Contato, Comentários, Sugestões
jose_crisostomo@uol.com.br
José Crisóstomo de Souza
Deptº, Filosofia FFCH/UFBA
Estrada de S. Lázaro, 197
40210-730 Salvador, Bahia, Brasil
webdesign: Leall

 

 

Hegel e o Fim da História... no Liberalismo

José Crisóstomo de Souza

A idéia de que a história possa ter chegado a um fim parecerá sem dúvida intrigante, salvo para quem esteja a par de certas discussões filosóficas que se passam num âmbito mais restrito. Enquanto em outros terrenos sempre se espera que toda história (ou estória) se acabe, a maioria de nós se acostumou a imaginar que a história da humanidade deve prosseguir indefinidamente, como tem sucedido até aqui.
A menos que se esteja falando do “fim do mundo”, com que tantas pessoas, cada vez mais alarmadas, gostam hoje de especular, mesmo depois de o holocausto nuclear ter-se tornado menos provável. Afinal de contas, a idéia de uma “consumação dos tempos” faz parte da concepção religiosa dominante no Ocidente (o cristianismo) – embora atualmente um tanto removida do primeiro plano da doutrina. Mas, de qualquer modo e indubitavelmente, nada disso parece ter-se passado, bastando olhar pela janela, ou pela tevê, para constatar que o mundo continua aí, tal e qual, e que, com a guerra no Iraque e tudo mais, nada de menos trivial parece ter ocorrido. Para nós, apenas uma ameaça de crise depois da outra: nem fim do mundo, nem consumação dos tempos.
E, contudo, o debate sobre se a história acabou ameaçou tornar-se a discussão do fim do século (ou milênio), até no Brasil, ao menos, como advertiria Caetano Veloso, para o suplemento cultural dos nossos maiores jornais diários. Pois, com efeito, aquele que há alguns anos anunciou aos meios de comunicação o fim da história, o jovem cientista político norte-americano Francis Fukuyama, chegou a visitar o Brasil para discutir precisamente esse tema (e temas menos especulativos, mas que têm esse como pano de fundo), a convite da Fundação Getúlio Vargas e sob o patrocínio de 30 grandes empresas. Deu até no Jornal Nacional. Isso depois de seu famoso artigo, “O Fim da História”, ter sido traduzido, publicado e debatido nos quatro cantos do mundo – literalmente.
Muito simplificadamente, a tese de Fukuyama, para o leitor que ainda não sabe, é que, com a derrocada do socialismo dominante em meia banda do mundo (algo de “menos trivial” de fato aconteceu em nossos dias!), a democracia liberal e a economia de mercado, malgrado todas as suas imperfeições, não têm mais pela frente nenhum rival “sério”, real ou concebível, candidato a tomar seu lugar, devendo enfrentar agora somente resistências periféricas e não desafios globais. No que diz respeito à organização da sociedade, não surgirá mais uma “outra coisa”, sugere Fukuyama. Com o que se acabaram os grandes embates ideológicos e as grandes revoluções (ao menos para o mundo que conta, o dos países capazes de dar um rumo à história), e os problemas agora serão essencialmente “técnicos”. Depois de escalada a escarpa, caminhamos ainda, mas no platô, no plano, sem maiores sobressaltos. “E viveram (ainda) felizes para sempre”, diz o fim da narrativa, mostrando que a vida continua, mas que a história “interessante” mesmo já acabou. Quanto aos “felizes”, Fukuyama diria justamente isso, porém referindo-se a uma satisfação ameaçada pela monotonia e pelo tédio – como, se pensarmos bem, a satisfação do “reino feliz”, depois de dado por vencido o dragão ou para sempre derrotado o rei malvado.
Francis Fukuyama refere-se expressamente ao filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), à sua filosofia da história, como a matriz de suas opiniões sobre nosso tempo. Hegel teria oferecido a “articulação conceitual mais ampla” para a sua compreensão de que estaríamos testemunhando agora, “não apenas o fim da guerra fria ou a passagem de um período particular da história do pós-guerra, mas o fim da história como tal (...), a universalização da democracia liberal ocidental como a forma final de governo entre os homens”. Com efeito, o pensador alemão teria entendido que a derrota das forças prussianas, diante de Napoleão, representava, já em 1806, a vitória definitiva (ainda que um tanto embrionária) dos ideais da Revolução Francesa. Os quais consumavam a idéia de Liberdade, perseguida pela humanidade, tortuosamente e às apalpadelas, através de toda história, como seu objetivo final – até virar estátua na entrada do porto de Nova Iorque. Com relação a isso, Marx – para quem essa liberdade era muito enganosa – apareceria,m então, nos nossos dias, apenas como um demorado desvio de mais de um século... que termina na Praça da Paz Celestial, em Pequim.
É sem dúvida muito interessante, e mesmo divertido, que Hegel, graças a Fukuyama, que é um dos diretores de planejamento do Departamento de Estado norte-americano, além de consultor da Rand Corporation, tenha-se tornado a partir daí uma “celebridade de Washington”, reconhecido como um filósofo genial (ao lado de Kant) nos Estados Unidos, e que sua filosofia da história tenha virado objeto de aceso debate nos meios de comunicação de massa daquele país. Só por isso, já devemos nos congratular com Fukuyama. Hegel é mesmo um pensador monumental, mas a grande dificuldade de seu pensamento sempre deu motivo a que fosse de um modo geral repudiado nos círculos do pensamento anglo-saxônico, marcado por uma ênfase empirista, analítica e pragmática, francamente oposta ao caráter sintético-totalizante, além de especulativo, do hegelianismo. Talvez, afinal de contas, não seja tão ilegítimo interpretar a história de forma elaborada, em grandes linhas e filosoficamente... se tal interpretação coloca nossos ideais vantajosamente como seu coroamento – pensarão os novos cultores de Hegel. E sua (de Hegel) proximidade do pensamento de Marx, com o qual partilha o suspeito método dialético, além de outros cacoetes conceituais, talvez não deva ser motivo para nos mantermos ignorantes com relação a ele – como fazem, por exemplo, alguns nietzscheanos. Desse modo, a América (do Norte) vai finalmente atingindo uma certa maturidade espiritual e filosófica...
É admirável que Francis Fukuyama tenha sido assim capaz de popularizar – tornando menos esotérico e mais “aplicado” – um assunto como esse, levado aos meios de comunicação e à opinião publica do seu país. Isso também é uma característica, muito democrática, da cultura anglo-saxônica - o outro lado do que falamos antes. Além disso, é no mínimo envaidecedor, para quem é do ramo, ver a filosofia assim reconhecida e valorizada, como fornecedora de conceitos mais gerais para a compreensão do nosso tempo e até municiadora da definição de estratégias práticas – junto a governos, empresas, políticos, intelectuais, e ao público em geral. Por outro lado, no entanto, creio que tudo seria ainda melhor se de fato Fukuyama entendesse mais do que está falando – quero dizer, de Hegel e de filosofia. Não que eu pretenda agora devolver a bola para o campo restrito dos filósofos profissionais – freqüentemente chatos, de mal com a prática e distanciados da vida – ou defender a pureza de um “verdadeiro” hegelianismo. De maneira alguma. Mas é que, se Hegel, como também outros filósofos, constitui um verdadeiro “arsenal” de pensamentos muito elaborados, matizados e ricos, e por isso interessantes para uma compreensão mais profunda da realidade e da política, da cultura ou da história, tanto mais benefício colheremos do seu uso quanto melhor conhecermos e com mais competência manejarmos essas “armas” tão sofisticadas.
Com efeito, embora fale muito no grande pensador alemão, Fukuyama cita freqüentemente apenas Alexandre Kojève, a cuja interpretação de Hegel abertamente se filia, no que diz respeito ao tema do fim da história. O filósofo russo-francês, que promoveu com sucesso o hegelianismo na França de antes da Segunda Guerra (através de seus célebres cursos sobre a Fenomenologia do Espírito, que influenciaram alguns dos mais conhecidos pensadores franceses que lhe sucederam), foi, entretanto, um interprete tanto mais genial quanto menos literal, inventor de um hegelianismo seu, crítico e existencialistizado. Sua leitura de modo algum pode dispensar a investigação direta da obra de Hegel, ao menos para quem quiser falar em seu nome e aproveitar-se melhor dele. É bom que o público brasileiro saiba, por exemplo, que, numa conferência realizada pela Universidade de Virgínia, sobre “Fukuyama e o Fim da História”, estudiosos americanos de Hegel (Philip Grier à frente) conseguiram questionar o hegelianismo da estrela do evento, especialmente em nome das resistências explícitas do pensador alemão – enfaticamente reiteradas no prefácio da sua Filosofia do Direito – quanto a levantar prognósticos sobre o futuro.
Independente disso e resumidamente, posso afirmar que Hegel não foi exatamente um pensador liberal (à lá Locke e contratualistas), para quem o Estado devesse representar um instrumento a serviço dos indivíduos, a serviço da chamada sociedade civil burguesa (bürgerlische Gesellschaft), constituída pelos agentes econômicos e sociais em competição pelos seus fins particulares; embora ele de modo algum pretendesse, como Marx, sua supressão. Para Hegel, o Estado, como totalidade ética, é fim para e através do qual vive o cidadão – que nele, e apenas nele, atinge sua verdadeira liberdade. Não só isso, o Estado racional, de liberdade, que coroaria o desenvolvimento da história, é, para Hegel, sem dúvida, um Estado constitucional, porém mais exatamente uma monarquia constitucional, conciliada com muito do que a Revolução Francesa renegou globalmente como próprio do “Ancien Régime”. Bem diferente, portanto, da democracia liberal, idealizada, de nossos dias.
O que é verdade, entretanto, é que Hegel, apesar de tudo, procura assumir decididamente, como uma conquista irrevogável da Modernidade, a afirmação das prerrogativas da subjetividade – a “idéia ocidental” por excelência, introduzida pelo Cristianismo, que ele, otimista, se esforça por conciliar com o que chama de universalidade substancial do Estado, enquanto procura criticar e superar seus reflexos no “individualismo” do mundo moderno: a presunção da opinião e do interesse privado de se erigirem como princípio e fundamento. “O universal” (o Estado), diz Hegel na Filosofia do Direito, “não prevalece ou se completa senão juntamente com os interesses particulares e através da cooperação do saber e do querer particulares” (§ 260). Eu estaria disposto a admitir que de fato Marx, ao contrário de seu mestre, encarou superficialmente essa questão, e pode talvez ser por esse ângulo considerado como um arrodeio de século e meio. Que pode ter contribuído para arrancar, por uma “astúcia da razão” (como diria Hegel), avanços na “igualdade” da democracia liberal, promovendo assim, até contra ela, sua própria realização. Em todo caso, me parece, a subjetividade moderna, particular, veio para ficar - por muuuuito tempo. Os discursos edificantes sobre a democracia como valor universal, que não datam de hoje, dizem algo parecido. E de há muito as liberdades “formais” deixaram de ser consideradas simplesmente como fictícias – apesar de seu aspecto exasperantemente enganoso.
A posição de Fukuyama é sem dúvida interessada, e todos sabem para quem ele trabalha. O título da revista onde ele publicou o breve artigo que lhe deu súbita notoriedade é, aliás, National Interest – interesse que pode coincidir ou não com o dos outros. Entre as conclusões que tira de sua “teoria”, está a proposta de substituir a ONU por uma estrutura formada a partir da OTAN (que associe justamente os países democráticos) – coisa que já despontou na prática e deu bons frutos (para uns) na Guerra no Golfo. As coisas, porém, talvez não sejam tão simples assim. A tese de Fukuyama, que integra e radicaliza a corrente conhecida nos Estados Unidos como “terminalismo” (a Guerra Fria acabou, as grandes guerras também, os autoritarismos definham, o mercado triunfou), promove um otimismo algo pacificador, que não agrada a armamentistas, como tampouco a liberais apenas em causa própria. Mesmo a concessão de cidadania, nos círculos de Washington, ao pensamento hegeliano e kojèviano não é pouca novidade. Mas, principalmente, a idéia de generalização, entre povos e países, de algumas liberdades essenciais e de certo bem-estar material que o mercado deveria garantir, parece envolver promessas e compromissos que seria bom ver realizados. Mesmo porque, se a história acabou e o além se desvaneceu no horizonte (tanto no tempo como fora dele), é hora de ver realizados ideais mais triviais e alegadamente mais realizáveis – no presente. Abre as asas, Liberdade! Mercado, abre a cornucópia!

VOLTA