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José Crisóstomo de Souza
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A FILOSOFIA COMO COISA CIVIL
(NUMA PERSPECTIVA HISTÓRICA AD-HOC)

José Crisóstomo de Souza

 

Agradecimentos:
Este texto é resultado da transcrição de uma conversa com estudantes de filosofia, e mantém o estilo coloquial, informal, de sua expressão oral. Depois da transcrição, e de uma reprodução em inglês, foi lido por um número de colegas e amigos do Brasil e do Exterior. Para começar, os colegas de departamento, a quem eu gostaria de agradecer como grupo. De outros departamentos de minha universidade (Universidade Federal da Bahia), os colegas Naomar Almeida (Saúde Coletiva) e Muniz Ferreira (História). Vários outros professores de filosofia Brasil afora, tais como Roberto Romano (Unicamp), Miroslav Milovic (UNB), Paulo Ghiraldelli e Ubirajara Rancan (Unesp-Marilia), e Jacques Sonneville (Uneb). Colegas estrangeiros como Jeremy Iggers (Universidade de Winsconsin), Floyd Merrell (Purdue) and David Lapoujade (Universidade de Paris). Além dos conhecidos filósofos contemporâneos Ernst Tugendhat (Universidade Livre de Berlim) e Richard Rorty (Universidade de Stanford), cuja generosa atenção e simplicidade agradeço. Finalmente, gostaria de declarar minha gratidão a dois amigos de fora da comunidade filosófica: o antropólogo Roberto Albergaria (UFBA), que avaliou o texto com seu olho pós-modernista, e o sociólogo e economista Sergio Silva (Unicamp), que, além de comentar o texto de seu agudo ponto de vista weberiano de esquerda, foi capaz de me mostrar, melhor do que eu próprio podia ver, o que essa minha arenga dizia – uma dádiva para quem quer que se expresse sobre alguma coisa. Não preciso dizer que a boa vontade de todos esses colegas, de ler e comentar esses apontamentos, bem como minha menção aos seus nomes aqui, de modo algum implica sua concordância com as opiniões neles expressas. Não obstante o fato de que seus comentários foram extremamente valiosos para mim, sou eu o único responsável pelo que o texto diz. Embora eu possa registrar, com satisfação, que Rorty, por exemplo, concluiu que “temos basicamente as mesmas opiniões sobre a história e a função social da filosofia”, e que Ernst Tugendhat que “temos opiniões semelhantes sobre o assunto”. A todos os mencionados aqui, e ainda outros que náo menfionei, meus sinceros agradecimentos. (2003)

§1
A FILOSOFIA COMO COISA CIVIL. DISCURSO, LOGOS, VERBO ENTRE NÓS

Para começar, quero sugerir que a filosofia é antes de tudo um discurso entre outros. Em segundo lugar, que se trata de um discurso de algum modo argumentativo, que procura oferecer razões e desenvolver noções. Em terceiro, que esse discurso aparentemente “tem a ver” com a Cidade, com um certo arranjo e funcionamento sociais, em termos de convivência e de realização humanas. Além disso, entendo que seu espírito, de um lado, é de investigação, busca e discussão; de outro (ou do mesmo), é também de invenção e imaginação. Vou contrapor isso a uma imagem da filosofia como “metafísica”, “escolástica” e “grã filosofia”, e ao que chamarei de ancien régime da filosofia. Por fim, depois de desenvolver historicamente essas noções e mais outras que lhes acompanhem (como “fôrma” e “arranjo”), quero chegar ao destino e ao perfil da filosofia no Brasil, que é o meu principal interesse aqui, e sobre o que tenho algumas opiniões. Vou lidar desde o começo com a filosofia como coisa histórica porque é um discurso que encontra aí, na história, a fonte da maior parte de suas representações. Ressalvado que não sou historiador, nem historiador da filosofia, esboçarei mesmo assim uma narrativa, com botas de sete léguas, como suporte para tecer opiniões e promover noções de filosofia, e oferecer uma apreciação de seu desenvolvimento (ou falta de desenvolvimento) entre nós. Nesses termos, estarei falando dela como atividade, de forma alguma tratando de dizer o que é a filosofia em sua “essência”, como numa extensa definição ou conceito. Sabemos que isso seria uma tarefa ingrata, cada grande filósofo (e há ainda os médios e os pequenos), cada corrente filosófica, cada período histórico da filosofia dando lugar a uma definição diferente e até parecendo representar um gênero diferente. Além disso, considerados certos precedentes notórios, poder-se-ia esperar que, do empenho para dizer o que é filosofia, resultasse algo de muito sublime ou inefável, ou de muito técnico e rigoroso, que eu não saberia fazer. Ao invés disso, como disse, invocarei alguns elementos históricos, e, em relação com eles, algumas representações da filosofia. Tudo isso de modo impressionista, coloquial, e até algumas vezes brincalhão, pois este texto resultou de uma apresentação oral, de tipo inteiramente informal.
O texto está divido em três seções: I- Excurso histórico (§§ 2-11), II- Fundo e perfil da filosofia no Brasil (§§12-23), e III- A filosofia entre nós como “coisa civil” (§§ 24-29). Quase todos os parágrafos têm títulos próprios, que antecipam o seu conteúdo. E o leitor pode preferir ir mais diretamente ao ponto (à questão da filosofia no Brasil), começando pelo §12 ou mesmo §18.

I - EXCURSO HISTÓRICO
§2
A FILOSOFIA COMO DISCURSO HUMANO SECULAR, SEM TRADIÇÃO E SEM AUTORIDADE.
Para mim, a filosofia é coisa de indivíduos humanos como nós, mesmo que de certa inteligência e passados por muita formação e exercício, além de dispostos a muito trabalho. Sem, entretanto, nenhum acesso especial à verdade, ainda que alguns francamente auto-iludidos em sua ambição de conhecimento ou pensamento. Mais do que parece, a filosofia é coisa de indivíduos de alguma forma associados, embora seja verdade que, diferente de outros grandes discursos, no caso da filosofia trata-se de discursos “assinados”, que têm como autor, em cada caso, um sujeito particular real, falando, digamos, por si mesmo. Para falar da filosofia em termos assim gerais, e pelo que nos interessa aqui, vale recordar – do jeito tradicional - que essa filosofia em parte sucede, no mundo mediterrâneo antigo, ao mito e à religião politeísta, grandes discursos encontrados “nas origens”, ao que parece, entre todos os povos e culturas. Em comparação com a mitologia e a religião, a filosofia aparece como um discurso meramente humano (apesar de elaborado ou pelo menos não-corriqueiro), “desencantado”, sem histórias, deuses ou figuras (embora, acho eu, não desprovido de imaginação e apenas na aparência não envolvendo narrativa). Nesse sentido pelo menos, a filosofia seria sempre “racionalista” e de algum modo separada ou contraposta à mera tradição e à crença, e ao hábito puro e simples. Como obra de uma outra coisa, da “razão”, ela seria sempre, e desde o começo, um Esclarecimento, um Iluminismo.
Na filosofia temos então homens de certo modo falando uns com os outros, por si mesmos (ainda que apelando a algo como a razão, com ou sem r maiúsculo), independentemente de qualquer experiência cujo acesso não seja em princípio dado a outros homens, como seria o caso de oráculos, revelações, êxtases, visões e destinos privilegiados (embora muita gente ainda hoje promova grandes e médios filósofos de sua predileção a tudo isso). Temos, aí, um discurso distintamente secular, distinto da crença religiosa e do misticismo, tanto quanto da convicção habitual e da tradição sem exame. Livre, portanto, de qualquer dessas duas autoridades: religião e tradição. E, mesmo que a filosofia tenha, por sua vez, procurado sustentar valores e verdades, tratar-se-ia, no seu caso, de convicções racionalmente justificadas (argumentadas, pelo menos), procedendo ela antes a um virar e revirar de idéias, capaz de desafiar, pelo menos em parte, as crenças e convicções costumeiras. No que a filosofia mostra, aliás, grande imaginação especulativa, como capacidade para renovar, alargar e enriquecer os horizontes humanos de entendimento das coisas.

§3
A FILOSOFIA COMO COISA GREGA, EUROPÉIA, OCIDENTAL.
Concebida nessa linha, a filosofia aparece, quanto à certidão de nascimento e à carteira de identidade, como coisa grega, como é grego o termo, em sua composição e criação. Não digo isso para destacar uma façanha européia (historicamente, alemães, franceses e ingleses cultos gostam de pensar nos gregos antigos como seus verdadeiros pais e pares no passado), mas antes determinando-a, à filosofia, como traço de uma cultura e coisa historicamente datada, isto é, coisa contingente e particular, mesmo que de vocação universal. Nada, portanto, que diga respeito a uma “essência humana”, pois afinal os homens mais viveram - e vivem - sem ela do que com ela, mais homens (em mais culturas e civilizações) e por mais tempo, embora hoje se possa dizer, creio eu, que algo da filosofia faz parte da “essência” do mundo moderno-ocidental e se generaliza com ele. Fora isso (e sem querer resolver aqui um grande problema histórico), para efeito de não exagerar demais na propriedade intelectual grego-européia da invenção da filosofia, isto é, no seu caráter de milagre grego, basta registrar que ela, não por acaso, despontou (na história que escolhemos) nos limites asiáticos do mundo grego em formação, na encruzilhada com os mundos egípcio e oriental. Nada lhe advindo, nesse sentido, e aí sim com certeza, das latitudes do norte, não mediterrâneas, de onde teriam provindo os proto-gregos. Para completar esse “teste de DNA”, basta lembrar que seu primeiro representante, Tales de Mileto, descendia dos viajantes e comerciantes fenícios, e, entre os filósofos antigos, não só ele.
Quanto à chamada “filosofia oriental”, para não deixar de menciona-la, a noção entraria aí meio que por extensão. Trata-se de um (ou mais de um) outro grande desenvolvimento de pensamento, coisa – até muito mais – excelente, mas por si um outro grande continente (mesmo com pontos de contato), uma outra grande tradição, também organizada por “escolas” e merecendo anos de estudo e uma comunidade de cultivo. Em todo caso, parece que essa filosofia oriental (ou o que nos chega como tal) só vira coisa mais propriamente civil depois de chegar no Ocidente (como, aliás, também o Dalai Lama), podendo então mostrar-se até coisa acadêmica (inclusive na Califórnia) e ser posta em diálogo com a tradição filosófica ocidental. Enfim, para representar uma filosofia civil, como quero aqui, não creio que seria o caso de falar agora das escolas da Pérsia ou da Índia – sobre as quais, em todo caso, e isso é o mais decisivo, sei quase nada.

§4
OS PRIMEIROS FILÓSOFOS COMO CONHECECEDORES TEÓRICOS, PRÁTICOS E POÉTICOS.
Aí, nas origens, entendo que os primeiros filósofos, além de desempenharem-se em alguns casos como eminentes e providenciais legisladores, e até, de outros modos, políticos, foram elaboradores das primeiras e embrionárias teorias gerais sobre (todas) as coisas, desenvolvendo notáveis explorações lógico-racionais e especulativas, e exibindo admiráveis pensamentos enigmáticos e profundamente poéticos, mesmo que afastados da mitológica fabulação. Também chegando a mostrar um pouco daqueles conhecimentos que permitem fazer demonstrações matemáticas, previsões efetivas quanto a fenômenos naturais e promover os chamados negócios humanos: conhecimentos científicos, geométricos, astronômicos, geográficos, políticos, éticos, retóricos, médicos, etc. Certamente isso é dizer muito pouco sobre os primeiros filósofos, e, como de seus discursos nos chegaram apenas fragmentos e de suas biografias pouca notícia, é mesmo possível que essa visão, além de tudo, esteja pouco fiel. Não mais infiel, porém, do que desinteressante, em comparação com as visões sublimes e profundas que deles nos ofereceram importantes filósofos contemporâneos, igualmente poéticos e enigmáticos, tantos séculos depois - com os quais, no entanto, não dá para competir.
De todo modo, eu não diria que era ainda uma imperfeição e um desvio da sua vocação que a filosofia encontrasse nesses começos (pré-socráticos) expressões não apenas agradável e poderosamente poéticas, mas também misteriosa e deliciosamente - para uns, para outros irritantemente - obscuras e oraculares, valorizadas pelos comentários e interpretações imaginosos de filósofos nossos contemporâneos. Nem deploraria taxativamente o perfil aristocrático ou sacerdotal ou simplesmente presunçoso de alguns desses filósofos “divinos”. Afinal, eles teriam sido mesmo personalidades extraordinárias. Todavia, tampouco diria que isso é o mais próprio da filosofia, pelo menos não da idéia de filosofia como coisa civil que eu gostaria de promover aqui. Prefiro entender que a noção de que a água é o princípio de todas as coisas, com que teria começado a filosofia, além de laicizar um mito egípcio, tenha antecipado antes algo do caráter próprio da filosofia como discurso: clara e fluída, às vezes fria e dissolvedora, mas também “terapêutica” e agradável, favorável à vida (quando não congelada), e susceptível até de formar belos desenhos, e mesmo de, como fazem as crianças, brincar-se com ela.

§5
A FILOSOFIA COMO ATIVIDADE SUBLIME E MUNDANA, OXALÁ DEMOCRÁTICA.
Como disse, esses primeiros filósofos, que infelizmente ainda eram chamados de sábios, já ficaram muito lá para trás, e na maioria dos casos nunca saberemos muito bem quem foram e o que disseram e fizeram. A interpretação, portanto, é livre, e a imaginação filológico-hermenêutico-histórica aí vai longe - algo de muito importante do ponto de vista do desenvolvimento criativo das humanidades, da cultura e da vida do espírito. É certo também que certidão de nascimento não é tudo, e não precisamos estar presos – pelo menos não no caso da filosofia - a uma idéia de continuidade tal que nos impeça de nos perguntarmos livremente o que queremos fazer (se queremos fazer alguma coisa) com ela, hoje. Aqui e agora, não me desagrada pensar nesses founding fathers gregos como tipos “divinos”, pensar no filósofo arquetípico ao lado do herói e do santo, como expressão de valor pessoal, excelência, estilo e gênio - uma bela e inspiradora genealogia, sem dúvida. Isso também pode sofrer uma recuperação civil (embora possa igualmente dar lugar, de outro lado, a todo tipo de fantasia tola). Contudo, me alegraria principalmente pensar nos filósofos como cidadãos, entre outras coisas interessados no conhecimento, na sociedade e em seu próprio desenvolvimento pessoal. Ou, pelo menos, pensar neles como gente que não faria simplesmente “qualquer coisa” (o que já pode ser muito).
De qualquer modo, celebrados ou perseguidos por ingerência política e por impiedade ou irreligosidade, não pensemos que os filósofos do mundo grego (mesmo que não fizessem “qualquer coisa”) fossem sempre muito simpáticos e democráticos e que só por isso tivessem problemas na vida. Vários deles, além de exageradamente aristocráticos, eram – e não se poderia esperar outra coisa – conspiradores, escravistas, machistas, chauvinistas e dados a celebrar regimes não muito livres ou justos (e, claro, aqui já não estou falando mais só dos pré-socráticos). Também não precisamos exagerar na concepção da filosofia como mãe originária, fonte e fundação de todas as ciências, pelo fato de - no começo, e até mais adiante -, muitas vezes as duas coisas terem andado juntas Não é isso, aliás, que salvaria a filosofia e daria o seu valor, já que ao mesmo tempo poderia sugerir que ela é apenas uma ainda-não-ciência, ou um certo resíduo do desenvolvimento da ciência. De fato, os filósofos podiam estar em muitos casos envolvidos com algo parecido com nossas história natural, astronomia, sociologia ou economia, que depois se separaram da filosofia. E podemos achar que há algo de comum entre o espírito da filosofia e o da ciência, ou, voltando à nossa linguagem, que são discursos algo aparentados. Mas nem toda ciência se desenvolvia, nem desenvolveria depois, junto com a – ou melhor, como que dentro da, ou de dentro da – filosofia. Como no caso da ciência de Euclides, Arquimedes ou Hipócrates (para ficar só no mundo grego); como também no caso, depois deles, da ciência de Copérnico, de Galileu ou Newton. Mesmo assim, podemos imaginar os grãos filósofos antigos (digo, Platão e Aristóteles, cada um à sua maneira) como tendo dado uma importante contribuição ao desenvolvimento do que chamamos de “razão”, bem como, consequentemente, da elaboração do conhecimento, da política, da reflexão ética e da vida da cultura. Sem descurarmos, porém, de que seu pensamento metafísico possa ter também, em vários momentos, atrapalhado bastante o desenvolvimento de uma outra idéia de razão, da ciência como a conhecemos hoje, da política de que hoje gostaríamos, e de outras coisas mais.

§6
A FILOSOFIA ANTIGA ENTRE FÍSICOS, METAFÍSICOS E FILÓSOFOS PRÁTICO-MORAIS.
Em se tratando de atividade filosofante ligada aos negócios humanos e associada à vita activa (que viria a ser abraçada pelos renascentistas e pelos modernos), nenhuma talvez supere em prático-mundanidade a dos sofistas, talvez mundanos e práticos até demais. Os sofistas estavam entre a prudentia e a scientia, unindo as duas pontas numa certa arte que envolvia essencialmente a palavra. Era a filosofia como discurso, promovendo mais discurso, eram filósofos de muita conversa - como outros também, que, sendo até inimigos dos sofistas, tiveram que conversar com eles e sobre eles. Pois os sofistas eram desafetos dos filósofos metafísicos monoteístas contemplativos, Platão e Aristóteles, que vieram naturalmente a ser os favoritos da Cristandade (medieval) e do Ancien Régime. Segundo o primeiro, os sofistas eram uns enganadores, com uma relação superficial não só com a verdade como também com sua clientela, pois eram pagos pelo seu trabalho. Mas, diga-se de passagem, os sofistas, sim, eram mais comumente democráticos e mudanos do que outros filósofos, exatamente os metafísicos. Sua imagem desacreditada por Platão (como charlatães), o termo sofística foi fixado por Aristóteles como pseudo-conhecimento. Não obstante isso, me parece haver um grande exagero na imagem deles como “picaretas” da filosofia, promovida pelos filósofos metafísicos. Há quem antes veja neles os primeiros humanistas e professores de educação superior do seu tempo, mestres de humanidades e habilidades correlatas, pensadores definitivamente diesseitige, isto é, citeriores, desse mundo - e não de outro, de um mais além qualquer. Política, administração, direito, argumentação, retórica, também cálculo e astronomia, eram assuntos desses, digamos, enciclopedistas, práticos até o ponto de fazerem – pasmem - coisas com as próprias mãos, como alguns dos utensílios de que precisavam. Sua atividade e seu discurso envolvendo sempre, em todo caso, a aceitação de valores como a utilidade e o interesse, e (heracliteanamente) uma conciliação com a fluidez do mundo, para além de formas fixas. Ademais de sua prática e seu pensamento envolverem o reconhecimento da opinião e da percepção sensível como base do conhecimento, com os limites das verdades daí decorrentes. Entendo, por isso, que não dá para aceitar sem mais a versão de Platão e de Aristóteles, e considerar os sofistas como mestres sem interesse para a filosofia, como não-filósofos, que nada produziram.
Além de relativistas, alguns sofistas talvez se metessem mesmo, sem muito preparo ou trabalho, a saber demais, coisas demais, como se isso fosse fácil (o que especialmente desagradava a Platão e Aristóteles). Mas tal não significa absolutamente que não trouxeram contribuição própria ao desenvolvimento da filosofia. Na verdade, escreveram muitas obras (como a admirável Antilogias, de Protágoras), que infelizmente, em sua quase totalidade, perderam-se ou foram destruídas. E foram filósofos técnicos o suficiente para pôr problemas e argumentos relevantes, e, assim, como dissemos, foram capazes de discutir com os grãos filósofos de f maiúsculo. Quanto ao imenso valor destes últimos, digo, de Platão e Aristóteles, isso está aqui tacitamente reconhecido, e não carece acrescentar nada que o leitor já não saiba. Não obstante a diferente natureza de suas respectivas exposições, eles são ambos autores das obras mais importantes, ricas e completas da filosofia antiga (riqueza e completude na construção e no desenvolvimento de noções e argumentos, e na posição de problemas), embora não devamos negligenciar ainda outros filósofos antigos, como por exemplo Demócrito e Epicuro (estudados por Marx na sua tese de doutorado), além, naturalmente, dos próprios sofistas. Quanto ao que chamo de filósofos prático-morais (entre os quais eu destacaria os céticos pirrônicos), chegaremos a eles mais adiante.

§7
FILOSOFIA COMO COISA ATENIENSE E DEPOIS ROMANA: POSSÍVEIS CIRCUNSTÂNCIAS SOCIAIS, CULTURAIS E POLÍTICAS DA ATIVIDADE FILOSÓFICA.

Que tipo de sociedade é esse, onde os sofistas são possíveis e onde são possíveis as escolas de filosofia em geral, sua elaboração, suas discussões, e esses novos conhecedores seculares? A filosofia (civil) está entre aristocratas e plebeus, entre filósofos físicos, metafísicos e sofistas, entre um sacerdócio filosófico e um professorado mundano. Pode ser a filosofia dos sofistas, com interesse, porém, pelo bem da Cidade (se é que os sofistas não o tinham), e com uma preocupação pela virtude e pelo aperfeiçoamento pessoal. Mais espírito de análise e também labor de ciência, e uma idéia de investigação e busca - que, nesse sentido, o civil da filosofia está no filo. O ambiente social em que isso tudo é possível traz certas características e desenvolvimentos que marcariam exponencialmente o mundo grego (Atenas em particular) e, depois, Roma e o mundo romano.
Dizer mais do que isso – mesmo dizer só isso - é correr sérios riscos de etnocentrismo e de “ocidentalismo”, de fantasiar, enfim, o modo histórico e contingente de ser de uma sociedade como estando absolutamente acima dos outros. Seria conceber o pensamento e a liberdade como coisa grega e ocidental, e a sociedade grega como mais confortável para o homem (o homem como ele deve ser, em todo caso) e mais de acordo com sua natureza, todo o resto fora disso sendo despotismo ou falta de cultura, inconsciência ou coisa primitiva. Além de etnocentrismo, essa perspectiva poderia envolver também anacronismo, operando sem perceber uma projeção, no passado, de traços valorizados do mundo moderno, do nosso tipo de sociedade. Lendo-se a sociedade grega antiga em termos contemporâneos, ali encontrando o indivíduo moderno e arranjos livres e democráticos ao nosso gosto hodierno. Em se tratando de fantasia, talvez fosse melhor então imaginar a Grécia apenas artisticamente, de acordo com nossos sonhos, como um mundo belo e insuperável, tudo o que mais queremos, ou imaginamos que perdemos: pensamento da unidade, não dissociado da poesia, ligação imediata com a vida, realização da natureza política do homem, vida harmoniosa e bela, píncaros inultrapassáveis do espírito, ou tudo isso junto.
De qualquer modo, fora da fantasia e voltando à nossa questão sobre as circunstâncias da filosofia, parece razoável, para começar, associar seu desenvolvimento com outros: da poesia, da literatura, do teatro, história, ciência, etc. E, depois disso, vá lá, à existência de alguma liberdade e de alguma idéia de expressão pessoal ou de autoria humana. Estou pensando especialmente em Atenas (possivelmente idealizada), de modo algum em Esparta. E, depois de Atenas, no helenismo e no mundo romano, para onde se desdobraram as influências de Sócrates, de Platão, de Aristóteles, de Demócrito, de Epicuro, de Zenão de Cítio, através de acadêmicos, peripatéticos, estóicos, epicúrios, céticos, cínicos, cirenaicos - em desenvolvimentos possivelmente menos metafísicos e dogmáticos do que algumas de suas matrizes. Entre eles, merecem destaque os céticos e os sofistas como talvez aqueles que mais tomaram distância – em nome da vida comum e do saber comum dos homens – com relação às ambições daquela filosofia especulativa, dogmática, de sistema.
“A Grécia cativa... introduziu as artes no rústico Lácio.” O fato de Roma não ter produzido grandes filosofias originais (eu diria que, depois de Platão e Aristóteles, mais do que difícil, isso era desnecessário) não me parece significar que a filosofia não encontrasse aí vigência e até desenvolvimento, mesmo que outros prefiram achar que ela aí ficou mesmo foi pequena e pobre. Alguns podem dizer que Roma, em comparação com Atenas, não tinha muito cabeça filosófica (embora a tenha tido no sentido mais literal). Parece, porém, que passou bem sem grandes filósofos próprios muito originais, mas com mestres atenienses e de outros centros, e com a chamada segunda sofística. Com seguidores, aplicadores e ecléticos, com filósofos menores enfim, fazendo filosofia “normal” e “aplicada.” Além de tudo, em termos de sociedade, e como mundo, Roma era sem dúvida bem maior e mais complexa – e, nesse sentido pelo menos, mas é claro que também em tantos outros, muito mais próxima de nós - do que a pequena Polis. Urbi et orbi: para mim, se a filosofia é coisa da Cidade, seu horizonte é muito mais o da cosmópolis (muito mais katholikós) que o da mera polis. Embora esse reconhecimento de Roma não prevaleça hoje em dia nos círculos eruditos dos países do Atlântico Norte, em especial dos protestantes.

§8
PÓLIS, COSMÓPOLIS E USO ROMANO DA FILOSOFIA: “ARRANJOS CIVIS”
Enfim, naquele mundo grego, helenista e romano, que incluía outros centros mediterrâneos não exatamente ocidentais, creio que podemos imaginar um arranjo da sociedade, em termos de convivência, realização e inquietação humanas, mais diversificado e horizontal, menos estático, hierárquico e monopolizado (pelo menos no plano da cultura e da religião), que de alguma maneira abria espaço e criava interesse pelos discursos da filosofia. Ou seja, uma sociedade não-teocrática e não-tradicional, sem grande peso ou inércia inibidores, dotada de um dinamismo que se refletia na disposição reflexiva e especulativa de uma parte de seus membros. E um desenvolvimento histórico – sem dúvida para além da comunidade tradicional, de dominância sacerdotal - de comunidades postas em contato com um poderoso e diversificado acúmulo de vida cultural e espiritual de outras civilizações. Sociedades, assim, em que foram possíveis legisladores humanos, bem como a Academia e o Liceu, Platão e Aristóteles, a Stoa e especialmente os sofistas e os céticos pirrônicos. Sociedades com segmentos onde puderam florescer um talento investigativo, o gosto pela elaboração discursiva de tipo filosófico e um interesse de cultivo intelectual. Capazes, portanto de permitir um progresso geral das letras e das ciências, e um excedente de pensamento, o que aparentemente pressupõe uma divisão de trabalho mais rica e uma certa riqueza material mesmo, trazida pelo comércio e pela navegação. Talvez coisa de centro, mais do que de periferia – coisa de quem de algum modo se coloca no centro, em todo caso.
No mundo grego, então, falo particularmente de Atenas (e me surpreende que alguns filósofos modernos tenham feito de Esparta seu modelo). Contudo não estou destacando só a Atenas autárquica, da ágora e do espaço público, mas incluindo também aquela dita decadente, de depois de Alexandre, onde me parece a filosofia não tinha menos vigência e efervescência. Aquela Atenas que São Paulo visitou, de onde saiam professores (também não-atenienses) para Roma, e onde os romanos bem nascidos vinham estudar depois de aprender grego com seus escravos helenos. Depois de Atenas, falo particularmente de Roma, com suas colônias de outras culturas à volta (como, em especial, Alexandria), e falo de seu uso – uso mesmo – da filosofia helênica, em sua pluralidade de escolas, mestres e movimentos. É nesse mundo mediterrâneo multicultural que começa a nascer, na esteira de desenvolvimentos da filosofia monoteísta grega e em contato com a tradição monoteísta religiosa judaica, a teologia ocidental. Um acontecimento determinante para o destino posterior da filosofia e do fazer filosofia. Com essa teologia (e com o cristianismo), a partir de Roma, a filosofia (segundo o recorte da Igreja, naturalmente) começa a derramar-se pela Europa, acompanhando a própria constituição desse novo mundo – pela Itália, Germânia, Hispania, França, Inglaterra, Países Baixos, etc.

§9
O “DESCAMINHO” MEDIEVAL: METAFÍSICA E ESCOLÁSTICA VERSUS FILOSOFIA CIVIL.
Falo aqui de descaminho – uma idéia possivelmente a-histórica - sem pretender muita objetividade; e não vejo que a filosofia civil deva ser, por aí, anti-católica ou anti-religiosa. Pode-se igualmente representar o encontro da filosofia metafísica monoteísta grega com o monoteísmo religioso da tradição judaica, no mundo helenista e romano, como um enriquecimento. Estarei falando mais em fixação ou enrijecimento (não disse esquecimento, mas poderia ser igualmente o caso), mas é certo que o Cristianismo permitiu à filosofia também um desenvolvimento de algum modo enriquecedor, que preparou o advento da Modernidade (para quem gosta dela), que pode ser entendida como uma secularização daquele. Não se trata, portanto, de uma simples oposição filosofia versus cristianismo, como no esquema iluminista vulgar e enclausuradamente “moderno”. Já que o cristianismo é bastante “filosófico” e a filosofia ocidental bastante “cristã”, os dois encontrando-se juntos do mesmo lado no processo de desencantamento do mundo que desemboca/floresce na Modernidade. É, aliás, como já sugeri, antes mesmo do cristianismo que a filosofia grega vira teologia (que não é nenhum palavrão), o cristianismo podendo representar um elemento de “crítica” e “contrapeso” ao racionalismo e à abstração da filosofia - com seus novos temas e tintas, suas noções de liberdade, personalidade, finitude, existência, salvação, etc. -, elemento advindo de algo que talvez a Grécia meramente, não importa quanto a recriemos, não nos daria. Também é fato que o que é bom para nós hoje não precisa ser generalizado (em mais uma tentação de anacronismo), no tempo e no espaço, como medida para uma apreciação do que foi antes – na Idade Média, nesse caso. De qualquer maneira, o predomínio do cristianismo – e de sua adoção da “grande filosofia”, isto é, de um certo pensamento (neo-)platônico-(secundariamente)aristotélico – acaba por praticamente proscrever as filosofias não-metafísicas, de Demócrito e de Epicuro, a sofística, o ceticismo etc. Impondo finalmente o fechamento, pelo imperador Justiniano, das escolas filosóficas independentes, dos filósofos prático-morais (em certa medida concorrentes da Igreja), como os estóicos, os epicuristas e os céticos, tudo devendo desenvolver-se agora – em havendo aproveitamento – dentro da sua (do cristianismo) medida hegemônica.

§10
METAFÍSICA E “GRANDE CIÊNCIA”: DA IDADE MÉDIA À MODERNIDADE.

É verdade que o logos não cessa aí seu trabalho; e isso é também a teologia e são os concílios do começo da Cristandade, onde questões doutrinárias e teológicas são discutidas e assentadas. Mas, em se tratando propriamente de filosofia, ela passaria a ser antes aquela metafísica e contemplativa, enquanto a sociedade voltava a ser hierárquica e estática, apontando para desenvolvimentos no sentido do que assinalo como ancien régime, até começar a ser de novo “mexida” (a sociedade), próximo do Renascimento e dos Tempos Modernos. Mesmo então, pelo que nos interessa, podemos ainda apontar, com o defensivo Concílio de Trento, uma ulterior fixação da filosofia, por acréscimo, como aristotélico-tomismo escolástico (mais do que como platonismo, apesar do ultramundanismo mais explícito, deste), sem vida, invenção ou poesia. Um empobrecimento que nos toca mais de perto por tocar especialmente os destinos do pensamento e da vida espiritual na Península Ibérica (se pudéssemos dizer que foi por isso que a atividade filosófica, em especial a filosofia moderna e seu espírito, veio a alcançar com pouca vida e vigor essa parte da Europa).
E não se veja na minha observação qualquer rejeição a Aristóteles ou a Tomás de Aquino, mas àquele modelo especulativo, agora empobrecido, e àquele monopólio, além do mais prolongado, que foi a escolástica na sua versão degradada. Entendo que o trabalho filosófico, na Idade Média, envolvia algumas das competências tradicionais da filosofia - contra um fundo contemplativo e circunscritas pela referência dominante do cristianismo, do dogma e da verdade revelada, em detrimento da liberdade e da conversacionalidade do discurso filosófico. Aí a filosofia aparentemente vai aos poucos se consolidar como metafísica e “grande ciência”, embora, até os começos da Modernidade, “ciência” mesmo fossem apenas as Escrituras Sagradas. Ela vai fundar racionalmente Deus, sua natureza, a criação, a verdade, a imortalidade da alma, e oferecer, no plano conceitual, as premissas da política e da ciência de então. Do meu ponto de vista, esses são descaminhos da filosofia, que se vai fazendo cada vez mais dogmática, acima e desligada da experiência e da historia, da sociedade e da linguagem. Revelando uma ambição absolutizante de pôr-se acima dos homens, como desqualificadora da opinião e do senso de cada um, como essencialismo e substancialismo e, ainda na Modernidade da Europa continental, como construção de grandes sistemas metafísicos ciumentos, que se têm sucedido – e combatido - uns aos outros desde Platão.
Temos aí, então, a razão como “grande ciência” (metafísica), oposta àquela razão socialmente distribuída e colaboradora dos negócios humanos, oposta a uma razão do jeito que pode ser usada com as – e pelas – pessoas. E entendo que, contra essa metafísica dogmática e fixada, contra o confisco e o monopólio da razão, vieram a se levantar (em modo mais ou menos civil) os humanistas e os experimentalistas, também Pascal; os novos epicuristas e céticos, Montaigne; os empiristas, os libertinos, Bayle, Voltaire e também Rousseau; os philosophes em geral, os idéologues e os românticos; os jovens hegelianos, Marx, Nietzsche, Sartre e Wittgenstein. E fiquemos por aqui, que, além de metafísica, devemos ainda falar aqui de escolástica.

§11
DA FILOSOFIA MONÁSTICA AO MODO ESCOLÁSTICO DE FAZER FILOSOFIA E ALÉM: A FILOSOFIA DOS COMENTÁRIOS.

Com a escolástica, ou melhor, com sua decadência, a filosofia viraria um conteúdo fixado e uma coisa oca, sem ciência, sem vida e sem poesia. Viraria mera doutrina, além de tudo monopolista. Possivelmente, não se deveria esperar mesmo muita vivacidade filosófica no feudalismo europeu, sob o monopólio espiritual e cultural da Igreja e com pouco do que chamamos de “Cidade”. E foi com a Igreja e o Cristianismo, como já dissemos, que a filosofia (junto com a civilização mediterrânea) propagou-se pela Europa, como metafísica, como (neo-)platonismo com algo de Aristóteles. E, depois, como aristotélico-tomismo, o qual, antes do Renascimento e da Reforma protestante, instauraria universal e oficialmente um Aristóteles doutrinário. Pois a filosofia grega sobreviveu e difundiu-se também pelos árabes (que, muito antes dos europeus, criaram a primeira universidade), que trouxeram Aristóteles para a Europa séculos depois, um Aristóteles mais completo, que aí entrou em grande voga e foi em seguida assimilado pela Igreja. Mas, já antes disso, com todo o domínio da Cristandade, a filosofia assim mesmo encontrou cultivo em alguns lugares, onde se falava latim e se estudava grego, e onde se liam textos da Antigüidade Grego-Romana, obras filosóficas maiores e menores. Onde se liam aqueles filósofos gregos e romanos que, como se chegou a dizer, mesmo sendo pré-cristãos (e, nesse sentido, pagãos), repetiam Moisés e prenunciavam o Evangelho, e se entendiam com o Logos - que veio a ser, encarnado e como pessoa, o Cristo. Lia-se sobretudo o que chegou através de Roma, tendo Cícero traduzido os gregos para a Europa romana e dado à Europa seu vocabulário filosófico (tal como, muito depois, o místico semi-panteísta Mestre Johannes Eckhart começaria a dar à Alemanha o seu).
Primeiro, então, foi a filosofia de mosteiro (certamente mais platônica) e da escola da catedral, e finalmente a filosofia das primeiras universidades européias, em Bolonha, Paris e Oxford. Sempre como sócia, sujeitada, e só depois concorrente do cristianismo, inicialmente a filosofia se casa com a – ou é – teologia. Pois deve racionalizar o conteúdo da religião, sem querer nem poder ser uma visão de mundo rival e separada. Apenas próximo ao fim da Idade Média vai predominar a idéia de conflito aberto entre fé e razão - depois do que a filosofia vai pretender escapar à tutela da religião e, mais tarde, voltar-se contra ela. [Ironicamente, mais tarde ainda, instaurada a Modernidade, a ciência (ou o espírito da época) procurará fazer com a filosofia o mesmo que essa fez com a religião – ambas as empreitadas, podemos dizer hoje, não muito bem sucedidas.]
Voltando, porém, ao que nos interessa mais aqui: A escolástica medieval era a filosofia da escola, quando não há mais escolas de filosofia; era a filosofia ensinada e repetida. Consistia no estudo do texto do filósofo (metafísico), dotado de autoridade superior, e eventualmente isso mais a discussão de questões pelos argumentos opostos envolvidos, a disputatio, seguida da conclusão oficial pelo mestre: um clérigo ou coisa parecida. Havia, portanto, pelo menos algum enfrentamento de questões. Contudo, o ensino era mesmo basicamente a lectio, ou seja, o comentário do texto filosófico. Como era de se esperar, a atividade literária dessa filosofia assumia com predominância (curiosamente, como hoje entre nós, no Brasil) a forma do comentário. Nisso tudo, creio que se pode dizer que ninguém propriamente falava ou argumentava em nome próprio, mas buscava a autoridade da tradição filosófica – do grande filósofo e de seus comentadores autorizados. Mesmo assim, houve, na Idade Média européia, como todos sabem, e além de tantas outras coisas que houve aí, interessantes discussões sobre os universais e sobre a verdade, elaborações lógicas e até curiosos desenvolvimentos não ortodoxos. Isso, entretanto, pelo que sei, bastante longe do nosso mundo ibérico – do mundo português, melhor dizendo. Entendo também que em vários momentos essa filosofia esteve associada, enquanto elaboração conceitual, à vida institucional e política do seu tempo, ao seu ordenamento social e jurídico, à construção da visão da natureza e à fundamentação da ciência, embora, predominantemente, daquela forma fixada e submissa. Não por acaso a filosofia entrava na formação dos jovens destinados a serem quadros na esfera da Igreja ou do Estado, magistrados, funcionários, embaixadores, juristas, professores, e, naquela forma, parecia satisfazer às necessidades do tempo. Ainda que a escolástica significasse sujeição ao Autor e sacralização do Texto como fonte de conhecimento, uma sujeição que excluía, digamos, o pensar vivo e autônomo, investigativo e experimentalista, a filosofia virando aí só texto e obra, coisa estritamente livresca. E é essa escolástica degradada – sendo que “escolástica” hoje significa literalmente um pensamento pedante e formalista, um saber sem muito uso ou relevância - que teria dado, em última análise, creio eu, na “bacharelice” da nossa vida espiritual e política, e no formalismo da universidade, da nossa educação escolar, e sabe-se lá no que mais nosso...

II - FUNDO E PERFIL DA FILOSOFIA NO BRASIL

§12
INTERREGNO E CONCLUSÃO PARCIAL ANTECIPADA: A FILOSOFIA 1) “GRANDE” E “FIXADA” PELA METAFÍSICA, 2) HOJE, “DINÂMICA” E “MIÚDA”.

Antes de chegarmos expressamente (mas, pelo visto, já chegando) ao Brasil, permitam-me oferecer desde já um quadro geral contra o qual nosso trabalho de filosofia possa ser depois contrastado. Como disse, no início, não estou falando do que é a filosofia “em si”, mas tentando dizer alguma coisa sobre sua feição como atividade, sobre seu exercício e inserção. E, nesses termos, dizer alguma coisa sobre como nos chegou ela - a nós como parte periférica, e de fronteira, do Ocidente. Ora, malgrado os descaminhos sugeridos, a feição que a filosofia vai tomando ou reiterando ao longo da história me parece que é a de discursos que fazem parte de algo como uma corrente, ou várias, que constituem sua tradição, muitas vezes em interseção com outras (com a literatura e a religião, por exemplo). E que, sucedendo-se suas (da filosofia) expressões umas às outras, essas tomam – e devem tomar - umas às outras como referência, comumente por oposição e diferenciação e mesmo ruptura, mas também, de outro lado, como corroboração, desdobramento e derivação. A filosofia constituindo, assim, no seu desenvolvimento, o que eu gostaria de considerar como uma longa discussão (ou várias), em boa medida - por esse acúmulo todo e por característica mesmo desse discurso – mais ou menos técnica e sofisticada. Pode-se falar de uma onipresença da discussão também, internamente, em cada texto filosófico, na forma de sua argumentação e de seu desenvolvimento dialético. O que não quer dizer, infelizmente, que, por isso tudo, a filosofia tenha sido sempre cultivada como coisa de algum modo dialógica e pública, que atingisse uma esfera um pouco mais ampla do conjunto da vida social, principalmente quando não havia vida civil ou pouco havia e antes da transformação democráticas da sociedade.
Nós sabemos que, no caso da filosofia, nessa confrontação toda, trata-se de “conversas” que não se concluem, em que não se vai constituir um consenso racional, com a prevalência de um sistema ou pensamento, com uma resolução final de suas (da filosofia) questões, que elas mesmas se transformam de um tempo para outro. Sabemos que há aí uma diversidade inexaurível a que devemos nos render, e que isso é a filosofia. Também - e ligado a isso - sabemos que não se trata de sabedoria, de coisa sapiencial, seu agente não sendo um sophos ou “guru”, de um modo que envolva perda de autonomia na vida pessoal e política por parte dos que lhes aproveitavam o pensamento – já que a filosofia é coisa de maturidade e de emancipação. É nisso que consistiria a modéstia do philo-sophos, e da filosofia, como uma fala entre outras, que problematiza o conhecimento e os valores, o filósofo não sendo aí nem um “mestre” nem um “papa”, mas existindo num espaço de interlocução. Num espaço em que eventuais, digamos, seguidores (quem dera, sempre interlocutores) não seriam menos sujeitos independentes do que o filósofo - com tudo que pode haver de não-platônico nessa representação da comunidade, ou falta de comunidade, da filosofia. Dito isso, me parece verdade que a idéia de participar dessas conversas e dessa tradição (a filosofia) implica no recurso estudioso a textos que a compõem, pelo menos o suficiente para tomar algumas de suas idéias e apropriar-se de parte de seu precioso vocabulário. Pelo menos o suficiente para tomar como referência algumas de suas posições e formulações; o que significa quanto possível explorá-las com alguma profundidade (N. B.: segundo aquilo que interessar a quem está estudando, ao seu tempo, ao Zeitgeist, às questões que deva ou queira enfrentar). Afinal, trata-se, como já disse, de um precioso vocabulário, de um imenso arsenal de noções e argumentos, e de um grande acúmulo de perspectivas e horizontes. [Embora eu não esteja dizendo com isso que, quer no campo da política, da arte, da ciência ou da vida privada, seja o caso de menosprezar outras referências, de fora da filosofia, tanto aquelas mais veneráveis quanto outras menos elaboradas.]

§13
Discussão com outros e consigo mesmo, dialética, confronto com outras razões, com outros argumentos, com outros pontos de vista, o fazer filosofia envolve uma disposição para tomar a tradição e dialogar com ela, disposição para de alguma forma inserir-se nela (mesmo por contraposição). Sabendo que a tradição é de várias falas, e que, mesmo a fala filosófica genericamente tomada, não é “a” fala do mundo, aniquiladora ou sujeitadora de outros discursos e expressões, da religião, do senso comum, da arte, da política, do mito, etc. Sem embargo, por vezes, predominantemente na sua forma “metafísica” e de “grande filosofia”, a filosofia nos é apresentada como constituída por um “panteão”, uma coleção de pensadores absolutos e ciumentos, cada um sendo um todo, uma grande mônada, um mundo e um universo fechado. Como se se tratasse dessa coisa contraditória de um “múltiplo monoteísmo” (mais até que de um “panteão”, como se poderia esperar, pagão e politeísta); em todo caso, uma coleção de seres muito acima dos mortais comuns e objeto da devoção desses, como no hagiológio católico ou – tampouco aí muito civilmente – naquele positivista comteano.
Ora, me parece que essa é uma abordagem de espírito escolástico, e que não dá para fixar-se aí. Pelo menos nos nossos dias, entendo que a filosofia é antes ou é também uma elaboração mais aberta (sobre política, ética, ciência, linguagem, técnica ou cultura, etc.), semelhante ao fazer cotidiano da ciência. Um trabalho coletivo e uma discussão pública, com a ajuda de periódicos, artigos, internet, numa comunidade baconiana grande, aberta e diversificada. Em que os participantes lêem as coisas uns dos outros, e se referem uns aos outros - e não por mera troca de amabilidades, mas para desenvolver temas, argumentos e posições, e esclarecer questões. Aí os filósofos e suas discussões pertencem a um certo espaço público (onde entram não apenas alguns), tal interlocução compondo uma comunidade aberta de elaboração e de aproveitamento, mesmo que com diferentes graus e tipos de participação. Ora, as macro-posições clássicas, os grandes sistemas, os grandes discursos clássicos, os filósofos canônicos ou promovidos a tanto, são às vezes aí até certo ponto deixados de lado, mais ao fundo, não sendo integralmente tomados, a não ser, claro, quando se trata de fazer história da filosofia, comentários de texto e cursos de formação. Muito menos se quer nem se precisa agora de novos filósofos canônicos ou canonizáveis, novos Platão, Aristóteles, Descartes, Hobbes, Locke, Kant ou Hegel. Nem talvez se deva imaginar que eles venham a acontecer – tais e quais e entronizáveis – no mundo de hoje ou entre nós. Sem excluir que, investindo muito preparo, muito trabalho e muito tempo, pessoas razoavelmente talentosas e necessariamente ousadas, e com recursos suficientes, consigam produzir verdadeiros “clássicos”, mesmo que de novo tipo, para serem talvez ainda lidos daqui a 200, 500 e mais anos. Mas esses serão, por definição, pouquíssimos. De qualquer forma, tratemos agora de nos aproximar mais do Brasil.

§14
O CASO DE PORTUGAL E DO BRASIL. RELATIVA POBREZA FILOSÓFICA. MAS E DAÍ?

Não há filósofo “canonizado” de língua portuguesa, com f maiúsculo (integrante do poderoso hagiológio da filosofia, primeira e segunda divisões, pelo menos). Mas tampouco os há de língua romena ou sueca, nem grande filósofo australiano, nem japonês, nem chinês – moderno, quero dizer. E por aí já dá para entrever que “grande filósofo” não é coisa que aconteça assim fora de uma certa tradição, contexto ou época, fora de um acúmulo e até, aparentemente, como já dissemos, de uma centralidade de metrópole. Embora talvez devamos, antes de mais nada, parar de representar a filosofia apenas do modo “grão-monádico”, como reduzida a um panteão de filósofos de sistema e assemelhados, rodeados por seus sacerdotes/intermediários, os comentadores, seus media. Nestes termos, no caso brasileiro, historicamente, podemos falar em pouca filosofia, de país periférico, dependente e “atrasado”. Caso que imagino mais ou menos próximo da Colômbia, ou da Indonésia, ou da África do Sul, ou da Argentina, ou da Turquia, ou do México, ou das Filipinas, ou até de outro tipo de país como a Rússia, a Suécia ou a Austrália. Se país periférico não tem filosofia, no nosso caso teríamos um país sem muito “excedente de pensamento” (tanto quanto sem poupança interna suficiente), e até pouquíssimo tempo também sem universidade. Com pouca energia especulativa e com pouca tradição de pensamento filosófico - Portugal menos que Espanha, e o Brasil menos que a América Espanhola.
Alguém poderia perguntar, com razão, o que temos a ver com essa história, quando já avançamos tanto (inclusive no estudo da filosofia), e nos modernizamos tanto, e tudo é hoje tão globalizado; quando, afinal de contas, somos um país grande e mesmo um grande país. Além do mais, isso é apenas um dado - não é nada que por si comprometa o valor do seu povo, de sua herança, sua cultura, suas virtudes, engenho e originalidade, pelo menos para quem leu Gilberto Freyre ou Darcy Ribeiro. Por fim, como já disse acima, a filosofia não nos parece algo assim tão supremo e absoluto, que corresponda a uma essência humana e sem a qual o homem não viva.
Entretanto, dito isso, pelo que vimos e ainda não vimos até aqui sobre metafísica, escolástica e ancien régime, entendo que, de um lado, podemos falar, no nosso caso, historicamente, não só em pouca filosofia como também em filosofia pouco civil, que nos chegou de - ou via – Portugal / Península Ibérica. E, ao lembrar assim de escolástica e de regime antigo da filosofia, com respeito a nossa matriz ibérica de pensamento, não estou me referindo apenas a uma determinada filosofia, mas a uma “matriz” mesmo. Matriz no sentido de “fôrma” - como influência mais estrutural e estruturante - de um (não) pensar e (não) fazer filosofia, na qual podem vir a conformarem-se outras filosofias (que não aquele aristotélico-tomismo), de fôrma semelhante. Ou podem vir acomodarem-se, como em leito de Procusto, filosofias de outra índole, em grande parte assim tornadas não muito civis, mas antes escolásticas e doutrinárias, quanto ao fazer, e de “catecismo” ou manual, quanto ao ensinar. Com efeito, na nossa hipótese, trata-se de matriz ou fôrma como modo não só de puro pensar mas de fazer filosofia. E modo em boa medida radicado no nosso arranjo cultural, social e histórico, capaz de converter a seu padrão filosofias que por si corresponderiam a fôrmas diferentes (algo talvez parecido com o destino do liberalismo entre nossas elites patriarcais e escravistas, no século XIX). Sem excluir que se possa, além disso, falar aí em “afinidades eletivas”, com filosofias de espírito, “no fundo”, em alguma medida, semelhante. (Enfim, um cenário capaz até de, por sobre isso, fazer a filosofia entre nós repetir-se como farsa, como na imaginada “escola teuto-sergipana”).
Portanto, historicamente, com essa tradição filosófica fraca - mas fôrma forte -, teríamos: 1) filosofia escolástica (quanto ao modo), 2) filosofia pouca (quanto ao desenvolvimento), 3) filosofia pouco civil e ancien régime (quanto à sua inserção). E, acrescento agora, 4) filosofia “realista dogmática” - algo de que não falei expressamente antes, mas que tem a ver com pouca filosofia, com dogmatismo e metafísica, isto é, com filosofia não passada pelo empirismo, pelo ceticismo e pelo criticismo modernos. Como veremos, porém, se é mesmo preciso declarar isso, não faço essa enumeração assumidamente reducionista para desconhecer, de outro lado, as virtudes e potencialidades de nossa herança colonial portuguesa e católica, e a riqueza de expressões de pensamento de língua portuguesa, não estritamente filosóficas, das quais só por ignorância não nos orgulharíamos.

§15
ESCOLÁSTICA, “REALISMO DOGMÁTICO” E ANCIEN RÉGIME DA FILOSOFIA. (NUMA NARRATIVA ASSUMIDAMENTE REDUCIONISTA).

Comecemos a esclarecer um pouco essas coisas - inclusive a parte da nossa hipótese referente a “realismo dogmático” associado a pouca filosofia, ou significando uma filosofia pouco moderna e não muito civil. “Realismo” (v.g. das categorias gerais e dos valores, não aquele do senso comum) que teria a ver até com uma marca mais geral do nosso espírito, ou relativa falta dele - pois estamos falando de verdadeiros idola e hábitos de pensamento. Creio que não chega a ser polêmico dizer que o aristotélico-tomismo é uma matriz “realista” e, pelo menos em sentido kantiano, “dogmática”. Junto com metafísica, comprometida com noções como essência e substância, deixando do outro lado, em princípio, por exemplo, o ceticismo e o criticismo, o nominalismo e o empirismo, o idealismo e a hermenêutica. Permanecendo, portanto, com relação ao que é moderno, bem lá atrás, sem nenhum tipo de novum organum (ela é justamente o velho), tendo como instrumento apenas a lógica formal mais tradicional, não sendo crítica sequer em sentido cartesiano, de uma dúvida metódica e de um método analítico. Um perfil que corresponde, no plano da ciência, a uma idéia de conhecimento não operacional, sem experimentalismo nem matemática, sem Bacon nem Galileu. No plano mesmo da filosofia, correspondendo a uma tradição contemplativa e não-problematizadora do mesmo conhecimento, das pretensões de conhecimento de um discurso – do próprio, pelo menos.
Temos assim pintado, então, um quadro de possível sobrevida (eu diria, inclusive, “subterrânea”), entre nós, do modo de pensamento não-moderno por excelência (mesmo que isso não seja sempre, em outros aspectos, um mal). De sua permanência entre nós, sem muito abalo, na Modernidade, depois do empirismo e do nominalismo, do epicurismo e atomismo modernos, do ceticismo, de Descartes e também de Kant. Com o que teríamos basicamente saltado por sobre o rompimento histórico com aquele pensamento não moderno, encontrando-nos então, no plano do espírito, na posição de assimilar, em desenvolvimentos não-críticos, as filosofias posteriores, as filosofias críticas e pós-críticas, quiçá mais as filosofias passíveis dessa “redução” ou que com aquele espírito possam guardar alguma afinidade eletiva. Não será esse o caso comum, para dar exemplo, a nosso ecletismo/espiritualismo (de Cousin, já originalmente escolar e dogmático), nosso positivismo comteano (com seu forte arquétipo católico), e a nosso marxismo nacional (“positivista” e “dogmático” também, como se tem dito)? A propósito, como a dialética (alemã) não seria em geral lida aqui em chave pobre, “realista” e “dogmática”, dada essa matriz fundante maior e mais originária, matriz que pode ainda, por exemplo, levar a própria noção de crítica a assumir dominantemente entre nós um sentido ingênuo e dogmático, do ponto de vista filosófico? Quanto ao positivismo comteano, já não é ele próprio, em parte e contraditoriamente, uma filosofia-doutrina, de espírito escolástico, e até, literalmente, de catecismo?
Note-se, depois disso, que já temos aqui reunidas talvez as influências formadoras maiores na experiência brasileira de pensamento filosófico. Infelizmente, no geral, então, não tão civis, pluralistas e experimentalistas, mas de inclinação “doutrinária” e passíveis de conversão/degeneração “escolástica”. E não estou dizendo que essas não possam ser, por outro lado, excelentes filosofias, muito válidas e dignas de estudo, mas que podem ter sido absorvidas em certos “maus” hábitos de pensamento, que, ademais, certamente penetraram também nossas práticas e discursos fora da filosofia e da academia - na sociedade, na política, na educação, etc.

§16
“CATOLICISMO” E “REGIME ANTIGO” DA FILOSOFIA, VS. “VITA ACTIVA” E “VIDA ORDINÁRIA”. (MAIS ALGUM REDUCIONISMO).

Depois disso, poderíamos falar também de “realismo”, ademais de “escolástica”, ou falar de “realismo escolástico”, como parte do próprio espírito do catolicismo mais anti-moderno (como fariam filósofos ligados ao idealismo alemão). E até lembrar as outras metrópoles católicas, além de Portugal, a que associamos os destinos do nosso filosofar. Bem como lembrar a influência mais geral do catolicismo (como matriz) na extração e formação dos nossos quadros de pensamento (conservadores e revolucionários, por igual), e na formação de nossos modos de filosofar, e inclusive na adoção de correntes filosóficas européias mais contemporâneas. E não estamos formulando aqui, nesse caso tampouco, um juízo geral sobre o catolicismo da nossa cultura (que, na minha opinião, tem coisas muito boas), nem muito menos sobre a influência geral da Igreja Católica no Brasil, em parte, hoje em dia, além de culta, mais e melhor do que civil.
Não obstante isso, falando em catolicismo naquele sentido “matricial”, temos a oportunidade de compor aqui um quadro mais amplo de sobrevida de algo de ancien régime na nossa metrópole colonial européia e no nosso próprio país, tanto na sociedade como – et pour cause - na vida intelectual. A começar pela ausência e pelo retardamento, pela menor profundidade e ruptura, das chamadas transformações democráticas, em Portugal e no Brasil, não apenas no plano político como no plano social e da cultura, no plano da mentalidade e das relações sociais como um todo - não só no das chamadas relações de produção. A esse respeito, aproveito para, entre parênteses, confessar que a idéia de algo como uma filosofia ancien régime, ou melhor, um (mau) ancien régime da filosofia, me veio primeiro na imagem de “filósofos com criadas”, a partir da presença da figura da criada não só no ambiente como também no imaginário de importantes filósofos europeus, ainda no século XIX e mesmo no século XX. E, mais amplamente, a partir de uma presença muito subalterna de figuras femininas à sua volta, e, for that matter, também de figuras masculinas. Tudo isso junto com outros arranjos que considero pouco civis, onde incluo, mesmo que de modo menos crítico, o traço “sacerdotal” e “ascético” - no ser filósofo e no fazer filosofia. De sorte que, ao falar de “antigo regime”, falta de dimensão civil, hierarquia, etc., na filosofia, diferentemente de quando falo em escolástica degradada, não penso só em Portugal ou Península Ibérica, ou no nosso período colonial e monárquico. Mas penso já em outras matrizes européias com sobrevida de ancien régime e em outras filosofias, que não a escolástica, em muitos casos ainda metafísicas e grãs filosofias (dogmáticas). De todo modo (e fechando o parêntese), no caso do Brasil, até quase o fim do século XIX, podemos falar mesmo, e no sentido usual, em ancien régime e em sobrevida de ancien régime (já com o país independente): império, coroa, corte, monarquia, igreja, barões, coronelismo, patriarcado, servidão, elitismo, pouca cidadania, etc.
Minha idéia é que, depois de formalmente ultrapassada a influência ibérica, católico-escolástica e ancien régime, essa matriz social e espiritual pode ter permanecido, mesmo esgarçada e enfraquecida, digamos, como espectro (e não inteiramente como um bem). Principalmente quando, contra ou após esse ancién régime, a própria Modernidade se impôs aqui de modo, digamos, imperfeito e pouco civil, predominantemente por vias prussiana, pombalina, positivista comteana e o que mais se queira, deixando sempre no ar um espectro de má hierarquia e uma nostalgia “católica” de ancien régime. É o caso de lembrar en passant, por exemplo, do lugar especial, hierárquico, reivindicado pelos “trabalhadores do espírito” entre nós, bem como lembrar da dissociação do fazer filosófico com relação à vida comum, à esfera pública e à vita activa. No extremo caricatural, temos o nosso já mencionado bacharelismo, nossos doutores e nossa vocação geral de “teóricos”, de “clérigos” e de “eruditos”.

§17
Falando ainda de “catolicismo” e de “não modernidade”, porém, faria falta uma alusão a certas transformações (ou melhor, novamente, escassez delas) no plano estritamente religioso, nesse quadro de relativo atraso que se compõe com a Contra-Reforma, o Concílio de Trento, a Inquisição, a escolástica e o monopólio jesuíta da educação - coisas de que a Península Ibérica se fez, mais do que ninguém, reserva e baluarte. Uma certa ausência de dissenso, mudança e ruptura, marca aparentemente o campo espiritual de um modo geral. Isto é, também o religioso, não menos relevante para o nosso assunto do que o estritamente filosófico e científico, com respeito ao desafio do desenvolvimento da filosofia como coisa civil entre nós - já que filosofia, religião, ordem social e regime cultural continuam a se cruzar nos começos da Idade Moderna e, claro, mesmo depois. Registre-se, então, a ausência na nossa matriz e na nossa formação (além da relativa ausência de Renascimento, de Filosofia Moderna e de Iluminismo liberal), de traços mais nítidos de Reforma protestante e, em especial, do protestantismo radical. Portanto, a ausência também da conquista e da experiência, por exemplo, de certa tolerância e pluralismo modernos (aquele desenvolvido em razão dos conflitos de religião, não a “tolerância mediterrânea” a que se refere Camus, que tem mais a ver conosco e com o catolicismo). Ou seja, de modo mais geral, não teria havido aí, com mais força, no próprio campo religioso, praticamente nada de não escolástico nos séculos XVI e XVII, nem muito menos antes. Nenhuma daquelas expressões que, mesmo contraditoriamente, prefiguraram, seja na Itália ou na Holanda, na Escócia ou na Irlanda, o pensamento moderno e os novos movimentos religiosos reformistas. Aparentemente, não surge nem se adota aí ninguém querendo começar alguma coisa, em termos de pensamento, romper com a tradição mais estéril e buscar novos pontos de partida - a energia aventureira e o arrojo ibéricos expressando-se, em vez disso, admiravelmente, na expulsão dos mouros e nos descobrimentos de além-mar.
As implicações da ausência da experiência protestante e do protestantismo radical não se reduziriam, contudo, ao predomínio absoluto da escolástica, à (quase) ausência de outras correntes de pensamento, e de inquietação nesse campo, como na teologia. O protestantismo radical representaria também um certo golpe na hierarquia e na dependência com relação à mesma, bem como uma transformação nos horizontes da vida do espírito. Como no caso, que nos interessa aqui, do “livre exame” das Escrituras (com assistência pessoal do Espírito Santo), com relação ao qual o próprio protestantismo vai recuando. E, o que também queremos destacar, como no caso da centralidade da “vida ordinária” como valor: Que o mundo, o século, a vida ordinária e o fazer a ela associado tenham dignidade para o espírito e para seu empenho de conhecimento, não é, portanto, nem haveria de ser, algo posto isoladamente pela nova idéia de ciência de Bacon ou mesmo de Descartes. Nem só pela defesa de Hume dos common affairs of life, ou, bem antes dela, pela censura de Montaigne aos homens que acham que pelo uso da razão habitam um mundo diferente. A esse respeito, uma das definições de civil que, na minha opinião, deveria encontrar algum eco no nosso modo de fazer filosofia, é justamente, como se pode ver no dicionário, “reconhecido para fins da vida ordinária” - além de liberto, et pour cause, da fôrma escolástica e de todo traço de ancien régime.
Antes de passar ao ponto seguinte, no entanto, devo deixar claro que não sou assim tão cegamente moderno, nem muito menos “protestante”, nem quero desconhecer as qualidades de uma cultura e de uma sociabilidade “pré-modernas” e “católicas”. E quero reiterar, caso isso seja mesmo necessário, que toda essa narrativa histórica, de um acentuado reducionismo, quer representar apenas um recurso heurístico, enquanto destinada a contrastar – ou não – com o que se segue. Senão vejamos.

§18
FINALMENTE A MODERNIDADE ENTRE NÓS: A VIRADA TÉCNICA – E, EM PARTE, PLURALISTA - DA FILOSOFIA.

Salto agora, e já era tempo, para um poderoso avanço do trabalho da filosofia entre nós, no Brasil, principalmente nas últimas quatro décadas (apesar dessas dificuldades e limitações atávicas a que tenho aludido), a partir de um desenvolvimento universitário baseado principalmente em São Paulo e depois, eu diria, também no Rio Grande do Sul. (Sem querer com isso negar a existência de trabalhos filosóficos de valor, no país, dignos de nota e muito relevantes para nós, anteriores ou exteriores a esse desenvolvimento - o que, ao contrário, faço questão de afirmar). Refiro-me a um grande avanço com relação àquele modelo/matriz acima descrito, avanço feito em nome da técnica e do rigor, de um método e espírito de análise, valioso recurso de formação e finalmente algo de “científico” e “crítico” no nosso espírito filosófico: um fazer e praticar filosofia centrado no estudo minucioso do texto e da démarche do filósofo canônico (aquele do “hagiológio”, com f maiúsculo), numa mais que bem-vinda ida às fontes capitais. Em oposição a um estudo mais diletante e menos sistemático, e a um ensino mais doutrinário e sem pluralismo, pouco laico ou livre. Isso tudo, então, parecendo implicar num corte com as raízes ibéricas tradicionais, com seus modos e representantes, a favor de outras matrizes, as mais centrais e clássicas. Isto é, a favor de um contato direto com o trabalho das máximas metrópoles da filosofia na Europa. Estou falando, repito, de filosofia universitária e desenvolvida em programas de pós-graduação, pois a filosofia virou coisa universitária há já alguns séculos (o que, como vimos, não quer dizer que fora antes atividade individual dissociada de qualquer comunidade de elaboração – academia, liceu, stoa, escola).
Com o avanço de que falamos, a expansão do fazer filosofia europeu que fincou pé e avultou na histórica e gloriosa Universidade de Paris, na Idade Média adiantada, chegou finalmente daí ao Brasil, tantos séculos e desenvolvimentos depois, com o nosso adensamento urbano moderno capitalista industrial e após a intensificação da imigração européia não ibérica. O que deveu significar um vínculo regular e institucional (para dar lugar a uma necessária transferência de “tecnologia”) com o fazer filosofia aí onde ela era muito bem feita ou. melhor, estudada. Em primeiríssimo lugar, a França, católica e latina como nós, nossa natural metrópole espiritual, cultural e acadêmica, pátria da grande escolástica e do grande racionalismo moderno, bem como do positivismo, da neo-escolástica e do espiritualismo dos séculos XIX e XX. Em segundo lugar, depois da França, e em parte via alguns dos nossos gaúchos de ascendência correspondente, a Alemanha. Pois, tratando-se de filosofia, a alemã tem entre nós um prestígio incontrastável e muito merecido, podendo-se até falar de uma nostalgia dessa Alemanha como pátria mais verdadeira (espiritual, digo) da filosofia e do filósofo, nos últimos séculos. Portanto, de um modo geral, escola francesa e matrizes de pensamento alemãs, em ambos os casos magnas metrópoles européias da filosofia - quer dizer, da “filosofia continental”. Excluída então, em grande medida, a matriz anglo-saxônica (que, sob esse aspecto, decididamente não ganhou a Grande Guerra), exclusão não tanto como pensamento, mas sobretudo como modo ou estilo de fazer filosofia.
De qualquer maneira, filosofia de primeira mão, transplantada assim, universitariamente, como de fato foi, através de grandes professores franceses, ela poderia agora florescer aqui, no nosso quadro de relativa pobreza, num nível superior ao “natural” do nosso solo, contexto ou tradição. Como se viu depois, se não um projeto de “Brasil Grande”, pelo menos uma Instauratio Magna filosófica, uma interiorização de procedimentos superiores (através de visitas e programas de intercâmbio). Associada a uma espécie de cancelamento ou colocação entre parênteses de outras referências, nossas ou não, de nossa realidade (que alguns de nossos pensadores haviam anteriormente tentado enfrentar). Uma cesura que infelizmente chegou inclusive a cortar com a própria cultura de língua portuguesa, como se fosse penoso batermo-nos com nossa relativa não-centralidade, com nossos limites, com nossas coisas enfim. (Cesura acompanhada também de um desinteresse por saber como fazem filosofia outros países semelhantes ao nosso, sem muita tradição e lastro filosóficos, algo sobre o que eu pessoalmente tenho grande curiosidade.)

§19
MODERNIDADE, INTERNACIONALIZAÇÃO, FILIAÇÃO: O ACESSO DIRETO ÀS FONTES CANÔNICAS.

Essa virada técnica e acadêmica da filosofia, de que estou tratando agora, consumada entre nós, de modo mais conspícuo, de umas quatro décadas para cá, representa mesmo algo de extraordinário para um país até pouquíssimo tempo sem universidade. E é de fato, nesse sentido, um autêntico “milagre brasileiro” (em boa parte simultâneo ao outro, sob a mesma ditadura militar), que sucedeu de alguns anos à sua (da universidade) mais que tardia – mesmo para a América Latina - criação entre nós. Consideradas nossas circunstâncias, é realmente um salto e um atalho, que não seria de estranhar não significasse exatamente um aggiornamento pleno e um ganho líqüido (pois “fôrmas” e “arranjos” pesam sobre os cérebros dos vivos), esse passar a fazer um trabalho de tamanha qualidade em tão pouco tempo. Tendo como resultado uma rápida elevação do nosso nível de assimilação e de elaboração de matrizes européias de pensamento, pela metodologia da escola francesa de “leitura estrutural” da obra filosófica, de dois historiadores franceses da filosofia – Martial Guéroult e Victor Goldschmidt, para ser mais preciso. Parte importante desse esforço impondo, com muito cabimento, o aprendizado aprofundado de língua estrangeira, isto é, da língua de uma importante tradição filosófica ocidental e, mais especificamente, da língua da obra clássica ou do autor canônico a ser estudado (pois se trata sempre do estudo de um autor canônico). Eventualmente o inglês e mesmo o italiano, mas principalmente o francês e, certamente acima deste, como para tantos filósofos franceses (tradicionais ou vanguardeiros), o alemão. Mais do que isso: aquele esforço podendo implicar num vínculo estreito com suas respectivas culturas e história, pois a ênfase não seria tanto numa dessas línguas enquanto “língua franca” (como para nós o espanhol e para o mundo todo o inglês), de acesso a uma bibliografia mais vasta e de comunicação num espaço maior de discussão, “globalizado”, em congressos e colóquios internacionais e revistas estrangeiras numerosoas.
Quanto a isso, ressalvada a importância do francês (e, na minha opinião, também do espanhol), o mundo ultimamente filosofa e filosofará cada vez mais em inglês, como Foucault chegou a fazer e como Habermas freqüentemente faz. A ênfase, estaria antes, entretanto, não na idéia de uma língua franca, mas naquela, também muito válida, de um instrumento para o acesso mais fiel à fonte, à obra no original. Idéia válida mesmo com risco de exageros (e limitações), especialmente quando o objetivo não for fazer apenas exegese de texto e história da filosofia. Com esses exageros, da língua instrumento poderíamos inadvertidamente passar a uma língua, digamos, de completa filiação, isto é, de fixação no universo de pensamento de um autor europeu e mesmo de uma cultura nacional européia - como numa espécie de emigração espiritual definitiva. Isso sem falar nos casos, felizmente cada vez mais raros, do uso da língua “metropolitana” como “código tribal”, até para ostentação forçada e rendição provinciana, uso certamente condicionado pelos traços de ancien régime cultural de que tenho falado. E aí, lógico, nada como o alemão (ou o grego), como se tomássemos Heidegger ao pé da letra. De todo modo, se entre Alemanha e França nosso coração balança, a “moda” do pensamento alemão entre nós, pelo que vimos, está associada à própria influência francesa, influência de uma “ideologia” francesa caudatária do pensamento alemão, que, portanto, não transpareceria apenas em nossas posições e cacoetes positivistas, escolásticos e grã-racionalistas. Poderia estar, por igual, na devoção a Marx (e Freud) tanto quanto na devoção a Nietzsche, na devoção a Hegel e Husserl como naquela a Heidegger. Pois, em se tratando de filosofia, participamos integralmente da reverência francesa aos três Hs e aos três “mestres da suspeita”, e, de um modo mais geral, à teoria e ao pensamento alemão “extraordinário” dos séculos XIX e XX.

§20
Pessoalmente, acho a filosofia alemã (além de tudo representada por expressões tão fascinantes) uma das três mais importantes tradições nacionais do pensamento filosófico ocidental moderno. Desconheço outra mais rica ou interessante, outra tão dada a nos descortinar tamanhos horizontes críticos e tão extraordinárias viradas históricas. Contudo, é também aquela expressão filosófica mais difícil, proverbialmente mais obscura e metafísica, reveladora de uma inigualável energia especulativa, expressão inseparável das características e qualidades da língua alemã (até o século XIX, ainda escrita em “gótico”), que alguns daqueles pensadores se dispuseram exatamente a sublinhar e explorar. Uma língua, além de tudo, na qual é maior a distância entre a expressão comum e aquela erudita, e cujo aprendizado satisfatório é um projeto de vida. Falo nisso para admirar a curiosa e reiterada vocação alemã da filosofia brasileira (de Portugal e Península Ibérica passamos à Alemanha!), valendo talvez indagar qual a ponte, o que nos une nessa aliança particular: Traços de sobrevida de ancien régime? algo de Junkertum? as dificuldades com a modernidade liberal e com a democracia? a vocação teoricista? a influência teológica e religiosa? Não sei. O fato é que há precedentes e prolongamentos históricos dessa nossa opção preferencial pela Mitland (Alemanha e arredores a leste e sudeste), envolvendo uma predileção por vertentes de pensamento capazes de abrigar preciosos elementos críticos. Mas também, em muitos casos, capazes de abrigar elementos pouco civis, que podem, claro, e de forma enriquecedora, ser aproveitados civilmente, mas que não deixam de ter a ver com uma cultura que há pouco ainda se batia por consolidar-se, ela própria, como plenamente civil e democrática.
Não seria só, então, mania francesa mais recente. Pelo menos entre nós, a particular influência alemã é coisa bem mais antiga, como se antanho já se intuíssem – ou já operassem - as curiosas aproximações entre Brasil e Alemanha, que alguns fariam depois com tanto gosto (e com a ajuda do marxismo): retardo do capitalismo, burguesia relutante, revolução abortada, via prussiana, etc. De sorte que, depois da escolástica, do ecletismo e do positivismo franceses, poderíamos falar mesmo de uma surpreendente vocação alemã da filosofia brasileira - uma outra curiosa (nesse caso, felizmente, virtuosa) conexão alemã na América do Sul. Pena que, junto com o patrocínio francês da filosofia alemã (e também da própria), por aquela escola, não seguíssemos, ao reverso, o cumprimento alemão (v.g. Nietzsche) ao civilizado e civil esprit francês (v.g. Montagne, Voltaire), e que fosse este, então, que os professores missionários franceses mais se tivessem empenhado em exportar. Mas acho que ele não combina com estilos “missionários”.

§21
LIBERALISMO, LIVRE EXAME E PLURALISMO (RELATIVO) NA FILOSOFIA. TAMBÉM ALGUM SECTARISMO.

Não obstante isso - e deixando por um momento de lado essa digressão, precoce, sobre eventuais exageros -, a nova e histórica virada francesa da filosofia brasileira, de que estamos falando, além de técnica e sofisticada, significou, ademais, e certamente por isso mesmo, um modo de fazer filosofia mais livre e autônomo, mais secular e crítico, mais moderno enfim. Em oposição a um filosofar mais ibérico, conservador e “de direita” – pelo menos em parte aproximado do Regime Militar de 64, e, em parte da parte, anti-liberal, e até, em alguns casos, anti-moderno e ultramontano. Um novo modo, assim, livre e pluralista, ainda que talvez envolvendo algum sectarismo com relação ao pensamento de direita e mesmo liberal, bem como, já dissemos, com relação ao pensamento nacional e nacionalista em geral. E, de par com isso, como acabou sendo, um filosofar sob certa hegemonia de um horizonte marxistizante, ainda que fosse um que não cedia à tentação do ideologismo e do doutrinarismo, mas que sustentava valores como o cuidado, o rigor e a qualidade da elaboração, no melhor estilo da mencionada escola francesa (acrescido do ideal “teórico” alemão). Isso, quem sabe, até para defender-se à direita (e à esquerda!), circunstancialmente, na conjuntura do Regime Militar, com as bandeiras da competência e da técnica (e da “isenção”), e com o capital (simbólico) da academia em geral e de grandes centros e tradições filosóficos europeus em particular.
Pessoalmente, acho que, por trás disso tudo, o que o movimento significou mesmo foi uma chegada, ainda a meias, do liberalismo e da modernidade européia, ao modo de se fazer filosofia no Brasil (sim, o espírito de análise, o livre exame e o pluralismo na filosofia). Embora aparentemente ninguém aí fosse muito liberal, nem protestante, nem morresse de amores, antes o contrário, pelo pensamento filosófico liberal. Mas tratava-se de liberalismo em oposição a uma filosofia mais conservadora e doutrinária, especialmente em sua versão de “catecismo” - de manual e de segunda mão. Com o que a virada técnica, moderna e pluralista da filosofia entre nós não teria sido dada pelos nossos liberais (de direita), que, por sua vez, curiosamente, seriam – eles e outros - menos cosmopolitas, “internacionalistas”, do que essa “esquerda filosófica” tão internacional, digo, tão francesa e européia. Tratava-se, antes, de um pluralismo de filósofos e filosofias (o tal “panteão” a que tenho me referido), enquanto objeto de estudo respeitoso, mais do que de paradigmas de fazer filosofia - que pluralismo de paradigma não é coisa de atividade científica que se preze. Em todo caso, tudo isso, como sugerimos, envolvendo – a pretensão de – ultrapassar, finalmente, a acanhada tradição/filiação filosófica ibérica (e ibero-americana) e a filosofia “amadorista”, em busca do contato direto com uma tradição superior, de cultivo profissional da filosofia. Envolvendo em geral um claro desinteresse, até um verdadeiro isolamento sanitário, com relação a nossa produção nacional, com relação a nossas experiências de pensamento e de espírito, na filosofia, no direito, na teoria social, na ciência, na literatura, na arte, na política. Um isolamento, portanto, não só com relação ao pensamento filosófico nacional e ibero-americano, como igualmente com relação ao conjunto da nossa vida e conjuntura espiritual, e, for that matter, até material. Um exagero pouco feliz e pouco católico (ainda que compreensível).

§22
“INTERIORIZAÇÃO” DA FILOSOFIA EUROPÉIA: FILOSOFIA COMO HISTÓRIA DA FILOSOFIA, LEITURA RIGOROSA DE SISTEMAS FILOSÓFICOS.

Racionalista, pluralista e de qualidade, a filosofia técnica (ou melhor, exclusivamente, a história da filosofia), voltada para o texto capital, deu na sofisticação do trabalho, no cuidado com as noções, na formação, entre nós, de especialistas nos filósofos canônicos e até de um indispensável vocabulário filosófico de língua portuguesa. Deu em confiáveis traduções e importantes edições, críticas, em língua portuguesa, coisas de valor inestimável e até, eu diria, histórico. Tudo isso envolvendo muito esforço, estudo e espírito de rigor, e mesmo virtudes como a humildade e a paciência. Esse o resultado da admirável disposição dos nossos filósofos de não fazerem estudos de segunda classe, mas de nível internacional: estudos e comentários e exegeses da filosofia canônica, de nível europeu. Até melhores do que vários dos estudos metropolitanos sôfrega e ingenuamente - e muitas vezes mal - traduzidos e publicados por editoras brasileiras, em muitos casos eivados de equívocos grosseiros de leitura e interpretação, de que nem ficaríamos sabendo se não fizéssemos nosso próprio trabalho sobre as fontes.
Certo que, de modo geral, jamais lá fora mostraram maior interesse por esse nosso trabalho de comentadores/historiadores, que tivesse então alguma relevância no quadro internacional, cumprindo papel numa divisão mundial do trabalho filosófico. Era mais substituição de importação (dependente, por certo), aqui para dentro mesmo. Pois, com tanto desemprego super-escolarizado e super-titulado, a Europa já tem especialistas suficientes, às centenas e aos milhares, inteiras divisões e batalhões, fazendo para ela esse tipo de trabalho, sobre sua grande filosofia e sobre seus grandes filósofos históricos (embora, mesmo entre eles, seja cada vez menor o número dos que acham que isso é fazer filosofia). Pela sua qualidade, contudo, nossa produção de uma filosofia de comentários tornou-se um dos setores nacionais mais internacionalmente equiparados. Permitindo até certo desdém, vejam só, pelo filosofar de outras metrópoles, em outros campos hegemônicas e/ou primeiro-mundíssimas, sociedades infinitas vezes mais escolarizadas, e até de vanguarda, por exemplo, no campo da investigação científica (como a Holanda, a Espanha, a Austrália ou os Estados Unidos).
Creio que há mesmo uma grande importância de contar com um setor de pensamento rigoroso e “liberal” (pluralista) dentro do nosso país, envolvido com o mais sofisticado estudo direto das fontes canônicas de pensamento filosófico. Mais ou menos da mesma maneira que ter alguns campeões olímpicos em esportes clássicos pode refletir-se favoravelmente na qualidade geral dos atletas do país, com a elevação de seu desempenho, bem como refletir-se na generalização e no melhoramento da cultura física do conjunto da população não atleta. Um setor interno rigoroso e tecnicamente sofisticado, de língua portuguesa, no campo das idéias e da argumentação, só poderia ter um efeito muito benéfico sobre o conjunto do desenvolvimento cultural, científico, político, educacional, etc., do país, por mais que a baixa escolaridade geral e ainda outras condições atrasadas lhe sejam um limite e um emperramento. Embora, de outro lado, na ausência de uma certa dinâmica e de uma articulação virtuosas, corra-se o risco de fazerem-se aqui estudos de nível internacional de pouca relevância para lá e para cá, sem que o efeito benéfico mencionado acima necessariamente se opere. O que significaria antes, acho eu, um “regime antigo” de filosofia, não seu regime civil, se for só isso: ter-se aqui com isso apenas um setor europeu extra-territorializado, satisfazendo as veleidades de segmentos intelectualizados da nossa pequena burguesia ou das nossas elites nacionais, olhos postos na Europa ou em que outra metrópole seja. Quem sabe, apenas mais uma expressão da nossa vocação de “Belíndia”: no caso, filosofia da França (ou da Bélgica mesmo, que somos todos católicos), com escolaridade média da Índia.

§23
LECTIO SEM DISPUTATIO: O FUNDAMENTO SEGURO. MAIS EXAGEROS POUCO “CATÓLICOS”.

Quanto ao que chamei, por analogia, de “livre exame”, digo, o acesso direto e livre às fontes, mesmo esse poderia eventualmente perder-se ainda em escolástica (e sempre só história da filosofia), com uma conversão das obras clássicas em tantos textos absolutos e “autoritativos” (com perdão do anglicismo), dos quais não se poderia sair, com os quais não se poderia dialogar e lá para as tantas tomar liberdades. Esse acesso às fontes, submetido a um molde “escolástico” (onde os textos dos grandes pensadores estariam infinitamente acima de qualquer interlocução, crítica ou uso), acesso voltado apenas para a decifração e o comentário, pareceria antes uma multiplicação da figura medieval do insuperável Magister, em tantos “Aristóteles”, cada um cercado por seus intermediários “oficiais”. Apenas associaríamos mais nomes a Aristóteles, como Descartes, Leibniz, Kant e inclusive Marx (promovido a grão-teórico), mas abordando-os sempre e unicamente com a mesma distância absolutamente respeitosa e escolar. Se se trata de pôr “culpa” lá fora, eu diria que é talvez que Paris e a universidade francesa foram, como já assinalei, sede da grande escolástica, e, séculos depois, da neo-escolástica, do positivismo e do ecletismo. E, por aí, com o “realismo dogmático” da nossa tradição, teríamos, junto com a “sacralização” escolástica, também um “positivismo” do texto. Mesmo que eu não tenha o direito nem a pretensão de reduzir “Paris” ou a “universidade francesa” a nada disso, e que os desenvolvimentos atuais da filosofia, na França, tenham quase que completamente deixado isso tudo para trás.
De qualquer sorte, se for daquele jeito, não creio que se possa ver aí propriamente realizado o que chamo de modelo civil da filosofia, isto é, superado seu “antigo regime”. Teríamos em vez disso apenas um estudo histórico, passivo, dissociado da vida civil ou comum, e uma filosofia “não mundana” e mesmo ainda diletante, desdenhosa do mundo e dos homens. Permaneceríamos apenas, então, numa filosofia escolar e academicista, onde a atividade meio, de formação, ou inserida numa divisão de trabalho que deveria contemplar outros desdobramentos, tornar-se-ia atividade fim, final e exclusiva: formar pesquisadores (“científicos”) de texto, da academia e para a academia, para formar outros pesquisadores, e assim por diante, ninguém consumindo nada disso, ninguém lendo ninguém, como infelizmente muitas vezes acontece. O novo paradigma ficaria sendo, então, democrático, pluralista e crítico, ao sair do registro de doutrina dogmática e dos manuais, mas monolítico e escolástico no método, e, como me parece, incivil na sua inserção social, como se todo o fazer filosofia se resumisse à leitura interna da obra clássica (ou promovida a tal), ao comentário escolar do texto canônico. O que poderia ser também, em alguma medida, reflexo do fato de que essa nova experiência da filosofia no Brasil, tão positiva por um lado, teve a limitação de se desenvolver, em grande parte, sob o alienante e inibidor Regime Militar de 64.
Por outro lado, nesse fazer filosofia apenas como leitura técnica ou erudita da obra canônica, poderia emergir ainda uma face conservadora até com relação a outras expressões do próprio pensamento europeu (inclusive do antigo, grego e romano), como se a filosofia fosse mesmo e tão somente - e só nesse espaço devêssemos nos mover - filosofia de sistema (ou como tal sempre tomada). De novo, a “Coleção Os Pensadores”, os filósofos tomados sempre, por vezes até contra o espírito de sua obra, como matrizes absolutas, frente às quais deve cessar tudo quanto a nossa musa poderia eventualmente cantar. O próprio Marx aparecendo aí muitas vezes travestido no herdeiro legítimo e no verdadeiro Ausgang de toda essa filosofia sempiterna, determinando, então, a pauta de seu estudo, a jusante, e especialmente a montante, fora de cujo curso não haveria nada digno do nome nem de maior interesse. Uma representação que nos poderia então fixar num ancien régime da filosofia, afastado da idéia civil da filosofia como um discurso mundano em progresso, uma elaboração pública, numa comunidade aberta. Ou seja, como coisa ateniense e romana, de significado para a Cidade e para as pessoas, de relevância cultural e, pelo menos por esse lado, de sentido prático e mundano. De acordo com nossa descrição no §11: em vez de “grande” e “metafísica”, “pequena” e “dinâmica”.

III- A FILOSOFIA ENTRE NÓS COMO COISA CIVIL

§24
FILOSOFIA E WELTFLUCHT. RELEVÂNCIA, FORMAÇÃO E USO DE NOSSOS RECURSOS INTELECTUAIS.

Sem falar no que poderia espreitar de – paradoxalmente - “subdesenvolvido” na idéia de equiparação/replicação, se recaída no “ser mais realista do que o rei”: a idéia de equiparar-se aos europeus em sofisticação e mesmo em dificuldade (e aí onde eles são mais difíceis), e em geral apenas como comentadores. Pois o fato é que hoje em dia não se estuda nem se faz filosofia só assim, nem na França nem na Alemanha (nem muito menos na Inglaterra, nos Estados Unidos, no Canadá ou na América Espanhola), o que terminaria sendo um jeito muito brasileiro de fazer filosofia, tão sintomaticamente brasileiro, esse fazê-lo quase que apenas como história da filosofia, segundo uma pequena escola, de Guéroult e Goldschmidt. Afinal de contas, não são só “nacionalistas”, nem são só nossos colegas latino-americanos, que dizem que fazemos apenas história da filosofia. Até surpresos e desconcertados, são também professores de filosofia alemães e franceses - quando não se comprazem simplesmente com a conquista “colonial” de áreas de influência. E nisso pode estar ainda envolvida a questão de bom ou mau uso de nossos recursos intelectuais: nossas restritas energias de pensamento, de elaboração intelectual (elaboração não de ficção nem imediatamente prática), fixadas na tarefa da história da filosofia européia. A permanência, de estrita observância, nesse modelo “técnico”, “científico”, “histórico”, da filosofia, podendo resultar, para nós, em algo semelhante à dominância (tempos atrás, quase exclusiva) do modelo analítico da filosofia para o EUA: rigor, técnica, cientificismo, e pouca relevância cultural, social, ou mesmo acadêmica (embora o modelo de trabalho da filosofia analítica seja, de outro lado, francamente democrático, dialógico e cooperativo). Também no nosso caso, um modelo seguro, um fundamento seguro, uma verdade dura, o texto, a obra, permitindo aos filósofos imitarem o fazer da ciência, numa forma de juntarem-se aos cientistas (no nosso caso, não de fato), sempre o mais longe possível dos artistas, literatos e críticos, dos ideólogos, políticos e pensadores sociais e da cultura, dos ensaístas, publicistas e jornalistas - as mais das vezes longe dos cientistas também.
Aí espreitaria possivelmente a ameaça de irrelevância da nossa produção filosófica, ninguém lendo nem dialogando com o que os outros escrevem, nem dentro da comunidade de filosofia e da universidade, nem muito menos fora dela. Isso tomado aqui em oposição a uma produção pública, por artigos, numa construção e conversação mais ampla, de seres humanos civis, enfrentando também temas e questões filosóficos do nosso tempo, do mundo, dos homens, dentro de uma certa vida de idéias. A esse respeito, os títulos e subtítulos de nossos livros e teses, bem como os nomes de nossos encontros e colóquios, mesas e painéis, freqüentemente mostram, sem assumi-la, uma tímida vontade, quase sempre reprimida, de entrar no temático, no nosso tempo, no mundo real, na “vida civil”.
É certo que – e vale sempre reiterar -, de qualquer maneira, não obstante eventuais e inevitáveis exageros e deformações, o estudo (mas que estudo?) da obra canônica será sempre um recurso valioso e necessário de formação e até askesis (envolvendo paciência e humildade). Não só como exploração do texto, mas como suspensão provisória do juízo e dos motivos pessoais, em contraposição a um “utilitarismo” estreito da filosofia - um apenas e logo servir-se dela, sem estudá-la nem cultivá-la. Esse modelo técnico sendo, além disso, vale sempre lembrar, como recurso escolar de formação, um verdadeiro aprimoramento com relação a práticas muito amadorísticas e pouco cuidadosas, um aprimoramento que ainda falta chegar a muitos cantos do país. Um modelo que, portanto, mesmo eventualmente estando em algum lugar exaurido, ainda não esgotou os benefícios que pode trazer para o trabalho da filosofia na universidade brasileira em seu conjunto, nem deve, claro, em parte alguma, ter suas inestimáveis aquisições perdidas. Desde quando se evite – é o que me preocupa - uma fixação estéril e exclusiva nesse passo escolar/formador, no seu molde mais estrito. E embora se possa também duvidar de que, na sua inteireza e ortodoxia, ele sirva sempre, tal e qual, e com exclusividade, para todos os lugares, cursos, níveis e ambientes, onde entretanto pode haver muito bem um jeito decente de se fazer filosofia - também no caso de áreas aplicadas, no ensino secundário e na necessária abertura (não charlatã) aos usos da filosofia na sociedade.

§25
MUNDANIDADE (SEM BARATEAMENTO) DA FILOSOFIA COMO COISA CIVIL.

O “entre nós” e o “civil” da filosofia (com que começamos este texto) não significam necessariamente um determinado pensamento engajado, ou uma filosofia nacional ou de “terceiro mundo”. A filosofia sendo civil, já será sempre suficientemente “engajada” e “nossa”, aberta ao que é nosso e a tanta coisa de língua portuguesa. Muito menos se trata aqui de qualquer idéia de uma filosofia única, no conteúdo ou no modo de fazer, aquela que nos caberia, sem pluralismo e na verdade sem filosofia: um pensamento fechado, uma doutrina. Ao contrário, o modo civil da filosofia, como um certo viés, não impõe nenhum conteúdo, comporta uma pluralidade de linhas de trabalho, e coexiste ainda, ecumenicamente, com tantas outras. Como em qualquer país, digamos, civilizado, onde a filosofia nunca é dominantemente, nem muito menos exclusivamente, história da filosofia, comentário ou exegese de textos, interpretação victor-goldschmidtiana de sistemas. Nem é inteiramente isolada do mundo, da vida da sociedade, da cultura e do conhecimento, desinteressada do seu tempo e do seu meio, e voltada exclusivamente para o passado, para dentro de si mesma e da academia.
De outro lado, não precisamos negar que a filosofia, em suas raízes, é coisa européia mesmo, e, sendo européia, não vejo por que considerá-la por isso menos nossa – como a nossa própria língua portuguesa. Além de européia, em suas fontes canônicas, ela é também, claro, coisa intelectual e elaborada, e até um certo luxo (como a liberdade e como a cultura dita superior). A idéia de uma filosofia civil não implica tampouco no juízo de que alguma filosofia poderia estar aqui fora do lugar; embora, por outro lado, questione um fazer filosofia totalmente fora do tempo e do espaço, sub specie aeternitatis, ou sob o olhar da História e como Theoria, sempre com maiúsculas. Não entendo que a realidade brasileira (o que quer que seja isso), tão problemática e crítica como é, nos imponha uma determinada agenda filosófica, nem muito menos uma linha única de pensamento, como se estivéssemos condenados (aqui no Brasil e na América Latina) à não-variedade e, ademais da pobreza material, àquela filosófica. A filosofia civil não haveria de ser uma filosofia nacional, nem um “sendero” ou um “brigadismo” (mesmo que só do espírito) - ainda que às vezes professores de filosofia revelem inclinação para essas coisas, talvez por acharem que sabem o que é o verdadeiro bem, que têm um acesso privilegiado (independente dos outros homens) à verdade, e que não estão eles próprios, no seu pensamento, determinados por seus interesses e gostos particulares (e sabe-se lá mais o que), que os coloquem a par com os outros mortais. Assim, não defendo qualquer doutrinarismo supostamente justificado pela urgência de uma determinada intervenção política, como se não houvesse tempo nem sentido para o estudo e a investigação livres e dedicados.
Dito tudo isso, no entanto, convenhamos que, mesmo sem tal imposição, poderia ser bom que os filósofos se interessassem por contribuir para exorcizar a barbárie que nos assedia (nem que fosse por atenção às condições, inclusive materiais, para nosso próprio trabalho e para a vida do espírito), e que tal preocupação não ficasse sempre inteiramente fora do seu trabalho filosófico. O viés civil da filosofia pode realmente ter algo a ver com a idéia de um país em construção – ou, com perdão do exagero, em risco de desfazer-se, ou de não se fazer. Depois desses protestos feitos, portanto, não há razão para não darmos vivas aos vários modos de fazer filosofia. Do professor de história da filosofia, comentador de obras canônicas; do dedicado cultivador de um pensador clássico (num projeto para a vida toda ou pelo menos para duas décadas); do erudito que abre à nossa fruição os píncaros do pensamento ocidental (principalmente de seus pensadores mais “extraordinários”), pelo lado, ao meu ver, predominantemente estético; do crítico arrevesadamente desconstrucionista, que, para ser absolutamente radical, não tem termos de comunicação com um público mais amplo; do filósofo analítico cujo investigação pode ter um efeito saneador salutar sobre todo o resto do trabalho de pensamento no país. Pois creio que o filósofo é hoje inevitavelmente um pluralista também com relação aos diferentes modos de fazer filosofia, e entendendo que é bom que haja pessoas explorando o pensamento em todas as direções e de todas as formas, em divisão de trabalho e em complementação recíproca, mesmo que também em compreensível tensão, mas sempre em coexistência e também em diálogo, ecumênica e catolicamente postos em contato, uns com os outros, esses diferentes regimes da filosofia.

§26
“FIM” DA FILOSOFIA, ESTUDO DOS “GRANDES” E EMULAÇÃO DOS “PEQUENOS”

O filósofo não apenas pode começar o dia com a leitura do jornal como sua “oração matinal”. Pode também, de algum modo, tomar no seu filosofar as coisas do tempo e do lugar, seus temas e questões, como ensaio e filosofia temática e “aplicada”, deixando por um momento de lado a história da filosofia e o comentário escolástico do texto. Não só não creio que o trabalho da filosofia por isso fique necessariamente mais pobre, como estou certo de que os discursos em circulação na academia e na sociedade ficariam, digamos, mais ricos. Pois o problema não é que não tenhamos os nossos Descartes, Hegel, Hobbes ou Heidegger (e quem os tem?), mas que nos detenhamos todos apenas no seu estudo “interno”, ponto, e gastemos aí todas as nossas ditas energias especulativas. É certo que não temos filosofia canônica ou clássica na nossa cultura enquanto nacional. Mas só por isso devemos permanecer exclusivamente no comentário dos grandes filósofos? Por que não termos, em vez disso, pequenos filósofos relevantes? Não me parece que baste, para uma atividade sustentada pela sociedade, ficar apenas comentando a “Coleção Os Pensadores”, que lhe caiba apenas repetir a grã filosofia – como já disse. Mais do que apenas estudos de grã filosofia, em última análise apenas exercícios (alguns pouco relevantes para além de sua dimensão formadora), acho que interessa também que tenhamos estudiosos significativos, acadêmicos interessantes - partícipes, como filósofos, de uma vida de idéias, sobre ciência, política, cultura, linguagem, vida privada, etc.
Certamente que precisamos todos continuar estudando – e segundo diferentes abordagens - os filósofos históricos (a começar pelos alemães, franceses e ingleses, além, claro, dos gregos e medievais), eventualmente produzindo estudos sobre eles, e, claro, boas traduções e edições críticas de língua portuguesa. Mas podemos também estudá-los menos ociosamente, procurando tomá-los como interlocutores, e, sobretudo, na minha opinião, estudando os promovidos a “grandes” enquanto tomamos como modelo os “pequenos” - pois são esses que podemos mais certamente emular. E, quando o propósito não for fazer história da filosofia, seria o caso de abrir mão da apreensão exaustiva de um clássico, em benefício de uma apropriação não escolástica dos mesmos, orientado para o seu uso. A esse respeito, entendo que a própria idéia do “fim da filosofia”, isto é, do “fim” do que tenho chamado aqui de “grã filosofia” – como quer que se o compreenda: decretado pelo empirismo, pelos philosophes, pelos jovens hegelianos, pelo positivismo, por Marx, por Nietzsche, pelo pragmatismo, por Wittgenstein ou quem seja – poderia envolver não apenas o fim de uma certa filosofia (metafísica, filosofia de sistema, filosofia pura e autônoma), como também uma abertura maior quanto aos modos de estudar e de fazer filosofia.

§27
Onde quer que deva conduzir um Ausgang da “filosofia clássica”, “de sistema”, “tradicional” - depois da obra do Iluminismo, da ciência moderna, das críticas à metafísica, e, sobretudo, na minha opinião, depois do aprofundamento da vida moderna, da vida civil e democrática -, entendo que haveria agora chance também para um filosofar mais livre e menos pretensioso, até menos obscuro e mais fruível, que isso também é civil. Para além do peso da “grã filosofia”, de sistema, como ideal, e do peso da escolástica, como real, não teríamos mais, depois do “fim” da metafísica e da filosofia de sistema, a filosofia puramente como Fach (que, em alemão, junto com significar matéria ou disciplina acadêmica, traduz-se também, sugestivamente, por “gaveta” e “prateleira”). Depois dos maîtres-à-penser e Führers da filosofia, teríamos o fim do fazer filosofia exclusivamente centrado no autor “divino”, e o fim do ancien régime da filosofia e de suas sobrevivências. Que não significaria o fim de um trabalho competente, exigente e estudioso – que isso também é civil. De sorte que, na conclusão da filosofia clássica e metafísica, numa virada diferente da esperada por alguns, não teríamos a sua substituição por algo como a ciência positiva, ou por algo como uma grande teoria superior, crítica, nem teríamos um “fazer-se mundo” daquela grande filosofia, como um “final”, gran finale. Teríamos simplesmente um fazer-se finalmente “mundana” - isto é, civil - da filosofia.
A propósito disso, quando faleceram faz alguns anos, em datas muito próximas, Mário Henrique Simonsen, Darcy Ribeiro e Paulo Francis, eles foram evocados, por um entusiasmado âncora de noticiário de televisão, como importantes homens brasileiros de idéias – com evidente exagero em pelo menos um desses casos. Sem agourar aqui o falecimento dos colegas, fico pensando quais seriam os nossos filósofos vivos – se algum, e creio que os há – que mereceriam registro semelhante e, de preferência, com mais razão. E daí me pergunto se não teria cabimento visar, nos nossos cursos acadêmicos, também a formação de “pequenos filósofos não escolásticos”, em vez de apenas “pesquisadores” (historiadores) da filosofia canônica – freqüentemente, como já sugeriu o maior filósofo céptico brasileiro, eternos não-filósofos. Tomando, isso sim, não só história, mas várias outras maneiras de fazer filosofia, como ensaísmo e filosofia temática e aplicada também. Pois, como já disse, mesmo nossos colegas alemães e franceses (e não apenas filósofos amadores e professores latino-americanos de filosofia) surpreendem-se repetidamente, e isso já é até proverbial, com a nossa timidez filosófica, e nos vêm demasiado presos à história da filosofia enquanto imaginamos estar fazendo filosofia “como na Europa”. Como se, na falta, por exemplo, de Bachs e Beethovens, nos dispensássemos de ter Egbertos Gismontis e Toms Jobims, ou como se aqueles bastassem para que não houvesse lugar para esses. Coisa que, descontado agora o assumido reducionismo dos parágrafos 14 a 17, seja a que “fôrma” e “arranjo” pertençam, posso dizer com segurança que temos - na literatura, no pensamento social, na filosofia mesmo.

§28
VIDA DEMOCRÁTICA, VIDA DE IDÉIAS E FILOSOFIA CIVIL.

Podemos apreciar nossos trabalhos de filosofia como que “de cima”, abstratamente, nunca suficientemente “densos” e “pesados” em comparação com a filosofia dos clássicos canonizados. Ou como que “de baixo”, na sua função, por exemplo, de esclarecer temas e problemas, de acrescentar aos discursos em circulação na academia e na sociedade, os filósofos profissionais até promovendo de algum modo o acesso da filosofia a um círculo mais amplo (como agora se preocupam em fazer, com a ciência, os próprios cientistas.) Isso, me parece, também implicaria não levar longe demais a idéia de estudar a filosofia pela pura filosofia, e sempre de um modo “passadista”. Contemplando, em vez disso, de algum modo, para a mesma, uma referência não estreita de utilidade como relevância – acadêmica e cultural, para a ciência e para as humanidades, para a política, a educação, o crescimento pessoal, a sociedade e a vida enfim. Mesmo que isso pudesse envolver risco de alguma perda, se também pudesse, de outra parte, corresponder a certo ganho. Entretanto, não seria necessariamente rebaixar o trabalho da filosofia, por exemplo, contribuir de algum modo para, com ela, enriquecer o nível do debate social, cultural, ético, político, científico e acadêmico. Pois entendo que o papel da filosofia nessa vida social e cultural é também, ainda que por interpostas mediações, torná-la argumentativamente mais sofisticada e conceitualmente mais rica, junto com mais inventiva, imaginativa e livre. Sem que a filosofia com isso se meta a mestra da sociedade ou da cultura (já que a sociedade passa ao largo da sua “mestrice” e escolhe seus próprios guias no plano do pensamento, para todos os efeitos práticos, e, mesmo quando esses são filósofos, toma-os numa apropriação muito peculiar e livre).
Adotar uma orientação dessas não significaria necessariamente promover o amadorismo, driblar ou dispensar as atividades de formação, implantar o “achismo” pobre e sem argumento, a ausência do trabalho de conhecer e freqüentar os (alguns) filósofos e de tomar as falas deles (com conhecimento) para construir a sua. Não significaria deixar de cultivar - e de dar a ler aos nossos jovens - os “clássicos” (e não só os da filosofia), que, além de tudo, educam a inteligência, a imaginação e o gosto, e formam aquilo que se chama “espírito”. Mas pode significar escapar ao receio de não fazer jus à “forma absoluta” da grande filosofia. Civil já quer dizer, por si mesmo, profissional, competente, legitimada numa comunidade própria, e tendo de algum modo horizonte público. Já quer dizer estudiosa, mesmo que não fechada em si mesma, escolar e academicista. Continuará, portanto, sendo um princípio o não sair “refutando” filósofos sem atentar para seu argumento, sem procurar dar conta do que um autor diz, com todo o rigor possível na fluidez em que opera o discurso filosófico, e segundo o uso que lhe pretendemos dar. Entretanto, seria também o caso, como já disse, até de ousar aceitar alguma perda (no terreno da mera “reconstituição”), para sair da irrelevância, para que a contribuição brasileira na divisão internacional do trabalho da filosofia não resulte de todo dispensável. Mas, sobretudo, para que ela cumpra seu papel na nossa sociedade e na nossa vida do espírito – na vida dos homens. Façamos, nesse caso também, a melhor filosofia “brasileira” do mundo, o que, afinal de contas, acaba sendo uma determinação inevitável, como vício ou como virtude. Ou seja, simplesmente, façamos filosofia.

§29
O que é mesmo civil na filosofia, então? Para não começar aqui um outro texto, reitero simplesmente que a filosofia (civil) é discurso, logos, verbo entre nós. Como entendo, a filosofia (civil), eu dizia no início, tem a ver com a Cidade, com certo arranjo e funcionamento sociais, em termos de convivência e de realização humanas, bem como com um espírito de investigação, busca e discussão, de invenção e imaginação. Antes de tudo, como dirão os dicionários, civil é, também, reconhecido para fins da “vida ordinária”, e a filosofia civil será relevante, wordly, diesseitige, citerior. Entendo que a filosofia civil é livre, igual, independente, experimental, horizontal e pluralista. E também urbana, cortês, polida e sem afetação - não será “abstrusa”, nem “metafísica”, nem “escolástica”, nem “ancien régime” Civil, não custa nada lembrar, também se distingue de militar, de religioso, de dogmático e de autoritário. Embora militar e religioso também possam e devam ser civis, como a ciência e a academia igualmente precisam ser. Não tenho, portanto, nada contra o religioso, o aristocrático, o militar e o hierárquico, antes pelo contrário, pois tudo isso pode ser civil. Civil, na filosofia, contrapõe-se a “superior”, elitista, intelectualista, autoritário, não solidário, monológico, mas sem que eu tampouco tenha nada contra o superior e sofisticado, como se preferisse o simplório, o vulgar e o não elaborado. Por último, e para concluir, sei que alguns poderão achar que o ponto de vista civil, na filosofia, é muito limitado e limitante, senão mesmo anti-filosófico. Ele já foi contraposto a um ponto de vista “humano” (menschlich) superior, e poderia resultar na anulação de alguns dos elementos mais ricos da filosofia dos nossos dias (como aqueles herdados do romantismo e do idealismo alemães). Poderia aniquilar seu elemento, digamos, mais revolucionário, fecundo e radical (como aquele presente, entre outros lugares, num pensamento francês recente) para uma crítica dos limites de nossa cultura e da nossa política. Poderia até suprimir seu encanto e sua poesia, o que, isto sim, seria o mais lastimável. E resvalar, por fim, para sei lá que pensamento filisteu (sem que eu queira aqui ofender os filisteus). Sobre tudo isso se poderia dizer muita coisa. Estou convencido, no entanto, de que o ponto de vista civil (do mesmo modo que a vida civil) pode, felizmente, ser ainda de mil maneiras alargado e enriquecido por aqueles elementos todos – também a perspectiva mais crítica, contanto que despojada de pretensões dogmáticas de grã teoria. De todo modo, porém, espero que, se a idéia de um ponto de vista civil (ou civil turn) em filosofia tiver que ser rejeitada ou condenada, que isso seja proposto e feito, sempre, seja na prática como na teoria, civilmente.

José Crisóstomo de Souza

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