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FEUERBACH, CRÍTICA DA RELIGIÃO, CRÍTICA DA MODERNIDADE
José Crisóstomo de Souza

O que penso segundo a medida do gênero humano penso como o homem não pode deixar de pensar, como o indivíduo deve pensar se quiser pensar normalmente, conforme a Lei e dentro da Verdade. Feuerbach

A crítica que Ludwig Feuerbach (1804-1872) faz ao cristianismo é a crítica da sua deformação, em última análise, egoísta, individualista, que ele vê submeter ainda a própria Modernidade secularizada e filistéia, e até acirrar-se com ela - em contraposição ao que seria uma virada na direção do ser natural dos homens, essencialmente genérico e amoroso. Feuerbach desenvolve um ponto de vista filosófico humanista-comunitário, contra a religião “subjetivista", enquanto trata de resgatar o que para ele é seu núcleo verdadeiro, humano, deformado pela fantasia, pela teologia, pela especulação. Tal núcleo seria justamente a “essência genérica”, amorosa e comunitária, dos homens, constituída por seus predicados mais nobres, suas potências supremas - o Razão, o Amor, a Vontade - atribuídas a Deus no cristianismo. É tal essência humana genérica, recuperada, que deverá ser agora, no lugar de Deus e da religião, o fundamento (Grund), real, terreno, objetivo e universal, para a moral, a política e a cultura, na Modernidade, e para a crítica de suas deformações ou patologias. Dessa maneira, a “virada antropológica” feuerbachiana seria também uma virada essencialista e fundacionista, que pode acabar confrontando os homens existentes, e suas formas contingentes de associação, com uma nova medida absolutizada, uma nova idealização hipostasiada. É tomando a essência genérica do homem como fundamento normativo absoluto que Feuerbach quer confrontar criticamente a Modernidade e lhe oferecer uma alternativa. Mais do que isso, “deduzida” diretamente da religião, essa essência deve ser capaz de suscitar uma nova devoção, mais efetiva do que a merecida por Deus no cristianismo (tomado como religião “absoluta”, pois, mesmo como “ilusão” e “patologia”, é capaz de “revelar” ao homem sua verdadeira essência universal). A última coisa que Feuerbach gostaria é de deixar o homem moderno sem um ideal superior.
O filósofo do “ponto de vista antropológico”, do homem como Gattungswesen (ser genérico, essência genérica) e como “ser supremo para o homem” - este é Feuerbach. É o pensador do altruísmo e do amor, como Friedrich Engels reconhece, com algum embaraço, no Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã. E quer ser também, por fim, o filósofo dos sentidos e da realidade sensível (Sinnlichkeit), embora isso não tenho certeza de que ele consiga coerentemente. Neste texto, trato em primeiro lugar de associar o lado materialista/naturalista, de Feuerbach, à sua crítica do cristianismo e da Modernidade como “alienação” e “egoísmo”. Em seguida, procuro expor, criticamente, a dimensão “essencialista” da sua virada antropológica (vale dizer, da sua crítica/superação do cristianismo enquanto alienação), essencialismo presente na proposta de reapropriação, pelos homens, com força de norma universal, dos virtuosos predicados humanos atribuídos a Deus pela consciência religiosa cristã. Por fim, procuro evidenciar mais claramente um empenho de certo modo restaurador, junto com fundacionista e idealizante, contido no humanismo com que Feuerbach enfrenta o “ateísmo dissimulado” (expressão dele) dos Tempos Modernos. Tento fazer essas três coisas acompanhando as fórmulas textuais do filósofo, e tendo como horizonte um enquadramento contemporâneo de sua concepção, mesmo que eu não chegue a desenvolvê-lo inteiramente.
Com efeito, a descendência filosófica de Feuerbach, como o entendo aqui, inclui não apenas, por exemplo, Moses Hess, Karl Grün e Karl Marx, no séc. XIX, mas também Karl-Otto Apel e Jürgen Habermas, no nosso tempo. Podemos encontrar em Feuerbach um precedente da crítica, de nossos dias, ao sujeito e às filosofias do sujeito. Mas, sobretudo, o problema de que ele se ocupa pode ser entendido como aquele de um fundamento normativo, ao mesmo tempo “último” e “destranscendentalizado”, para a conduta dos homens, na moral e na política, numa época descrente, secularizada, “pós-metafísica”: a Modernidade. Creio que esse é um terreno em que vale a pena explorá-lo, valorizá-lo e criticá-lo, ainda que eu o faça aqui de modo apenas tentativo. Por outro lado, é certo que o alcance da virada antropológica de Feuerbach não se esgota no que é visado neste meu comentário crítico, isto é, no seu essencialismo especulativo fundacionista. Seus esforços por desenvolver uma filosofia - ou uma “não-filosofia” - que tenha a medida dos homens reais e da vida vivida, bem como sua elaborada (semi-freudiana) hermenêutica psicológica, crítica, da religião cristã (como “sonho” do espírito humano, onde se manifestam nossos “segredos” mais íntimos), merecem, no meu modo de ver, uma renovada atenção, oferecendo preciosas sugestões a quem estiver interessado em explorar essas duas pistas. De resto, o pensamento feuerbachiano - mesmo dentro do escopo limitado de que me ocupo, no período 1839-45, em torno da Essência do Cristianismo - apresenta, como qualquer pensamento interessante, ambigüidades e alterações de ênfase que podem relativizar juízos taxativos a seu respeito. Tendo, aliás, a achar que suas “contradições” têm a ver com um louvável esforço para expressar o que escapa a modos mais tradicionais de filosofar.

I - Materialismo/Naturalismo vs Subjetivismo/Egoísmo, Cristão/Moderno
De acordo com a principal obra de Feuerbach, A Essência do Cristianismo (1841), a doutrina judeo-cristã do criacionismo só pode ter nascido onde os homens concebem a natureza como produto e objeto de uma vontade subjetiva, e, logo, como meio para seus fins estritamente particulares (EC 243, 247). O cristianismo perpetua o mesmo viés de sentido prático-utilitário do judaísmo (466), e a Modernidade até aqui se constitui num prolongamento e realização de tudo isso. Bem outra é a concepção com a qual Feuerbach se afina, que entende a natureza como seu próprio fim, seu próprio fundamento; uma concepção que corresponderia à consciência espontaneamente materialista e estética dos Antigos, dos gregos em especial. Para esses, a natureza não foi criada, ela “tem em si mesma o fundamento de sua própria existência”, é em si e por si dotada de valor, “divina” e “bela” por si mesma (243). Por isso, na contemplação e na adoração, os pagãos humilhavam-se diante dela e dedicavam-lhe seu coração e sua inteligência (247-8). Na criação ex-nihilo, ao contrário, está expresso o mandamento de tratar a natureza apenas como objeto de consumo, de desfrute pelos homens (249). Nela, o homem erige Deus em todo-poderoso criador do mundo “a fim de erigir-se a si mesmo em [seu] destinatário e senhor” (466). “A criação tem apenas um objetivo e um sentido egoístas”, e o princípio do judaísmo e do cristianismo é “o mais prático do mundo”, o egoísmo que “concentra o homem sobre si mesmo” (465, 250). Tal é também o significado oculto da crença em milagres, que só pode prevalecer “onde a natureza é considerada como objeto de livre arbítrio” (245).
Para Feuerbach, judaísmo e cristianismo são monoteístas porque têm por meta apenas o eu absolutizado, e por fundamento “o excludente e monárquico sentimento de si” (EC 245, 251), em última análise, o egoísmo. E, na Modernidade, o idealismo alemão, malgrado ele próprio, expressa, no plano filosófico, basicamente o mesmo vício do cristianismo e, sobretudo, sua deformação teolótica. Como diz o conciso Programa Sistemático daquele idealismo, rabiscado pelo jovem Schelling: “A primeira idéia é a representação de mim mesmo como um ser absolutamente livre; com esse ser livre, consciente de si, surge ao mesmo tempo um mundo inteiro, do nada, a única verdadeira e cogitável criação ex-nihilo”. Por isso Feuerbach desenvolve, na Contribuição à Crítica da Filosofia de Hegel, de 1839, contra essa filosofia, basicamente a mesma denúncia naturalista anti-subjetivista, a favor do “Ser”, que vai fazer na Essência do Cristianismo, contra a religião cristã. Ele refuta o nada, que tem um papel central, por exemplo, no idealismo hegeliano, como pura “ausência de pensamento” e princípio de “desrazão”. De modo que a “criação a partir do nada”, da natureza, que receberia seu sentido moderno no idealismo alemão, só pode representar “um impensável ato de vontade vazia e de puro arbítrio” (CFH). Como vimos, Feuerbach prefere ficar com a eternidade da matéria e com o materialismo dos Antigos, que correspondem à afirmação da plena realidade do ser, em oposição à pretensiosa e arbitrária subjetividade que a nega para tomar o seu lugar. É justamente essa subjetividade que se transforma, no idealismo alemão, na “consciência de si”, com a qual o indivíduo entende poder erguer-se, por si mesmo, e guardar em si mesmo, sozinho, a mais plena autonomia e universalidade.
Na Questão Judaica, o feuerbachiano Karl Marx retoma e aplica esse aspecto da crítica ateísta de seu mestre humanista, condenando o egoísmo e a necessidade prática como “fundamento da religião hebraica”, e também, em seguida, verdadeiro “princípio da sociedade moderna” (QJ 59). Quanto ao cristianismo, este não passaria, também para Marx, de um “judaísmo sublimado”, de uma doutrina que nasceu do judaísmo e que para ele retorna na Modernidade: “O cristão era o judeu teórico e o cristão prático é novamente judeu”; o “subjetivismo” do cristianismo deve transformar-se necessariamente no “egoísmo” de que proveio (62-3), o que dá no individualismo moderno. Por isso a democracia moderna (com sua enganosa idéia de sujeito individual portador de direitos) é acusada por Marx de “cristã” e “espiritualista”, por encontrar seu fundamento na “ilusão” de autonomia pessoal, subjetiva, do indivíduo; por fazer de cada sujeito individual, “não cultivado”, um eu soberano. Em tempos anteriores, como “espírito do Estado”, diz Marx, o cristianismo chegara a representar uma “vida genérica” limitada, mas na Modernidade representa nada menos que “o espírito da sociedade civil burguesa”: a fragmentação, a concorrência, “a guerra de todos contra todos”. Agora, a religião não é mais a essência da comunidade, é antes a essência do seu oposto: da diferença, da separação, da independência do particular. Agora ela é apenas a afirmação da “absurdidade particular”, do “capricho” mesquinho, da “vontade arbitrária” (28-9). A autocompreensão dos homens, na Modernidade, que assume inteiramente aquela imagem de subjetividade livre, do homem como um ser individualmente soberano, “separado”, “contraposto” aos outros homens e à comunidade, baseia-se, de acordo com Feuerbach (mutatis mutandis, também de acordo com Marx), numa ficção. Uma que só o ponto de vista ateu feuerbachiano, naturalista e comunitário, saberia “dissolver”, da maneira mais completa e conseqüente.
A equação subjetivismo = egoísmo está na base do ponto de vista crítico que Feuerbach desenvolve na Essência do Cristianismo, associando - tal como Espinosa, no séc. XVII - a fantasia criacionista à “ilusão” da subjetividade e da personalidade livres. Que a crítica materialista da subjetividade pode ser remetida ao anti-criacionismo da metafísica de Espinosa, fica visto na Ética (e também no Tratado Breve, I e II), onde ele condena a idéia de que mundo e natureza foram criados para os homens como “meios para sua utilidade pessoal”, em proveito da sua “cega apetição” e “insaciável avareza”. Para Espinosa, aliás, a idéia de uma causa final para qualquer coisa natural não passa de uma “ficção”, em que os homens concebem Deus como se concebem ilusoriamente a si mesmos (Ética I, apênd., p.116). Deus (ou, o que seria a mesma coisa para Espinosa, a Natureza) não age por “livre arbítrio”, nem por “irrestrito bel-prazer”, como na imagem da criação ex-nihilo. Ele é “causa livre” e “absoluta” por agir apenas de acordo com a necessidade de sua natureza, e não porque seja vontade livre como concebida na teologia tradicional (ibid. I, props. 17, 32). De modo semelhante, Feuerbach entende que é na criação ex-nihilo, em cuja representação afirma-se a “potência do arbítrio” e do “bel-prazer”, que a subjetividade primeiramente se põe como princípio onipotente do mundo (EC 232). “Na Criação, o homem afirma a divindade da vontade subjetiva ilimitada” (231). A criação ex-nihilo é a “última confirmação pensável” da “Personalidade”, que se põe acima e fora do mundo, “sem comunidade com o ser da natureza” (237). O que corresponde, no idealismo alemão, como vimos, ao estatuto “ontológico” da pretensiosa Consciência de Si, em última análise, “solipsista”.
Com efeito, rejeitando a imagem de um Deus criador, oposto à natureza, Feuerbach também recusa a de um Deus pessoal, como exaltação da personalidade fechada, indiferente às determinações substanciais do mundo. A noção de um Deus pessoal corresponde à idéia da personalidade humana como subjetividade separada do mundo e abstraída de uma constitutiva unidade Eu-Tu (EC 237, 241). Donde o motivo da inclinação para o panteísmo presente em Feuerbach e em Espinosa: o panteísmo identifica o homem com a natureza, enquanto o cristianismo, o teísmo, separa-o dela, promovendo-o “de parte a Todo”, “a um ser absoluto por si” (238). O culto do Deus pessoal representa, então, em última análise, para Feuerbach, a celebração da ficção de um homem individualmente livre e ilimitado, diante do qual a pressão do ser (ou pressão da essência, Wesensdrang), do mundo, só pode aparecer como constrangimento (237-242). Também para Espinosa, a personalidade é antes uma ficção, no sentido de algo sobre o que “não podemos formar um conceito claro e distinto” (Pensamentos Metafísicos, cap. VIII), como exigiria qualquer bom cartesiano.
Aqui vamo-nos deparar com um aspecto digno de nota da proposta central feuerbachiana, de “reapropriação”, pelos homens, dos “predicados” (impulsos, capacidades) humanos - como o Amor - atribuídos, no cristianismo, a um Deus pessoal. Uma reapropriação que se realiza justamente em prejuízo da “personalidade”, ou da ilusão da personalidade concebida ao modo do idealismo e da religião tradicional. Como atributo de um ser pessoal, diz Feuerbach, “o Amor”, o maior dos grandes predicados humanos essenciais, tem no cristianismo o significado de “Graça”, aparecendo então como um sentimento “arbitrário”, “subjetivo”, “pessoal”, inessencial e carente de fundamento (EC 415 ss.). Não assim quando o Amor é uma força autônoma, constitutiva da impessoal essência genérica do homem. “Amor” e “Personalidade” são, para Feuerbach, princípios antagônicos, diante dos quais ele opta decididamente pelo primeiro. Por isso, ele vai concluir surpreendentemente que “Amor é materialismo”, e assumir o materialismo como sua posição filosófica geral. É que o materialismo representaria a completa refutação da “personalidade arbitrária”, “ambiciosa” e “dominadora”, que quer acima de tudo “fazer-se valer”. O materialismo envolve uma afirmação da plena essencialidade (Wesenhaftigkeit) do mundo sensível, oferecendo-se então como o único ponto de vista, não místico, que limita, de modo conseqüente, as pretensões da personalidade que ilusoriamente se concebe como liberta de todas as determinações, limitações e laços objetivos (231 ss.). Por fim, não só o amor (e tudo mais) fica falso, inessencial e arbitrário, quando atribuído prioritariamente a um Deus pessoal como sua fonte e fundamento; não apenas o homem alienado encontra, na imagem de Deus como personalidade arbitrária, a legitimação da sua própria pretensão de ilusórias ilimitação e independência individuais, subjetivas. Também ocorre que, se o amor é, em primeiro lugar, amor de Deus e amor a Deus, será apenas pela comum relação filial com Ele que um ser humano ama outro, e não por este mesmo, isto é, não por um amor humano autêntico.
Enfim, no criacionismo e no idealismo (“subjetivo”), tomando o mundo como “obra da vontade”, tornado assim algo por si “sem valor” e “sem potência”, o indivíduo cristão e, por fim, moderno se convence de sua própria “importância”, “verdade” e “infinitude” (EC 240) - o que absolutamente não agrada a Feuerbach. No materialismo, ao contrário, o mundo é o limite da vontade livre, do sentimento e da imaginação dos homens, exaltados no sonho da religião cristã. O mundo representa “os laços dolorosos da matéria”, pois onde há matéria há “necessidade” e há “limites” (240) - mesmo que tais limites, não sendo arbitrários, não devam ser sentidos como barreiras nem como dominação (CFH 45). É diante desse materialismo feuerbachiano, de implicação moral, que as ilusões e pretensões da subjetividade, premissa de todo egoísmo e princípio da Modernidade até aqui, devem, para Feuerbach, ser criticadas e, por fim, sucumbir, em benefício da soberania do nosso ser essencial, coletivo (digamos, “transpessoal”), e em favor de uma autonomia superior, genérica, para os homens.
II- Os Predicados Substancializados e o Essencialismo/Idealismo de Feuerbach
Na cristianismo, segundo Feuerbach, o homem objetiva e distorce sua própria essência, perde-se dela, para em seguida fazer-se seu objeto, dela transformada em uma pessoa singular, Deus (EC 147-8). Deus é na verdade o homem; bem entendido, porém, não os indivíduos humanos tomados isoladamente, mas o gênero, ou, melhor, sua “essência genérica” (Gattungswesen), tornada separada deles na religião, tornada em algo que lhes é estranho e que se coloca acima deles. O cristianismo equivale a uma relação indireta do homem consigo mesmo e com os outros homens, uma relação com sua própria essência universal, purificada, em que esta lhe aparece como outro Ser, como um Ser transcendente, Deus. Com essa separação/projeção, o mundo fica desdobrado em dois “Reinos” distintos: o divino, o Céu, superior, pleno, de um lado, e, de outro, o humano e temporal, a Terra, inferior, falha. Tal como no “platonismo” - pois apenas o primeiro, o Céu, é, como diria Nietzsche, o Verdadeiro, o “Mundo Verdade”. De acordo com Feuerbach, foi sempre a própria essência infinita, constituída pelos predicados-valor, humanos, reconhecidos como infinitas potências, que os homens exaltaram e reverenciaram na religião. Deus é o homem, e o homem é o legítimo “proprietário” dos predicados atribuídos a Deus: como o Amor, a Sabedoria, a Verdade, a Justiça, a Vontade, o Bem (EC 130-2). Compreendido isso, por uma nova consciência, expressa na filosofia feuerbachiana, os homens ficarão enfim “re-generados”, “re-naturalizados”: desalienados, autônomos, adultos, verdadeiramente livres - e “re-unidos”, de uma vez por todas, à sua essência, ao seu coração e uns aos outros. Se os predicados de Deus revelam-se como infinitas excelências humanas, estas, por sua vez, não remeteriam a qualquer transcendência, a qualquer fundamento que não seja o próprio homem. Finda, portanto, o império de uma deformação e de uma heteronomia, finda o jugo da alienação e da duplicação do mundo. E a cultura constituir-se-á doravante sobre novas bases, não-teológicas, não-metafísicas, tendo apenas o próprio homem, a comunidade humana (pois é nela que está a essência, não no homem individual), como seu fundamento e meta. De acordo com Feuerbach, inaugura-se assim um tempo inteiramente novo, e toda uma velha história, à qual ainda está presa a Modernidade do seu tempo, ficará por fim deixada para trás.
Pode haver ainda, entretanto, uma pedra nesse caminho, de Feuerbach e dos homens. O problema está em que a virada antropológica feuerbachiana absolutiza, como realidades em si e por si, aqueles predicados ideais herdados da religião cristã, tomados como infinitos, e como constituindo uma essência substancial, universal e infinita, como algo ainda “sagrado”, acima e além dos falhos homens individuais de carne e osso. Perfeitos, infinitos, absolutos os predicados e a essência expressos na religião; finitos, relativos e imperfeitos os homens reais existentes. Revertidos à suposta essência humana, os predicados antes “cristãos”, sempre “divinos”, todos eles “nobres”, constituem-na como fundamento normativo último e absoluto, “sagrado” (sic), e tornam-se agora mais absolutizados do que quando atribuídos a um ser transcendente pessoal. Poderíamos supor que, para que os homens se tornassem, conforme a intenção de Feuerbach, realmente livres e autônomos (i.e., não mais alienados e amesquinhados, como na religião), aqueles predicados e valores capitais deveriam ser destituídos de infinitude, independência e transcendência com relação aos homens históricos particulares, às suas possibilidades individuais e mesmo sociais. Essa seria a maneira de os homens recuperarem efetivamente sua “propriedade”, enquanto seus “criadores” e “possuidores” originais: poder tê-los à sua medida e ao seu alcance, como históricos e dessacralizados. Entretanto, isso talvez não seja bem o que é visado na humanização feuerbachiana do divino, e talvez então o que ele imagina como uma grande virada histórica não chegue a constituir a base de uma nova condição, desalienada e livre, vantajosa, da cultura e dos homens, na Modernidade.
Vejamos. Segundo a Essência do Cristianismo, o enfraquecimento e mesmo a completa negação daqueles predicados-valor, mantida a afirmação de seu sujeito que é Deus, são uma característica deplorável da sociedade moderna, resultando numa condição de grande hipocrisia, numa “aparência de religião”, que mal disfarça um “ateísmo prático”, uma impiedade generalizada (EC 131-2) - mais ou menos como no “Deus morreu” nietzschiano. É em oposição a isso que Feuerbach se mobiliza, clamando contra o “egoísmo” e a “descrença” dos “Tempos Modernos”, contra um cristianismo que ele condena como pobre, covarde, epicurista, imoral (97 ss.). Diante de seus críticos, Feuerbach admite que, de fato, sua nova concepção preserva, restaura e reforça aqueles grandes valores cristãos, mantidos acima dos indivíduos reais, agora como atributos não exatamente seus, mas “predicados da Natureza e da Humanidade”, “propriedades naturais e humanas” (ECUP 222). E ele o faz tomando-os como constitutivos de uma essência humana genérica, única, universal, objetiva, que ele de certo modo “deduz”, herda e restaura, do cristianismo. Entretanto, Feuerbach assume assim o risco de limitar-se a inverter a velha ordem sujeito-predicado, e a livrar-se tão-somente do antigo sujeito, fictício, pessoal, Deus. Ele não dirá mais que Deus é Amor, Verdade, Justiça, etc., mas que esses predicados são “divinos”, “sagrados”, infinitos e absolutos, em si e por si, e que constituem nossa essência. Feuerbach entende que foram sempre os predicados (e não o sujeito, Deus) o que teve importância para os homens, o que a eles se impôs, que “mandaram” neles. O Amor, por exemplo, não é sagrado aos olhos dos homens por ser um predicado de Deus, mas é concebido como predicado de Deus por ser divino e poderoso, “em e por si mesmo” (EC 139). Ora, diante disso, o desafio estaria em “recuperar” os predicados, da religião, sem reproduzir, desta, os vícios de heteronomia e idealização, sujeição e amesquinhamento, dependência e esvaimento. E sem tampouco reproduzir, da teologia, e mesmo da filosofia, os vícios essencialistas de “duplicação” e “abstração” da realidade. Caso em que, entretanto, os predicados poderiam perder, perigosamente, sua substancialidade, sua universalidade, seu caráter de “em si”, de “absolutos” - sua “sacralidade”.
Pode-se perguntar pela eficácia e mesmo aceitabilidade da “revolução” antropológica feuerbachiana, que deveria pôr fim a toda uma era de alienação, se, depois da virada antropológica, que quer ser também uma virada em direção ao sentimento e aos sentidos, os homens encontram-se regidos e dominados, mais ainda, por aquilo que supostamente sempre os dominou e regeu: os mesmos mandamentos sacralizados, os mesmos predicados “transcendentes”, “infinitizados” - postos além do seu alcance, de suas práticas e de suas particularidades. De fato, depois da inversão feuerbachiana, no novo credo, filosófico, que Feuerbach oferece, corre-se o risco de ver os predicados submeterem seus “criadores” e “possuidores” ainda mais despoticamente, pois eles apresentam-se agora como naturalmente “seus”, suas próprias “pulsões”, inseparáveis da “sua” própria essência substancial universal. Esse é em parte o questionamento levantado contra nosso humanista, por exemplo, pelo proto-existencialista Max Stirner, também integrante da esquerda hegeliana. Quem, no entanto, parece querer simplesmente “suprimir” os predicados, mais do que encontrar-lhes eventualmente uma base nas contingentes condições de existência dos homens, nas suas relações e nos seus sentimentos mais espontâneos. Da mesma maneira, ainda no movimento pós-hegeliano, Bruno Bauer, embora do ponto de vista de um sujeito racional universal de talhe claramente metafísico, solitária e arrogantemente oposto ao mundo, aos demais homens, à “massa”, entende que o gênero feuerbachiano é comparável, como hipostasia, ao Espírito Absoluto de Hegel. Entende que ele consagra, na sua relação com os homens, a “dependência do indivíduo”, fazendo deste um ser “escravo”, “emasculado”. De modo semelhante ao que diz depois Karl Marx, Bauer aponta, com razão, que a essência concebida por Feuerbach é por ele posta fora de toda “influência e atividade”, além de estendida, “como um manto” pacificador, por sobre as “feridas”, “contradições” e “descaminhos” da sociedade e da história. Entretanto, não creio que seja preciso ser marxista, nem stirneriano, nem baueriano, para entender que o essencialismo da crítica feuerbachiana pode enredá-lo em problemas.
Assim, o ponto de vista de Feuerbach, ao contrário do que promete, poderia não emancipar realmente os homens de toda abstração filosófica e hipostasiação religiosa, de tudo o que, sendo seu (ou, pelo menos, pertencendo ao seu mundo), pretende estar acima e ser independente deles, ter vida própria e enganosamente submetê-los como coisa absoluta. Feuerbach aparentemente não considera a opção de livrar-se da suposta essência, objetiva e universal, una e única, de todos os homens, e declarar aqueles valores como humanamente constituídos, finitos, históricos - talvez até convencionais, culturais pelo menos. Em vez disso, depois da suposta revolução feuerbachiana, como ela está formulada, os predicados passam a ter um caráter ainda mais objetivo, autônomo e mesmo transcendente, impondo mais ainda aos homens um reconhecimento absoluto e até uma nova duplicação do real e uma nova cisão deles próprios. Tentando dar conta de sua realidade e da incontornável imposição de seu reconhecimento, Feuerbach chega a dizer que os predicados “demonstram-se imediatamente como verdadeiros” (EC 139), portanto, como inquestionáveis e, mesmo, inamovíveis. Ora, se os predicados herdados da religião tornam-se uma medida única, confessadamente substancializada, como fica a espontaneidade dos seres humanos, nas suas interações uns com os outros, no mundo da vida?
A essência genérica de Feuerbach, que deve tomar o lugar do ser divino tradicional, através da revolução filosófica, ou anti-filosófica, operada por ele, é ainda expressamente um Ser Supremo, e assume, malgrado o filósofo, toda a aparência de uma idealidade absolutizada e imposta. Que pode não ter muito a ver com a humanidade real, nem muito menos com os seres humanos reais, existentes, que a compõem, nem estar muito próxima deles, seus supostos “fiéis”, cujas relações deve inteiramente presidir. Ao contrário da “essência” e da “comunidade”, idealizados pelo humanismo filosófico feuerbachiano, os homens reais, de carne e osso, são considerados por Feuerbach como “limitados”, podendo/devendo ser apenas “representantes” ou “deputados” da humanidade (EC 292, 298), pequenos “predicados” e “talentos” do harmonioso gênero humano (140). Não admira que as conseqüências dessa restauradora antropologia (ou antropolatria) acabem por mostrar-se um tanto “platônicas”. Nosso humanista - materialista e supostamente adepto da vida dos sentidos - entende, por exemplo, que é frivolidade admirar no corpo do indivíduo a “forma individual”, mas não assim a “forma humana”, universal, que, ao contrário, “deve-se” admirar (123).
O novo ser supremo feuerbachiano chega mesmo a parecer tão “distante” e “absoluto” com relação aos homens reais particulares, quanto o velho, o da religião. Embora não assuma a forma de um Deus pessoal e tampouco remeta expressamente a outro Mundo ou outro Reino, nem por isso deixa de assemelhar-se a uma Idéia platônica, a uma abstração substancializada, dotada de uma (pseudo-)realidade inteiramente distante dos seres humanos de carne e osso, e de sua conflituosa realidade concreta. A essência de Feuerbach, sua idéia de natureza humana, não parece ter muito a ver com a humanidade como ela é - considerada empiricamente, não especulativamente. Mesmo assim, aquela essência é, segundo nosso filósofo, o que todo homem deve buscar encarnar, realizar em si próprio, como sua natureza absoluta. O que vai redundar numa surpreendente tarefa de despersonalização, de desindividualização, de sacrifício a uma Generalidade. O “Conhece-te a ti mesmo” de Feuerbach é o conhecer-se a si mesmo em sua própria generalidade, em sua essência substancial; é tomá-la como telos absoluto de seu próprio agir, e tratar de erguer-se à sua altura.
A Feuerbach parece suficiente que sua posição não seja exatamente aquela da religião tradicional, da velha teologia e da seca filosofia, que afasta os homens da materialidade do mundo, uns dos outros e de seu suposto ser natural, afetivo, comunitário; que dá em demasia asas a cada um deles individualmente tomado. Já sabemos que, para o autor da Essência do Cristianismo, a religião cristã, enquanto anti- e sobre-naturalista, abriga um viés subjetivista, irracionalista, em última análise egoísta, e, por fim, na sua face moderna, um espírito descrente quase niilista, no interior do qual os seres humanos individuais, na sua particularidade, encontram demasiada importância, demasiada independência, mesmo que “ilusória”. O cristianismo - do mesmo modo que, agora, a Modernidade filistéia - “só tem olhos para o indivíduo”, e absolutamente “não se preocupa com o gênero”; “sacrifica o gênero ao indivíduo”, que fica “divinizado” e erigido em “absoluto”; os cristãos vêm no indivíduo, “imediatamente e sem distinção, o gênero” (EC 291, 293). O cristão Sören Kierkegaard, a propósito, não poderia dar mais razão a Feuerbach, quando diz que, no caso dos seres humanos, “o indivíduo é superior ao gênero, porque cada indivíduo singular é feito à semelhança de Deus” (Diários, II).
Os antigos, os pagãos, ao contrário, entende Feuerbach, sempre consideraram o indivíduo, o particular, através de sua conexão com o Cosmos, com a Natureza e com a Comunidade (EC 290). Entre eles, o indivíduo não se concebia como “solto”; o conceito de homem era “deduzido” e “mediatizado” pelo de comunidade e, mesmo, de natureza. O cristianismo, na medida em que inverte tudo isso, representa, para Feuerbach, uma enorme deformação, um delírio, uma desorientação, uma “patologia psíquica”. É “o maior dos milagres” - diz ele ironicamente, referindo-se à crença em Cristo como Deus - que um indivíduo, por si só, possa encarnar “o Gênero e a Humanidade, na plenitude de sua perfeição e infinitude” (EC 295). É uma estupidez o cristianismo representar o universal (Deus), sob a forma de um indivíduo (Cristo), um particular, incompleto por definição; “tão estúpido como querer representar a cor como realizada em uma cor.” Ao contrário, em termos antropológicos, feuerbachianos, o homem, como “soma de todas as perfeições que estão repartidas entre os homens”, corresponde antes à “Humanidade” e à “Comunidade” (447) - idealizadas, ele poderia acrescentar. Tal é a lição que a Modernidade, secularizada, ainda deve, segundo o ponto de vista novo de Feuerbach, aprender; mas, pelo visto, aprendê-la-á despedindo-se de algumas de suas mais caras ilusões.

III- A Essência Genérica contra o Ceticismo e o Individualismo Modernos
Feuerbach não quer abrir mão de um caráter fortemente “positivo” - e, nesse sentido, segundo ele próprio, “religioso”, embora não “teológico” - para sua concepção. Agora, depois de sua crítica da religião, os homens modernos não serão mais deixados “sem Rei nem Lei”, sem “Ser Supremo”, sem “Sagrado”, sem Ideal. Antes pelo contrário, o gênero humano, ou, melhor, a essência genérica do homem, que lhes fala à razão e ao sentimento, é a nova e definitiva “medida última”, objetiva e universal, deles todos; é a “Lei absoluta”, diz Feuerbach, a realizar. A essência genérica é o “critério” de todos os valores e práticas humanas (EC 111, 134, 298), cabendo-lhe definir e separar o “normal” e o “patológico”. Assim, na concepção feuerbachiana, o dever-ser (“genérico”) fica preservado com a força do que é, do pleno e substancial: “O que penso segundo a medida do Gênero, penso como o homem em geral não pode deixar de pensar (...), como o indivíduo deve pensar se quiser pensar normalmente, conforme a Lei e, portanto, dentro da Verdade” (298-9). Feuerbach não esconde sua preocupação, na crítica da religião cristã, em recuperar o “religioso” - termo a que ele dá uma conotação positiva, por oposição a “teológico”, “especulativo”, “abstrato”. Para ele, só se nega realmente a religião quando se nega o homem, “só se perde a fé em Deus quando se perde a fé no homem” (165). Mas seu homem e a suposta essência genérica que lhe corresponde correm o risco, como vimos, de se revelarem uma abstração hipostasiada, uma idealização substancializada, uma coisa filosófica, oposta à realidade concreta dos homens, à sua finitude, historicidade e contingência, ao mesmo tempo cobrindo tal realidade e às suas contradições com um róseo manto transfigurador.
Nos Princípios da Filosofia do Futuro, de 1843, Feuerbach admite que sua nova filosofia “é na verdade ela própria religião”. Na Necessidade de uma Reforma da Filosofia, de 1842, ele prescreve, textualmente, “que nos tornemos outra vez religiosos”, e que a nova religião seja a política, que deve agora conter um novo ser ou princípio supremo, que já sabemos qual é. É significativo que Engels, num texto da maturidade, o Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã, tenha escolhido celebrar, entre as contribuições do autor da Essência do Cristianismo, precisamente esse imperativo, de que a política seja nossa nova religião (FFC 286). Por si, como entendo, tal imperativo poderia receber uma interpretação razoável, a de que a política de uma sociedade democrática pode eventualmente nutrir-se de uma “religião” civil, democrática, que essa própria sociedade desenvolva. Mas podemos indagar que política seria a feuerbachiana, enquanto dotada de um fundamento filosófico substancializado, uma idéia da natureza substancial e objetiva de todos os homens, tomada como objeto de devoção e encarnada num Estado. Algo que, de um lado, poderia converter-se numa norma despótica e, de outro, numa idealizada identidade essencial de todos juntos, dada e pressuposta, por sobre o caráter diversificado, conflituoso e desigual da sociedade moderna.
Diante de seus críticos, Feuerbach procura justificar a inevitabilidade do novo Ser Supremo, argüindo que os homens, na sua finitude, sentem-se necessariamente “limitados” e “imperfeitos”, quando comparam-se uns com os outros e com seu próprio “sonho”. Por isso, sem a religião feuerbachiana da humanidade, eles seriam deixados num “vazio”, num nada que “necessariamente se preencheria pela representação de um Deus”, e, logo, por uma religião de tipo tradicional, senão por uma completa hipocrisia (o que para ele é quase a mesma coisa). Para Feuerbach, o “gênero” - e só ele - é “capaz de simultaneamente suprimir e substituir a divindade e a religião” (ECUP 230). Ora, podemos admitir que a representação de uma divindade e a devoção a um ser supremo qualquer suprem o sentimento de vazio, de desorientação, de limitação, dos homens, na sua finitude. Mas isso não significa que o “remédio” proposto por Feuerbach não corra o risco de envolver a perpetuação de alguns dos mesmos males, historicamente conhecidos, do império dogmático da religião tradicional e da teologia, da especulação e da metafísica. Seu tratamento essencialista e filosófico (metafísico, eu diria) das inescapáveis idealizações humanas poderia encontrar, creio eu, um substituto melhor.
A crítica da religião exposta na Essência do Cristianismo entende que “quanto mais a vida é vazia tanto mais Deus é pleno” (EC 143-4). Por acaso - pode-se indagar - estaria o novo ser supremo feuerbachiano, a essência gênérica do homem, fora dessa “lei”, de tal sorte que sua “infinita potência” não resulte em “miséria” e “perda” para os homens reais, concretos? Parece plausível inverter a relação e voltá-la contra o próprio Feuerbach: quanto mais a essência genérica, como qualquer outro “ser supremo” (ou “abstração”, ou “hipostasia”), for “rica” e “poderosa”, tanto mais os homens continuarão “pobres” e “esvaziados”, sujeitados e alienados - desempoderados. Não é essa a dialética da religião como alienação? Se for assim, a passagem da “propriedade” dos predicados a um novo Ser ou Essência, que aparentemente paira acima das limitações dos homens e das comunidades reais particulares, de sua historicidade, de sua contingência e de suas contradições, poderia não ser bem aquilo de que a Modernidade precisa ou está disposta a aceitar, após depor do seu trono, com boas razões, a religião tradicional, e após colocar em questão a própria metafísica, tanto na teoria quanto na prática.
Feuerbach, no entanto, insiste em dizer aos seus críticos que não é ele quem coloca a essência humana fora e acima dos seres humanos reais e de suas comunidades reais; que, ao contrário, a Essência do Cristianismo constitui-se no “único livro onde a divisa da Modernidade, a personalidade, a individualidade, deixa de ser uma figura de retórica vazia de sentido” (ECUP 225). Se os homens reais, diante de uma distinção entre eles e sua essência genérica, aparecem irremediavelmente cindidos em duas partes - de um lado o seu falho eu empírico, e de outro seu grande Eu universal, como sua perfeição -, isso seria obra dos próprios homens, e não dele, Feuerbach. É isso, aliás, que explicaria a própria existência do fenômeno religioso (226), com sua característica duplicação, uma que, pelo visto, o autor da Essência do Cristianismo agora não se importa em preservar na filosofia nova. Ele diz, ainda, aceitar, finalmente, que “assumir a própria individualidade” é sempre ser “pessoal” e, mesmo, “egoísta”; mas, acrescenta, é também ser “comunitário” ou mesmo “comunista” (227). Pois, logo de saída, o indivíduo humano só se completa em dois: homem e mulher. Como “dois não têm finalidade nem sentido”, logo se seguem três: “depois da mulher, a criança”. E, já que “o Amor” não se pode satisfazer com uma só criança, “única e incomparável”, ele “conduzirá adiante e além” (228). Por aí vai o nosso filósofo comunitário, natalista e familial; supostamente, por essa via afetiva, levado pelo Amor, na direção de um “Nós” que abarque toda a Humanidade, dotada, harmoniosamente de uma mesma e única essência substancial, feuerbachiana, novo objeto de reverência “religiosa” e de dedicação “amorosa”, nova medida, norma e telos humano universal.
Entretanto, os homens modernos parecem mais apegados do que Feuerbach gostaria àquela “figura de retórica vazia de sentido”, sua “ilusória”, “subjetiva” autonomia individual, e mais ainda a suas identidades particulares e preferências privadas, “refutadas” pelo filósofo. Do mesmo modo que permanecem, na realidade, como indivíduos, famílias, classes, etc., inapelavelmente diversificados e opostos, no interior de uma mesma sociedade, cindida por contradições, conflitos e desigualdades. Assim, a pura e simples rendição da particularidade de cada um a uma suposta universalidade substancial, ao mesmo tempo real e ideal, como sua essência e medida, pode não ser bem a idéia contemporânea de uma superação “positiva” de eventuais marcas remanescentes, indesejáveis, da dominação do cristianismo e do modo “teológico” de pensar, na Modernidade. Mesmo numa perspectiva de superação do individualismo moderno no que ele tem de abstrato e irreal, e até de também essencialista. Em sua própria defesa, Feuerbach, depois de dizer que “não é nem materialista nem idealista”, vai definir-se a si próprio, essencialmente, como “homem” e “comunista”. “Como somente considera a essência do homem na comunidade”, diz ele, na terceira pessoa, “Feuerbach é homem comunitário, comunista” (ECUP 237) - por essência, ele deveria acrescentar. Diante disso, pode-se entender que uma certa dificuldade para assumir a diversidade, conflitividade e contingência dos modos humanos de ser - o que vale dizer, das relações entre os homens - mantém Feuerbach ainda no interior daquilo que se pode chamar de platonismo e essencialismo filosóficos, no interior do que seria ainda um modo teológico, metafísico, de pensar. O autor da Essência do Cristianismo está, ao que tudo indica, demasiadamente preocupado em estabelecer, para os homens e para a crítica da Modernidade, um fundamento filosófico normativo último, unitário, universal e plenamente objetivo - dado, “extraído” do Cristianismo por sua crítica. Por isso ele acaba concluindo que a tarefa da Modernidade é nada menos do que “a realização e a humanização de Deus”, entendidas, entretanto, como sua encarnação numa “essência humana” - universal, substancial, absoluta. Tal realização ou encarnação envolve “a transformação e a resolução da teologia em antropologia”. Ora, se, para Feuerbach, “o verdadeiro sentido da teologia é a antropologia” (EC 105), pode-se entender, ao reverso, que a antropologia filosófica feuerbachiana tem ainda o traço central do velho modo teológico, metafísico e especulativo de pensar, que erige a infinitude contra a finitude, contra a diferença e a contingência dos homens. E pode-se entender que sua antropologia tem esse traço metafísico em demasia para que possa responder, tal como está formulada, aos dilemas da Modernidade existencial, cultural e política. Sua essência genérica, como medida absoluta de “normalidade” e “sanidade”, como uma nova hipostasia e um novo objeto de devoção religiosa, e como nova idealização transfiguradora da realidade, pode não responder satisfatoriamente às exigências do nosso tempo, como referência para uma convivência melhorada entre os homens e uma realização mais plena de todos eles, como Feuerbach gostaria. O que não exclui, por outro lado, que, não obstante todo isso, possamos nos regalar, isto sim, com os momentos de maior beleza poética de sua prosa, com seus “cânticos” aos sentimentos humanos e a uma Sinnlichkeit matizada, à Natureza e à corporeidade humana, e com seus esforços por buscar uma filosofia reconciliada com tudo isso. Coisa rara entre filósofos.

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