um formalismo liberal que reduzia a democracia meramente a eleições e liberdades civis.[49] Talvez por isso Richard Rorty, mesmo na sua moderação política, refira-se em dado momento a Sidney Hook como “um filósofo que esqueceu mais sobre Dewey do que eu jamais aprenderei”.[50]

Não obstante, há quem veja no percurso inteiro de Hook uma grande coerência, numa linha racionalista, secular e liberal.[51] De fato, sua convergência com o ponto de vista universalista liberal clássico está em linha com sua permanente louvação da ciência e do racionalismo, bem como com sua defesa irrestrita do Ocidente e do Esclarecimento em geral.[52] O próprio marxismo hookiano sempre fora, antes de tudo, um humanismo secular. E é possível que sua preferência pelo trotskismo não tenha feito muito para deter sua inclinação para o que alguns considerariam como um racionalismo abstrato, mesmo que supostamente experimentalista. Chama a atenção ainda o fato de que a visão política de Hook aparentemente não se tenha aberto a questões de gênero, raça, diversidade cultural e meio ambiente, que assomaram na vida cultural e política desde os anos 60. Ao contrário, ele ter-se-ia voltado ativamente contra influências “multiculturalistas”, contra “anti-ocidentalismos”, contra acentos “terceiro-mundistas”, “ações afirmativas”, e bandeiras do “politicamente correto”, na vida acadêmica norte-americana. Para além de sua velha rejeição a Sigmund Freud, Hook acentuou seu ataque ao “irracionalismo” ou “romantismo anti-intelectual” do pensamento e da cultura contemporâneos, de um modo que chega a lembrar o sectarismo de Lukács no Assalto à Razão. Não só contra o alegado irracionalismo de desenvolvimentos no campo da religião e da teologia, mas também no existencialismo e em Heidegger, e, de um modo geral, na chamada “filosofia continental” (a filosofia contemporânea mais caracteristicamente européia). Seu otimismo iluminista contrasta ademais com o marxismo ocidental da “escola de Frankfurt”, seu contemporâneo, abrigado, a partir da Segunda Guerra, nos próprios Estados Unidos.[53] Mais do que isso, Hook foi totalmente infenso a tudo o que hoje se chamaria de crítica da modernidade e de pensamento pós-moderno.

A essa altura, poderíamos voltar aos indícios de que Hook, no plano filosófico, ao menos na sua maturidade, filia o seu pragmatismo destacadamente a Charles Peirce (junto com Dewey), isto é, à sua vertente “lógica e científica”, antes que a William James.[54] Além do que, ele atesta, até seus últimos escritos, uma continuada admiração (em contraste com o desapreço de Dewey) pelo empirista lógico e anti-pragmatista Bertrand Russell, admitindo ter sido mesmo russelliano “quando estudante”.[55] Na mesma linha de perceber um traço “positivista lógico” como constante no pensamento de Hook, traço que eventualmente minaria o impulso crítico de seu pensamento político, social e histórico, vimos já na nossa introdução que o pragmatista britânico Ferdnand Schiller, numa resenha de A Metafísica do Pragmatismo, entre outras coisas critica o livro como um esforço para combinar Morris Cohen e Dewey.[56] O próprio Christopher Phelps confirma a sobrevivência da influência de Cohen na fase pragmatista de Hook, e acha que A Metafísica do Pragmatismo representa um rompimento apenas parcial com seu primeiro mestre, num passo que preserva sua crítica naturalista do idealismo.[57] Enfim, não se trata aqui de imputar inclinação conservadora ou reacionária a uma posição filosófica, digamos, positivista – o que de resto não encontraria confirmação histórica (basta ver as biografias de Bertrand Russell ou de Rudolf Carnap, por exemplo). Nem se trata de oferecer aligeiradamente razões de natureza teórica para a virada nas concepções de Hook a partir, sobretudo, de 1940 - o que foge ao nosso interesse e aos propósitos deste texto. Em vez disso, trata-se de, pelo menos por ora, manter em aberto (para além de qualquer juízo simplista) a apreciação do interesse e do alcance do projeto – e do caso – hookiano, de aproximação de pragmatismo e marxismo, ou, quando menos, de uma crítica – digamos, progressista - do segundo pelo primeiro.

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