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José Crisóstomo de Souza
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A Dominação do Espírito em Plena Modernidade -
José Crisóstomo de Souza[*

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Resumo: A filosofia da história de Stirner - que vai dos antigos aos modernos e além, na direção do indivíduo emancipado - se oferece como suporte para seu desvelamento da verdadeira natureza alienante do cristianismo, para ele reiterada – não vencida - pela moral humanista e pelas ideologias iluministas, tanto quanto pelas reivindicações de objetividade e substancialidade dos conceitos na ciência e na filosofia. Seu ponto de vista, entretanto, é criticado por Marx - como idealismo histórico esquemático e arbitrário - a partir de uma posição materialista e social radical, destinada tanto a refutar a suposta dominação moderna dos homens por ideais, obsessões e idéias fixas, quanto a negar as pretensões de independência do indivíduo stirneriano. Entretanto, na desconstrução stirneriana, estariam em jogo também as próprias ambições práticas, concretizadoras e revolucionárias dos discursos ideológicos modernos.

Abstract: Stirner´s philosophy of history - from ancient to modern man and beyond, towards the emancipated individual - presents itself as a basis for his unveiling of the true alienating nature of Christianity, which is, according to him, reiterated – not overcome – by humanist morals and modern ideologies, as well as by claims of objectivity and substantiality for concepts posed by science and philosophy. His point of view, however, is criticized by Marx - as historical idealism, schematic and arbitrary - from a radical social and materialistic point of view, directed towards the refutation of the supposed modern domination of men by ideals, “obsessions” and “fixed ideas,” as well as to negating claims of independence by the Stirnerian individual. However, in Stirner’s deconstruction, the concrete, practically oriented, and revolutionary ambitions of modern ideological discourses are also at stake.

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Neste texto, vou expor e comparar os discursos de dois hegelianos de esquerda, Max Stirner (1806-1856) e Karl Marx (1818-1883), sobre uma suposta dominação do espírito em plena Modernidade. Uma exposição detalhada do ponto de vista de Stirner, autor de O Único e sua Propriedade, sempre se justifica, sendo ele um pensador freqüentemente pouco e mal conhecido – o que vale para o aspecto do seu pensamento que abordaremos aqui, como para qualquer outro. No caso de Marx, raramente se toma o que ele diz especificamente sobre o assunto (do qual ele só se ocupa como que obrigado), muito menos em confronto e cotejo com o curioso argumento stirneriano. Pois, por trás do suposto idealismo histórico de Stirner (que é o que Marx destaca a propósito do pensamento stirneriano), está a problemática da alegada opressão do – e alienação no – espírito (no sagrado, no ideal), prolongada, depois da religião, pela moral humanista e pelas ideologias iluministas, em detrimento do indivíduo enquanto singular e finalmente dono de si. A crítica e a visão alternativa de Marx, a respeito, aparecem principalmente na Ideologia Alemã, creio que sob novas cores quando cotejada com o argumento stirneriano. Para denunciar como falso o radicalismo individualista e “descrente” de Stirner, Marx se abriga numa posição antípoda, a do homem plenamente social, a do indivíduo essencialmente social, sem transcendência ou separação com relação à sociedade. São respostas diferentes sobre onde está o “espírito religioso” como algo oposto à autonomia e à emancipação integral do indivíduo, e sua investigação deve também ajudar a entender melhor a própria esquerda hegeliana, da qual ambos fazem parte.

1. A alienação no espírito através da história
Foram os antigos que geraram seu oposto, o homem moderno. Feuerbach já havia dito que, para os antigos, “o mundo era uma verdade;” mas, acrescenta Stirner, “uma verdade por trás de cuja não-verdade eles procuravam chegar, e de fato finalmente chegaram” (UP 42, r16). Os antigos acreditavam no natural, no mundo e nas suas leis, da mesma maneira que o cristão, para quem o mundo é nada, acredita no espiritual e despreza as coisas e as leis da terra (como, por exemplo, os laços e sangue. Apesar disso, embora essas duas partes tenham o oposto por verdade, foi da Antigüidade que provieram os “novos tempos”, através de uma verdadeira e “incontestável inversão” (Umkehrung). Foram os antigos, diz Stirner, que se propuseram fazer de sua verdade uma mentira (42-3). Como pôde acontecer isso? Vale observar, desde já, que essa versão stirneriana da história, apresenta, em linhas gerais e de forma ampliada, o mesmo desenvolvimento de sua “vida de homem,” texto breve com que inicia a primeira parte de O Único. O antigo é a “criança”, e o cristão ou moderno é o “jovem”. Stirner agora vai detalhar o desenvolvimento do primeiro no segundo, e, em especial, do segundo até a sua negação. E não é o primeiro a fazer corresponder “ontogênese” e “filogênese”, coisa muito comum entre pensadores do século XIX. No prefácio da Fenomenologia, Hegel, por ex., declara que “o espírito individual deve também passar pelos conteúdos dos estágios formativos do espírito universal”. No caso do Único, porém, Marx vai ver nessa coincidência apenas pobreza conceitual e desnecessária repetição.
Foram os sofistas, que deram o passo inicial no sentido de uma percepção mais aguda de si mesmo, pelo indivíduo, apontando para a grande revolução que adviria depois com o Cristianismo. Contra a potência do mundo, os sofistas, na Grécia do século V, proclamaram a argúcia intelectual e a habilidade do espírito. Do mesmo modo como para a criança, porém, o espírito ainda seria aí apenas um meio, uma arma contra o mundo. Sócrates veio em seguida, segundo Stirner, para completar a formação do espírito com a aquisição de um “coração moral”. Um coração que, livre das imposições dos instintos e das paixões, ou seja, do poder das coisas, pusesse o homem a serviço da “boa causa”. Ao fim da Antigüidade, o coração, com os céticos, não bateria mais por coisa alguma. Para “São Max,” os antigos procuravam, assim, se espiritualizar. Mas, para poderem sentir-se verdadeiramente livres do mundo, como espírito mesmo, tinham ainda que se tornar completamente indiferentes a ele (o mundo), desligar-se de suas engrenagens e de suas relações com ele. Pois o espírito, como inteiramente incorpóreo, não pode ter qualquer relação com o mundo ou com a corporeidade (Koerperlichkeit). É só o cristão que vai finalmente reconhecer que sua “verdadeira vida” não está de modo algum na labuta com as coisas desse mundo, mas é apenas a vida do espírito e do pensamento. Por certo, os antigos não viviam sem pensar, Stirner se apressa em explicar, “mas não conheciam o pensamento”. Tampouco o mais espiritualista dos homens pensa sem viver, é claro: “ele come e bebe”, caso contrário seu corpo parece, mas (e isso é o que interessa), “enquanto espírito, ele se sabe imortal”.
Diante de um mundo que não consegue submeter, com poderia o antigo defender-se de sua sensação de impotência, senão desprezando-o e afastando-se dele? Só o cristão, porém, considerará o mundo e a vida simplesmente vãos. Os antigos, apesar de tudo, sempre teriam procurado no pensamento e na sabedoria a verdadeira alegria de viver. Mesmo na fase final da Antigüidade stirneriana, o “sábio” é, para os estóicos, aquele que “sabe viver”; a hedoné dos epicuristas não vai mais longe do que isso, e é ainda uma “doce vida” que a “paz da alma” deve assegurar a Demócrito. Caberá aos céticos - advogados da impassibilidade e do silêncio - levar até o fim a ruptura com o mundo; o que, no passo seguinte, segundo Stirner, conduzirá, no Cristianismo, à completa negação do mundo e da vida, em nome do espírito. É assim que finalmente a Antigüidade deixará para trás o mundo das coisas (die Welt der Dinge) e a ordem do mundo, à qual pertencem não só a natureza como também as relações nas quais a natureza coloca o homem: a família e a comunidade. Chega-se, assim, à dissolução do Estado antigo e à preferência por tudo o que é “privado” e “pessoal” (UP pass. 49, 52, r23, 25). E aqui nos deparamos de novo, como ao fim da sua ontogênese, sua “vida de homem”, com a “propriedade” stirneriana: “A história antiga se encerrou quando eu conquistei minha propriedade (Eigentum) sobre o mundo”, quando o mundo perdeu, para mim, toda a sua respeitabilidade ou divindade, e não é mais de modo algum superior a mim. Esse aparente triunfo do eu, contudo, acaba sendo mesmo uma vitória... do espírito (132-2, r101-2), como veremos.
Depois disso tudo, cá estamos nós com os cristãos (ou os modernos - o que em Stirner é a mesma coisa), para os quais o espírito é toda a verdade. Uma verdade, é claro, cuja não-verdade os cristãos/modernos “buscam e finalmente conseguem atingir” (UP 52, r26) - mas isso ao fim dessa nova era. Agora, em vez disso, o espírito se expande “como um gás”, para construir seu imenso império (130-2, r101-2). A crer em Stirner, o Cristianismo, essa nova etapa, seguiu um curso em tudo análogo ao da etapa anterior, a Antigüidade. Senão, vejamos. Depois de submetida por um longo período aos dogmas cristãos, a razão se teria feito “sofista” (no caso, agora, humanista), “jogando hereticamente com os princípios da fé”. A Reforma protestante, por sua vez, conduziria o coração à libertação de todo conteúdo, restando-lhe apenas a cordialidade vazia, o amor muito geral pelo homem, e a consciência da liberdade. O cristão amará agora apenas o “homem” (que é para Stirner uma idéia, um “espectro”), pois amar o homem singular corpóreo seria uma traição ao amor espiritual e desinteressado. Desse modo, o espírito, que se libertou do mundo após grandes esforços, trata de lidar agora tão somente com o que é espiritual.
Apesar disso, ele apenas se afastou do mundo; não conseguiu de fato liquidá-lo. O desacreditado mundo das coisas, lembra Stirner, não deixou de ser um obstáculo no seu caminho (UP 54, r28); e a conseqüência dessa resistência do mundo, então, é que o Espírito vai perpetuamente aspirar a espiritualizá-lo, resgatá-lo, aperfeiçoá-lo (52-4, r27-9). Em conseqüência disso, desde o surgimento do Espírito, e diante do seu avanço, o puramente profano só teria feito recuar. O Catolicismo, indulgente, deixava subsistir o temporal ao lado do espiritual, permitindo ainda algumas alegrias mundanas. O Protestantismo - na medida em que é conseqüente, diz Stirner - trabalharia para aniquilar o profano, nem que seja santificando-o inteiramente. O católico seria apenas uma leigo, enquanto o protestante é ele mesmo um “padre”, policiado pela própria consciência (UP 126-9, r97100). O chamado pensamento moderno, de Lutero a Hegel, é considerado por Stirner como um aprofundamento da dominação do espírito - em comparação com a Idade Média e o Catolicismo. O Vigário de Wittenberg (com o qual o autor do Único dá por encerrada a Idade Média mas não a “adolescência” da humanidade) teria entendido que, para compreender a verdade, o homem devia também ser “verdadeiro” e “espiritualizado,” pois aquele cujo pensamento só atinge o sensível não apreenderá a verdade como espírito. René Descartes, de modo semelhante, no plano da filosofia, reduzirá o homem ao pensamento, desqualificando a opinião e o saber vulgar. Agora, assim, só o espírito e o pensamento existem; e esse seria o ponto de vista da filosofia moderna, que por sua vez seria a expressão do princípio cristão em toda sua pureza.
Tudo isso pode parecer até Karl Marx, mas nem tanto; Stirner denuncia, do mesmo modo, a objetividade do espírito... no “conceito”, na ciência, pois é através dela que aquele domina os homens. “Como se pode dizer que a filosofia moderna ou a época moderna chegaram à liberdade e nos libertaram do jugo da objetividade?”. O que fizeram na verdade foi apenas “transformar os objetos existentes” - por exemplo, o déspota real -“em objetos representados”, os “conceitos”; mas a estes passamos a dever um respeito ainda maior (UP 119-23, r90-4). Com o conceito chegamos a Hegel; dizer que “o real é racional”, ou que “só o racional é real”, é afirmar que o real é o conceito, o espírito, a razão. O que interessa é o conceito da coisa ou da relação, como se ele existisse por si mesmo, como se a relação não fosse única, pelo fato da “unicidade” daqueles que a estabelecem – acha Stirner. Agora, na Modernidade, os conceitos, as idéias, “governam a vida”, e “devem decidir sobre tudo”:
“Tal é o mundo religioso ao qual Hegel deu uma expressão sistemática. Atualmente nada mais reina no mundo senão o espírito. Uma interminável multidão de idéias zumbem nas nossas cabeças. E que fazem aqueles que querem avançar? Negam essa idéias para introduzirem outras em seu lugar”. (UP 134-5, r104-5)
Apenas os empiristas ingleses, como Bacon e Hume, ficariam fora desse movimento, presos à consciência comum dos homens, ao senso comum. “Eles vêm no mundo apenas o mundo, e nos objetos apenas objetos” (122-3, r93-4). São os alemães, ao contrário, que melhor representariam o movimento espiritualizante. Antes de Marx, portanto, Stirner já denuncia a inclinação da “ideologia alemã” para perder-se no mundo dos pensamentos e da “teoria” - no idealismo mais completo.
Isso tudo que vimos até aqui, no entanto, não significa que, para Stirner, a dominação do espírito tem sido pacífica. Durante quase dois mil anos, diz ele, os homens têm-se esforçado por subjugar o “Espírito Santo”, o qual, entretanto, sempre se ergueria de novo, sob nova roupagem. Há muito que ele não paira acima de nós como uma pomba, e agora já se deixa até apanhar pelo leigo; mas, mesmo como espírito do “homem”, ou da “humanidade”, ele permaneceria um espírito estranho, que não chega a ser “nossa propriedade irrestrita”, “de que possamos dispor dele ao nosso bel prazer” (UP 132-3, r103). A tendência para tornar o espírito mais humano, acha Stirner, tem na verdade dirigido o curso da história desde Jesus Cristo; daí que ele tenha sido finalmente concebido, ao fim do domínio expresso da religião, como a idéia de humanidade. Mas nem por isso ele poderia ser considerado como vencido, pois ainda devemos servi-lo, e nos sacrificar por ele (ibid.). A Antigüidade só se tornou “proprietária” do mundo depois de romper com a sua superioridade ou divindade, e assim também será com o espírito: “Se eu puder reduzi-lo a apenas uma ‘aparição’ ou ‘espectro’, e rebaixar seu poder sobre mim a uma obsessão, ele não parecerá mais nem santo, nem sagrado, nem divino; farei uso dele como da natureza; sem hesitação e segundo meu agrado” (UP 134, r104). Sem embargo, do mesmo modo como todos os esforços dos antigos redundaram apenas numa “sabedoria do mundo” (Weltweisheit), os modernos ou cristãos têm até aqui tratado de superar o espiritual... sem sair da “teologia” (Gottesgelehrheit): “As mais recentes revoltas contra Deus são apenas os últimos esforços da teologia, ou seja, não passam de insurreições teológicas”. Uma farpa certeira contra os seus contemporâneos ateus e anti-clericais. Não parece a linguagem que Karl Marx vai adotar na Ideologia Alemã?
De acordo com Stirner, o que está por trás do fracasso dos esforços para escapar da dominação do Espírito - sem na verdade sair de seus domínios - é o que ele chama de “mongolismo”. O que vem a ser essa marca “oriental” ou “chinesa” da qual não conseguimos até hoje nos livrar? É, pode-se entender, o apego à idéia de “substância”. Segundo o que lhe interessa agora frisar, Stirner vai introduzir três novas categorias, ainda periodizando a história, além das já mencionadas. A Antigüidade vai aparecer agora como o período em que trabalhamos nossa “negritude” (Negerhalftigkeit) inata, ou seja, nossa dependência das coisas. Os “tempos cristãos” correspondem ao nosso “mongolismo” (Mongolenhaftigkeit), a dependência com relação aos pensamentos. Os tempos por vir constituirão o período “caucasiano”, em que prevalecerá finalmente o lema: “Eu sou o proprietário do mundo das coisas e do mundo do espírito” (UP 100, r71). Caracterizados com períodos, ou mesmo disposições “étnicas”, o que temos aí na verdade são diferentes posturas diante do mundo, como Stirner julga conveniente tipificar e como lhe interessante encadear. A Negritude é a fase dos búzios e dos feitiços (coisas que conhecemos muito bem no Brasil), em que os homens estariam ainda livres do espírito como tal e de uma verdadeira espiritualidade. Quanto ao Mongolismo, ele estaria bem representado pelos “chineses”, os “mongóis” e o “russos” (100). O período mongol ou “chinês” é o que Stirner trata de descrever mais longamente, para poder melhor caracterizar, por oposição, sua emancipação/desalienação “caucasiana”, e também para melhor produzi-la dialieticamente.
No período mongol, é o “não-eu” que tem verdadeiro valor, seja ele Deus ou o mundo; contra o eu, predomina a “substância”, o “objeto”, o “positivo”. O mundo em que vive o homem se apresenta então como algo pesado, com o predomínio do costume, da tradição e do estabelecido. Através do que é costumeiro, o homem se protege contra o que é inoportuno e cria um mundo seu - onde se sente em casa (zu Haus) e onde nada de estranho (Fremdes) o oprime. Onde nenhuma influência terrestre o aliena (entfremdet) de si mesmo (UP 100-1, r72-3). Um céu, enfim, mas onde eu como tal fica imerso e sufocado. Segundo Stirner, os caucasianos têm lutado durante séculos contra esse céu construído pelos mongóis, mas sempre edificando sobre o mesmo fundamento. Tomam de assalto o céu da moral e dos costumes, para logo criarem um novo, com novas normas (Menschensatzung) e nova potência (Gewalt) opressora do eu. Nessa atividade de melhoramento ou reforma, os caucasianos estariam até hoje, prisioneiros de um mongolismo remanescente. Só com a morte do espírito, em todo e qualquer de seus avatares, farão de si mesmos caucasianos verdadeiros e completos. Pois o céu é também o reino do espírito e de sua liberdade, e querer a “liberdade do espírito”, ou “do homem”, representa ainda redondo mongolismo. Só como “egoístas” - acha Stirner – os indivíduos dissolverão finalmente o espírito em seu nada originário: “Aquele que pôde, graças ao Espírito, representar a Natureza como nada, só ele poderá reduzir o Espírito a um igual inanidade” (Nichtigkeit) (UP 102-5, r74-7). Esse é o “único” ou “egoísta” stirneriano.
Karl Marx responde a essa filosofia da história, a essa “história especulativa”, com seu materialismo histórico. A concepção materialista da história é o principal argumento - ou mesmo praticamente tudo - que ele contrapõe a Stirner. A conseqüência disso é que o autor do Único deve ser pintado por ele como um - mau - historiador, como um historiador especulativo em todo caso. Como se O Único quisesse ser mesmo um livro de história, e fosse para Marx, então, um livro de “histórias da carochinha”. É a imagem que se tem da obra quando se lê A Ideologia alemã, como também quando se examina a maioria dos comentadores que registraram a polêmica. E a “história” de Stirner é considerada como muito precária até por autores que com ele simpatizam; como no caso de Henri Arvon, que se refere a ela como “um escamoteamento constante de fatos históricos, que de história tem apenas o nome” (1951, 511). Mas será que O Único e Sua Propriedade se propõe mesmo oferecer um descrição ou interpretação da história, na qual atribui um papel absolutamente dominante às idéias? Antes de fixar para Stirner a imagem de pensador especulativo da história, de idealista histórico acabado, seria recomendável procurar no Único os elementos que ajudam a esclarecer o significado e o estatuto do “histórico” na obra e em Stirner.
Diferente do que se pode imaginar, embora compreendida quase inteiramente sob o título geral “Antigos e Modernos” (Menschen der alten und neun Zeit), a primeira metade do livro de Stirner, em sendo praticamente a que traz alguma coisa de história, traz ainda assim muito pouco. Como se pode ver por seus curiosos – e caracteristicamente stirnerianos - títulos e subtítulos: “O espírito,” “Os possuídos,” “O espectro,” “A hierarquia,” e, ainda, por uma seção importante sobre os mais modernos entre os modernos (daquele tempo), os “liberais” ou “livres” (die Freien) – antes de mais nada, esquerda hegeliana, os jovens hegelianos de Berlim, reunidos em torno de Bruno Bauer. Ora, toda aquela primeira parte é antes uma espécie de fenomenologia (como Marx vai reconhecer), onde, dirigindo-se persuasivamente ao leitor como tu, Stirner pretende estar trazendo detalhadamente à luz a “alienação espiritual” do indivíduo através de sucessivas noções gerais hipostasiadas, idéias que se assenhorariam dele e o oprimiriam em sua individualidade. O que aponta mais para um temática psicológico-moral do que histórico-social. Stirner apresenta aí principalmente uma crítica da moral, tanto religiosa e tradicional, como também “humana” e supostamente liberta da religião. E faz uma denúncia da dominação do “sagrado”, numa crítica cuja característica principal é estender essa noção a posturas e formas de pensar geralmente consideradas como não-religiosas ou mesmo anti-religiosas: as correntes do pensamento moderno, as ideologias. Tratando não somente da moral e da política, como também, por exemplo, da educação, Stirner se debruça sobre atitudes e motivações como “mania”, “idéia fixa”, “abnegação”, “vocação”, “missão”, etc. Que são para ele tantas manifestações do espírito religioso, que não apenas permanecem como só fazem agravar-se nas novas versões do pensamento moderno, nas ideologias modernas. O pensamento moderno, na verdade, levaria adiante uma espiritualização crescente de vida, que acompanharia pari passu a “mundanização” ou “humanização” progressiva do espírito, como duas faces da mesma moeda. A denúncia deste fenômeno como alienação, interessante como crítica da trajetória da esquerda hegeliana (da qual fazem parte Marx, Engels, Feuerbach, Bruno Bauer e o próprio Stirner), é praticamente silenciada por Marx, na Ideologia Alemã, que vai fixar-se então num Stirner “historiador”.
Qual o significado que o próprio Stirner dá às suas resumidas considerações históricas? Isso ele deixa claro ao introduzir uma longa seção “Antigos e Modernos”, em algumas frases esquecidas pelos comentadores. Com sua “história”, Stirner imagina estar fornecendo elementos com que o leitor do seu tempo - um tempo de profunda e rápida transição - possa “perceber melhor as transformações por que a cultura tem passado até chegar aonde ele está”, e entender melhor o desenvolvimento de seus próprios “ideais”, suas mudanças de opinião e de “princípios”. “Em suma, entender como se tornou o que não era ontem ou anos atrás”. Segundo Stirner, tais transformações são melhor percebidas “quando é a vida de outrem que se contempla”, e é por isso que ele convida o leitor a examinar com ele os “ideais” e “esforços” de “nossos antepassados” (UP 41, r15). Convenhamos - deixando agora de lado com ele se desincumbe da tarefa - que é uma preocupação histórica bastante diferente da de Marx; não há muito como imaginar que, para o próprio Stirner, essa seja uma maneira “científica” de fazer história, muito menos história “empírica”. Seu propósito parece aqui análogo, e inverso, ao que Thomas Hobbes manifesta na introdução do Leviatã, quando convida os demais a lerem “em si próprios” o gênero humano. Isto é, a buscarem em si próprios a confirmação do que ele vai descrever como natureza humana. A história de Stirner - uma história de ideais - quer então se oferecer como um espelho; seu interesse está mais na vida de cada um hoje e na eventual compreensão de seu desenvolvimento pessoal, onde o peso dos ideais e princípios pode ser realmente muito grande. É também mais um palco para ele encenar sua coreografia triádica, uma exposição ampliada de como chega a se constituir - e como pode evoluir - a dominação do indivíduo pelo espírito. Nesse espaço, ele exibe, em uma evolução encadeada, diferentes posturas ou formas de consciência que o indivíduo pode atravessar na busca de sua própria afirmação. Com o que, é verdade, não só as articula, como também as hierarquiza - numa ordem que, aliás, contraria a que Marx defende. O que Stirner diz ao introduzir à seção “A hierarquia” - onde se concentra a maior parte de suas observações históricas - acaba de colocar nos termos os mais modestos suas supostas ambições de historiador: “A reflexão histórica sobre nosso mongolismo”, diz ele, “que insiro aqui episodicamente, não tem pretensão de profundidade nem de certeza; deve apenas “contribuir para o esclarecimento do resto” (UP 100, r71).
Marx parece não gostar nada da ressalva, que pode tornar inútil sua mais poderosa munição, e retruca que vai “inserir” também “uma reflexão histórica” a respeito daquela de Stirner: ela toda teria sido extraída de Hegel (IA 194). Marx age como se replicasse: falando ‘especulativamente’ da história, você deixa no ar a sua bela construção; pois se a história stirneriana, mesmo despretensiosa, não guarda alguma correspondência com a história real, isso certamente não pesará a favor de seu indivíduo soberano. Afinal de contas, Stirner aduziu elementos de história como se dissesse: “Vejamos se as coisas não se passam mais ou menos assim”. A questão, no entanto, pode ser um pouco mais complicada. O ponto de partida de Stirner, sobre o qual ele constrói, é sua “biografia”, que além de “pessoal” é deixada em aberto; e é sobre o talhe daquela que se desenha sua história, e não vice-versa. Aparentemente, o próprio Stirner o diz, não está excluído que outro - o “Velho”, por exemplo - a pudesse entender diferente. Nesse caso, então, ela seria a própria negação de uma “teoria da história”, e ao mesmo tempo de toda “Teoria” - enquanto olhar “divino” e impessoal . Marx trata de caracterizar a história de Stirner como - nas suas palavras - “história fabricada”. Ora, o pensador francês contemporâneo Jean-François Lyotard, tratando de destruir toda teoria enquanto nova versão da “crença obstinada”, propõe como meio para isso justamente o “crime teórico” que consiste em fabricar “teorias-ficção”. “Destruir a Teoria”, diz ele, “é construir uma pseudo-teoria”, que representa a “paródia” de toda Teoria. Stirner, quem sabe, não toma como verdades as fórmulas dos filósofos alemães sobre a história, mas antes “joga” com elas. E em vez de plágio, como quer Marx, a história stirneriana poderia ser vista como uma paródia da filosofia hegeliana da história, a mais pretensiosa teoria de seu tempo e mesmo de todos os tempos. A refutação de Marx ficaria então como um movimento em sentido contrário, ou seja, um empenho para estabelecer solidamente a “teoria verdade”. Stirner não quereria recair na afirmação de um fundamento forte, com f maiúsculo, que em última análise forneceria ao indivíduo o sentido para o seu agir no mundo. Desse modo, sua construção de fato fica “no ar”, sobre ele próprio, sobre “nada”, e, pelo visto, uma parte da filosofia contemporânea... sobre Stirner.
2. Idealismo histórico ou opressão do “sagrado”?

Marx condena a história de Stirner como a priori e fabricada... para conduzir inexoravelmente ao “único”, ao “egoísta”, como coroamento de todo o processo histórico desde a Antigüidade. Sua desconheceria os fatos empíricos, para considerar apenas idéias (apenas filosóficas ainda por cima), tidas então como determinantes do curso da história. Para Marx, ao contrário, interessa é o que ocorre na realidade., “na vida material” - do que as idéias são apenas sintomas. “São Max”, diz ele, baseia-se cegamente nas versões da história oferecidas por Hegel e por Feuerbach, e plagiando em particular o primeiro, cuja filosofia da história praticamente reproduz. Só que a imitação resulta pobre, repetitiva e ad hoc, caracterizada pelo esquematismo e por um recurso limitado – claramente seletivo - à empiria. Na sua história teleológica “tudo está previsto, a fim de que o ‘único’ possa vir ao mundo quando o tempo for chegado” (IA 152, d113): o antigo é o ainda-não-cristão, e cristão é simplesmente o ainda-não-ateu, o “cripto-ateu” (159). Os filhos se tornam aqui genitores de seus pais, e o resultado atual da história se transforma na tarefa que ela teria se proposto desde o início. Na história stirneriana o realismo infantil dos antigos deve necessariamente desembocar no idealismo juvenil dos modernos, e este no “egoísmo” adulto do único (152). Tudo mais sendo variações sobre o mesmo tema, dispensáveis repetições dessas três categorias, sob diversas máscaras. Stirner é para Marx o exemplo mais extremo da típica concepção alemã da história; o que pode não ser exatamente um elogio, mas o põe, ainda que em desvantagem, na respeitável companhia do honrado Feuerbach e de ninguém menos do que o grande Hegel - a expressão mais notável daqueles estilo. Para nosso materialista, tal concepção reduz a - ou sublima em - história da filosofia toda a história, fazendo dela uma sucessão de idéias dominantes; com o que “a idéia” - especulativa - se torna o motor da história. Este seria, exponencialmente, o caso de “São Max”, que da história toma apenas alguns nomes de que precisa para dar um corpo a uma ou outra idéia, e outras vezes nem tem esse trabalho (IA, 152). Já na concepção de Karl Marx, o real é uma coisa e as idéias são outra; ou melhor, pelo menos no momento em que ele, na Ideologia, defende seu princípio materialista, as idéias não são nada: de um lado está o real e do outro estão elas, o irreal.
Quando Stirner diz que para os Antigos o mundo era uma verdade, Marx entende que “ele não enuncia uma verdade sobre o Mundo Antigo, mas simplesmente que, face ao seu mundo, os antigos não se comportavam como cristãos” (IA 159, d120). Com o que Marx parece compreender como outra-coisa-que-não-o-mundo, não só as idéias, as representações, como agora a própria maneira - supostamente diferenciada de um época para outra - de os homens se comportarem com relação ao mundo... dos homens. Com mais plausibilidade, Marx vai argüir que “Stirner põe os fatos de cabeça para baixo e faz da história material um produto da história da idéias” (160). A propósito do fim da Antigüidade, por exemplo, Marx contrapõe que, se os filósofos antigos chegaram a descobrir a “não-verdade” do seu mundo, isso não foi obra de sua consciência; foi porque aquele mundo de fato estava em ruínas, por razão de conflitos inteiramente práticos, materiais. Estes representam a causa real, e aquilo (a alegada “descoberta”) é apenas o “sintoma ideológico”. Se o cristão - e agora parece tratar-se de uma ilusão que se difundiu muito além do circuito dos filósofos - se sente “estrangeiro sobre a terra” (Hebr., XI,13), isso é porque a concentração de riquezas no Império Romano faz dele de fato um “estrangeiro” (159-60). Se ele se imagina “proprietário celeste” ou por título divino, é exatamente na medida em que está privado da propriedade nesse mundo (103, d142-3). Se na Idade Média continua a se sentir cristão, Marx encontrará também para isso uma causa empírica e econômica - e assim por diante.
A respeito dos Antigos, Stirner não incorreria apenas no equívoco idealista alemão de tomar sua “relação filosófica” com o mundo para caracterizá-los. Cometeria igualmente erros de fato, como quando considera a figura do sábio (sophos) - que aparece também entre os epicuristas, os céticos e até entre os iluministas do século XVII - como o ideal característico apenas dos estóicos. Segundo Marx, seira ainda um absurdo apontar os céticos como mais avançados do que Epicuro, “que atacou abertamente a religião antiga e está na origem do ateísmo romano” (IA 161-4 pass., d122ss). Por último, Stirner faria essas correntes filosóficas - que teriam conduzido, todas três, à indiferença e ao desprezo do mundo - serem diretamente absorvidas pelo Cristianismo; esquecendo dos neo-platônicos, que representariam a passagem que conduz até aí. O ingênuo “São Max”, então, além de não mostrar como os antigos produziram materialmente seu mundo, que é o que deveria ter feito (160), e apesar de acreditar tanto nas idéias, nem a história destas conhece. E quando, por acaso, trata de falar de história empírica, comete mais do que imprecisões; as “expedições do egípcio Sesóstris”, por exemplo, que menciona para determinar o período da “negritude”, jamais teriam ocorrido. Além do que, acha Marx, de nada adianta repetir agora, sob o rótulo de “negro”, o que se disse antes a respeito da “criança”; nem com o rótulo de “Mongol” o que já se caracterizou como “adolescente”. Nem tampouco adianta que sua “unidade negativa” das duas coisas apareça agora encarnada pelo “caucasiano caucasiano”, e não mais pelo “adulto” e “egoísta” (187-192 pass., d146ss) – quiçá pós-moderno.
Apesar de tudo isso, a crítica essencial de Marx à história stirneriana é mesmo de “método”. Sobre os antigos, Stirner nos daria apenas “a opinião que supostamente tinham sobre seu mundo”. A propósito dos Modernos, tampouco os apreende “nas suas relações históricas reais como o ‘mundo das coisas’”, mas apenas “no seu comportamento (Verhalten) teórico ou religioso”. “São Max” encara com toda seriedade “as ilusões teóricas dessa época, bem como as ilusões dos filósofos sobre tais ilusões” (IA 167, d128); por isso ele é agora , para Marx, o crédulo Jacques le bonhomme. E as expressões hiperbólicas (“idealistas históricas”) que Stirner se permite, e que Marx destaca impiedosamente, não deixam de fato de se expor à crítica materialista histórica. “A história tem sido até o presente apenas a história do homem espiritual”, diz O Único (UP 415, r372). A época que precedeu a Cristo queria “idealizar o real” e “procurava o espírito”; a que lhe sucedeu, quer “realizar o ideal” e “procura o ‘corpo transfigurado’ (verklaerten Leib)”. Ela se concluirá pela “derrubada do ideal” e pelo “desprezo do espírito” (451, r407). Stirner pretende ser o anunciador dessa nova revolução ideal e desse novo tempo: Cristo num extremo, ele no outro. Tendo em mente idéias como liberdade, direito, etc, ele afirma que “atualmente nada mais reina no mundo além do Espírito”, que “adquiriu uma potência soberana” (135, r105). Com Stirner, aprendemos que temos sido até aqui “governados por idéias, conceitos, princípios” (266, r230). E agora, o que Cristo fez com relação ao “mundo das coisas”, elevando-se acima dele e desvalorizando-o, Stirner se imagina fazendo com o “mundo do espírito”, com as “verdades” e seu poderio (434, r390).
Marx não vai deixar passar a idéia de um mundo e de uma história reduzidos a - ou dominados pelo - espírito. “São Max”, diz ele, “triunfou sobre a história” reduzindo toda ela a pensamentos; por isso, agora, “no fim dos tempos”, tem de enfrentar apenas “um exército de pensamentos” (IA 217-8, di74). Como D. Quixote, peleja contra um mundo de espectros, em que transformou as potências reais materiais, um mundo de fantasias em que ninguém mais acredita. É triunfando sobre essas “representações dos ideólogos” que ele se sagra “proprietário do mundo das coisas e do mundo dos pensamentos” (198, d156). A fonte de tão esdrúxula concepção, já vimos, estaria em Hegel, com cujo idealismo Marx quer a todo custo identificar a posição de Stirner, que veria na história, o tempo todo, um “produto de representações que se resolvem todas no ‘sagrado’”. Ora, a dominação do espírito, do sagrado ou do pensamento seria a dominação da idéia absoluta de Hegel sobre o mundo empírico, e assim o ponto de vista de Stirner, em última análise, seria nada menos do que “religioso”, ao substituir a produção material da vida, por uma “produção religiosa de coisas imaginárias”(71). Mesmo se pretendendo crítico de Hegel, Stirner permanece, assim, no marco da concepção hegeliana da história, cujas noções simplesmente vai pilhar, dispensando os vastos conhecimentos positivos do grande idealista objetivo (202, 224, d159-60, 180). Ele vai “ler rapidamente Hegel” (212, d169), tomando com cega confiança a concepção de mundo emprestada àquele, da dominação do espírito na história (199, d157). Para pôr um fim a tudo isso, Marx vai insistir audaciosamente em que as idéias não têm história alguma; se Stirner tivesse examinado a “história real”, descobriria que “não existe nenhuma história do Cristianismo: “suas diferentes formas, em diferentes épocas, não foram ‘autodeterminações’ e ‘desenvolvimentos’ do ‘espírito religioso’, mas tiveram por origem causas inteiramente empíricas, escapando a toda influência do espírito” (177, d137).
A acusação de absoluto idealismo feita a “São Max” (Stirner), na Ideologia Alemã, tal como a de “espiritualismo” feita a “São Bruno” (Bauer), na Sagrada Família, não perde de vista sua conseqüência final e mais importante. Está em jogo o resultado dessa leitura especulativa da história e o que a “crítica egoísta” pode fazer com o socialismo - depois de tê-lo feito com o Cristianismo. Marx vai insistir na conclusão de que o resultado daquela leitura é manifestamente “arbitrário” e “pessoal” (o que, para Stirner, poderia não ser exatamente um xingamento). Se os filósofos alemães têm o hábito de caracterizar a Antigüidade pelo “realismo” e a Era Cristã e Moderna pelo “idealismo”, diz Marx, os pensadores franceses e ingleses concebem a primeira como período do “idealismo”, oposto ao “materialismo” e ao “empirismo” da Era Moderna. O que provaria “o escasso interesse que apresentam tais oposições e esquemas históricos arbitrários” (IA 166-7, d127). Para Marx, então, como termo e finalidade de toda uma montagem história arbitrária e de toda uma pilhagem de Hegel “com fins pessoais”, o indivíduo stirneriano, “único” e “egoísta”, não teria mesmo qualquer consistência material, real, corpórea. Ele absolutamente não seria um indivíduo real, mas apenas “uma categoria construída com ajuda do método hegeliano” (219, d175-6). Assim, Marx aniquila mais uma vez a crítica stirneriana dos espectros e ideais que têm acompanhado os homens através da história, primeiro com a religião e agora com a filosofia e as ideologias. E se livra, ao mesmo tempo, da “individualidade soberana”, que deveria ser o alegremente desiludido sobrevivente de todo esse périplo histórico. “Com a derrocada de sua montagem histórica, o próprio ‘eu’ stirneriano desmorona” - Marx pode concluir triunfalmente, pro domo sua.
“Este ‘eu’, termo de uma montagem histórica, não é um ‘eu’ corpóreo, nascido da carne de um homem e de uma mulher, e existente sem socorro de qualquer escora. É um ‘eu’ espiritualmente engendrado por duas categorias: ‘idealismo’ e ‘realismo’. Tem uma existência puramente especulativa” (IA 272, d222).
Está em jogo a corporeidade singularizante do indivíduo stirneriano. O rumo e os móveis da história não correspondendo ao exposto por Stirner, eivado de equívocos e lacunas, esse eu corporeamente egoísta a que ele pretende chegar não passa de uma ficção (IA 219, d175-6). Para Marx, a história – até agora, para ele, “pré-história” - desemboca é no homem comunista, e não por qualquer evolução própria de sua consciência, mas, digamos, do “grande real”, que aquela apenas reflete. Através de sua crítica da história stirneriana, Marx corta o passo do “único” na direção de sua unicidade e da recuperação de sua corporeidade. Tal como, através da história, não se constitui qualquer cominação do espírito, aqui também, como em “Uma vida de homem”, tudo não passa de construção arbitrária de uma individualidade fundamentalmente irreal. Esse indivíduo abstrato, supostamente liberto de toda dominação do espírito, constitui-se numa representação que retrata, no fim das contas, apenas as aspirações do pequeno burguês alemão, na sua variante intelectual berlinense.
Por trás da questão da dominação das idéias na história, está o problema do desenvolvimento da consciência - uma palavra que Stirner não usa muito - e, mais ainda, da individualidade. Para Marx, não parece haver qualquer desenvolvimento relevante da consciência ou do indivíduo por sobre o real, e isso pode ser visto nas paráfrases que ele oferece da progressão stirneriana. Na sua concepção, o que encontra espaço privilegiado é o desenvolvimento do grande real material - acompanhado pela consciência, de um modo geral com atraso. Para Stirner, é diferente; a primeira metade do seu livro pretende ser uma versão de um desenvolvimento pessoal. A esse respeito, aliás - por mais que interesse a Marx dizer o contrário, com o fim de colocá-lo exatamente na mesma condição de Hegel - para o autor do Único não se trata jamais do desenvolvimento do espírito como algo que exista acima dos indivíduos de carne e osso. Eu “não sou espírito”, diz Stirner, “sou mais que espírito” (UP 59, r33); são os homens que se desenvolvem, e que desenvolvem sua consciência, na luta com o mundo. É verdade que Stirner se permite afirmar que, “enquanto a noção de ‘homem’ se desenvolvia, tivemos que respeitá-la sucessivamente sob as diversas formas pessoais de que se revestiu” (308-9, r371). Mas isso é apenas uma maneira de dizer, pois ele deixa claro que “a consciência que canoniza o mundo é a minha consciência” (Gewissen) (105, r77), e que, na verdade, “não é a idéia de liberdade”, por exemplo, “que se desenvolve”: são “os homens que o fazem, e que, em se desenvolvendo, desenvolvem naturalmente também seu pensamento” (445, r401).
Em Marx, como veremos, temos o que se pode chamar de um “achatamento” da consciência em cima do real como expressão ou representação, mais ou menos fiel, do mesmo. Nele, a consciência fica despojada de toda atividade própria, de toda negatividade; e qualquer suposto desenvolvimento da mesma independentemente do real (v.g. do social) será simplesmente uma “dissociação”, decorrente da divisão do trabalho. Será apenas um afastamento do real, sem conseqüência sobre ele, e, na verdade, ainda assim, causado por ele. Em tal terreno operam as reinterpretações do mundo, que em nada o modificam. Para Stirner, ao contrário, há um desenvolvimento dos indivíduos que tem passado pela hipostasiação de seus pensamentos em idéias-sujeitos, desenvolvimento que deve desembocar na destruição dessa hipóstase, quando “o espírito” for reconhecido finalmente apenas como seu espírito, sua propriedade. Para ele, assim, pode haver uma opressão específica do indivíduo pelas criações do espírito, quando estas adquirem poder sobre ele - como no caso do Cristianismo. E ele pretende expor tais formas dominantes ou típicas da consciência - eventualmente características de fases da vida e de certas culturas e épocas históricas - na sua origem e no seu desenvolvimento umas nas outras.
Sendo esse então o problema, depois de ter refutado a exposição de Stirner como história especulativa, plagiária, não empiricamente fundada e factualmente errada, Marx ainda vai ter de reconhecê-la - e ainda uma vez recusá-la - como uma “fenomenologia.” O que “São Max” se propõe, ele agora reconhece, é fornecer “uma fenomenologia do espírito cristão.” Só que essa, ademais de inteiramente supérflua depois de Hegel, resultaria também completamente “unilateral,” pois, Marx lamenta, ao tratar da “espiritualização” do mundo, não reconhece - como Hegel! - a sua concomitante “desespiritualização. Além do que, claro, fica faltando expor como certas relações de produção e de troca “estão necessariamente ligadas” a determinada forma de “consciência religiosa,” já que a religião não é de modo algum “causa sui” (IA 177, d137) -como um “não-ser”, ela não tem qualquer desenvolvimento próprio (IA 183, d143).
Como em “Uma vida de homem”, aqui também o ponto decisivo da “narrativa” stirneriana é o momento da constituição do espírito - com o Cristianismo - em algo distinto do indivíduo e fora dele, com a conseqüente produção do mundo espiritual, “moderno,” como alienação. O espírito, diz Stirner, para ser espírito puro, deve necessariamente ser concebido como algo que me transcende, que está além de mim - como Deus. Pois bem percebo que eu mesmo não sou um puro espírito; nem eu nem qualquer outro homem pode realizar integralmente a noção de espírito (UP 59-60, r30ss). Além disso, o espírito deve criar um mundo de espíritos ou espectros, pois ele não existe senão num “mundo espiritual”, onde unicamente pode ser livre por completo (55-7, r29-31). “Desde que o Espírito apareceu no mundo”, diz Stirner, “desde que ‘o Verbo se fez carne’, esse mundo espiritualizado é como uma verdadeira casa mal-assombrada”. Pois se os antigos viam deuses por toda parte, esses não eram espectros e não reduziam o mundo empírico a uma simples aparência. Já no Período Moderno, por trás de tudo aparece o espírito, aparecem idéias, conceitos, princípios, etc.; e se esses “seres espirituais” não chegam a ser as próprias coisas, passam, no entanto, por sua essência, pelo que há nelas de mais real e verdadeiro (64, r37-8). Segundo Stirner, o próprio leitor reconhecerá - mesmo descrendo da imortalidade e não sendo o mais fiel dos cristãos - que o espírito é sua melhor parte e é o que nele deve prevalecer. Só não pensaria assim o “egoísta” assumido, que se recusa a viver por qualquer idéia, ou por qualquer coisa de espiritual (57-8, r31).
O leitor pode até achar que não acredita em “fantasmas”, mas o autor de O Único tratará de lhe mostrar que não é assim e o fará percebê-los por toda parte (UP 69, r42). São coisas tais como a verdade, o bem, a pátria e a honra (72, r46); e entre elas se destaca um espectro especial, o “ser supremo”- seja Deus ou o “homem”. Tal como de Deus, do “homem” emanam direitos, verdades e valores, que devem ser respeitados como sagrados (67, r40-1). Como ideais, tais idéias se apoderam dos homens e os submetem; são “idéias fixas”, verdadeiros “ídolos” (72-3, r46). De modo que não existiriam apenas os “possuídos” pelo demônio, mas também os de outra espécie, os possuídos pelo bem, pela virtude, pela moralidade, pela lei - ou por qualquer outro princípio abstrato. Em lugar de “possessão (Besessenheit), concede Stirner, pode-se dizer, por exemplo, “entusiasmo” (Begeisterung); mas trata-se sempre do interesse pelo sagrado (fanum), que não admite meios-termos; trata-se, em última análise, de... fanatismo (74-5, r47-8). A partir daqui, Stirner apresenta a moral - em especial, a “moral humana”, de Feuerbach - como transformação da religião, envolvendo uma dominação mais tirânica do que a desta. Ele examina a maneira como se comporta hoje em dia o “homem moral”, que pensa ter liqüidado com Deus e com o Cristianismo; e conclui que, cristãos ou humanistas, “os que zelam pelo sagrado” podem diferir entre si, “mas nada de essencial os separa” (75-6, r48-9). Ele apresenta primeiro a passagem da religião para o humanismo e a moral, como crítica da primeira por esses últimos. Para em seguida prosseguir até o “egoísmo” como crítica definitiva da moral, tanto na suas versões tradicional e “burguesa” quanto na sua nova feição “humana.”
Marx evita comentar toda essa parte sobre a moral e entrar diretamente nessa discussão; por isso, aliás, é incorreto dizer, como fazem alguns comentadores, que ele faz, na Ideologia Alemã, uma crítica literal e corrida de todo o texto do Único. Seu comentário é, na verdade, bastante seletivo; Marx prefere, já sabemos, forçar um “São Max” historiador a reconhecer de boa vontade um Stirner crítico da moral em suas formas mais modernas. Mas terá de falar de qualquer modo, mais adiante, a respeito da questão Feuerbach. Por enquanto, Marx investe mesmo - e pela segunda vez - é contra o relato stirneriano da hipostatização do espírito e contra a constituição de um “reino do espírito”. Para ele, é depois de ter “posto” a existência desse reino que Stirner vai prová-la - de uma maneira que desde o início o pressupõe (IA 171-2, d131-2). Toda a história da criação do espírito pelo indivíduo, diz ele, se proporia apenas “transferir o estômago de Stirner para o meio das estrelas” (175). É assim que Marx pretende agora ridicularizar essa passagem essencial do desenvolvimento stirneriano, quando Stirner diz que “é precisamente porque não somos o Espírito que habita em nós que devemos colocá-lo fora de nós, no Além” (UP 60, r34). No lugar do “espírito”, Marx põe “estômago”, e com isso pretende dar cabo do reino stirneriano da alienação no espírito.
Quanto às criações do espírito, Marx acha que nosso candidato a exorcista é na verdade quem povoa o mundo de espectros. Por Marx, com suas sugestões e seu persuasivo tuteio, não é que “São Max” ajude o leitor a perceber como eventualmente ainda vive cercado de - ou mesmo possuído por - “espíritos”. O que faz é levá-lo, quase hipnoticamente, a ver por toda parte espíritos que só existem na sua - de Stirner – imaginação; o seu é um verdadeiro método para fazer “ver fantasmas,” para “produzi-los por atacado” (IA 176-9, d136-9). Sendo assim, tampouco existem verdadeiros “possuídos”, e a obsessão de que Stirner se ocupa “é apenas sua obsessão”, que o leva credulamente a tomar “frases hipócritas” e “ilusões”, pelos “motivos reais” das ações dos indivíduos. Deve-se observar, no entanto, que a posição de Marx está longe de privar os espíritos de existência. Sendo a “idéia fixa”, para “São Max”, uma “idéia que tomou o homem sob seu poder”, este deduz daí, diz Marx, que “tudo o que submeteu os homens a seu poder - como a necessidade de produzir para sobreviver e as relações que daí decorrem - é uma ‘idéia fixa’”. Sendo o mundo da “criança” o único “mundo das coisas”, tudo o que não existe para uma criança é apenas uma “idéia”, um “espírito”, uma “idéia fixa” (184-5, d144). Ora, para o materialista Karl Marx, naturalmente, não é nem pode ser nada disso; como para Hegel ou Platão, para ele a idéia não é “apenas uma idéia”. As idéias e valores gerais, já sabemos, têm para ele pleno direito à existência, enquanto correspondem a relações que efetivamente associam os homens, vínculos que são sempre, por assim dizer, maiores do que eles. E as bases para a efetiva constituição do homem enquanto universal estão sendo postas pelo desenvolvimento de laços universais pelo próprio capitalismo; e não por qualquer cérebro idealista. Por isso, para o bem ou para o mal, os indivíduos estão muito longe de poder destruir ou desprezar os “espíritos” e os laços que os vinculam entre si e à sociedade e de se poderem emancipar à maneira stirneriana, como indivíduos soberanos “únicos”, “excludentes” e “descrentes”. Isso sim seria uma grande ilusão.
3. D dominação do sagrado e a “encarnação” do espírito

A dominação do sagrado (das Heilige) sobre o mundo empírico (sobre os homens, é o que Stirner na verdade diria), como uma relação histórica atual, como a dominação dos “santos” e dos “ideólogos” sobre o mundo profano; tal é para Marx a “hierarquia” de que Stirner fala (IA 198, d156). Se a obsessão é a dominação da idéia no e sobre o indivíduo (184, d144), pode-se dizer então que a hierarquia é a expressão, no mundo - enquanto relação entre os homens - dessa sujeição às idéias. A hierarquia é a dominação daqueles que representam idéias e dominam em nome delas (198, d156). Para Stirner, “a hierarquia é a dominação do pensamento e do espírito” (UP 108, r79), “das teorias e dos princípios” (436, r393). É a opressão daqueles que se apoiam sobre idéias sagradas, os hierarcas, sob o poder dos quais acabam por sucumbir os que cuidam principalmente de prover as necessidades de suas vidas (436, r392-3). Segundo Stirner, ao contrário do que se possa imaginar, a hierarquia da Idade Média, o Catolicismo, representa apenas uma hierarquia débil, “obrigada a deixar subsistir livremente ao seu lado a barbárie do mundo profano;” foi preciso a Reforma luterana para “revigorá-la”, interiorizando-a no indivíduo e estendendo até o fim a espiritualização do mundo (120, r91). Ora, se O Único é repetitivo, a Ideologia Alemã mais ainda; o que Marx volta a dizer a respeito da hierarquia de Stirner é o que já disse e dirá tantas vezes quantas julgar necessário: o crédulo “São Max” toma pelo mundo real o mundo ideal, a concepção de mundo que encontrou em Hegel (IA 199, d157). Marx vai mostrar então - com citações das Lições de História da Filosofia e das Lições de Flosofia da Religião - como também a “hierarquia” já está toda na obra de Hegel, que, entretanto, tratou prudentemente de não aplicar a noção para além da Idade Média (IA, 201, d158).
Stirner chama de sacerdotes e de clérigos os que vivem por uma grande idéia, causa ou doutrina - por uma “missão sublime.” São homens que não devem cultivar qualquer “apetite mundano” ou “interesse egoísta”, pois representam a “clerezia “ (Pfaffentum), ou - pelo papel pedagógico que assumem - a “professoralidade” (Schulmeisterlichkeit) (UP 110-1, r82). Tal sendo a dominação das idéias e sendo isso o clericalismo, revolucionários como Robespierre e Saint-Juste, por exemplo, foram “clérigos”; pois, por sua “obsessão” ou “entusiasmo,” fizeram-se instrumentos de uma idéia (111, r83). Nos “Novos Tempos,”, é principalmente ao “homem” que esses clérigos servem, e, sintomaticamente, quem se entusiasma pelo “homem” não costumaria prestar qualquer atenção aos indivíduos concretos. Assim, diz Stirner, os clérigos ou pedagogos da Revolução (Francesa) cortaram o pescoço dos homens para servir ao “homem” (115, r87). Na verdade, eles estariam tomados por um interesse “sagrado” - já que “o homem” não é pessoa alguma, mas um espírito, um fantasma (UP 113, r85). Ainda bem que, contra tais interesses ideais, levantam-se sempre os interesses “profanos” e “pessoais”, e o “bom senso popular;” as idéias só podem triunfar “quando dão satisfação ao egoísmo (111-2, r 83) (Com o que então, no final da contas, elas, segundo o “idealista” São Max, não predominam absolutamente; são os interesses “profanos” que acabam se fazendo ouvir...).
Stirner, Marx trata de dizer, retoma a interpretação burguesa segundo a qual Robespierre e Saint-Juste “teriam cortado a cabeça de ‘gente honesta,” mas não se dá ao trabalho de apresentar “as razões pelas quais se cortam cabeças”, que têm a ver com “interesses muito profanos”, os “da massa incontável” (IA 205, d162). Na Sagrada Família, Marx já havia tentado “explicar”, contra Bruno Bauer, a Revolução Francesa, Robespierre e Saint-Juste (pelos quais nutria grande admiração), mas os termos de sua explicação aí, no entanto, poderiam em parte dar razão a Stirner. Segundo Marx, ao contrário do que Bauer dizia, o ideal daqueles revolucionários franceses, de constituição de um virtuoso “povo livre”, não estava em contradição com o próprio povo. Pois a “Justiça” e a “virtude”, segundo as quais queriam que “o povo” vivesse, eram suas próprias qualidades, as “manifestações vitais de uma população”. Só que Robespierre e Saint-Juste, admite Marx, tinham em mente os gregos e os romanos, “confundindo a sociedade da democracia realista da Antigüidade com o Estado representativo moderno da democracia espiritualista, que repousa sobre a sociedade burguesa” (SF 147-8). Desse modo, ao tempo em que reconhece como anacrônica aquela ilusão de um universal substancial - a democracia da Antigüidade -, Marx deixa espaço para defender sua nova versão do mesmo, a Sociedade Comunista, rejeitando qualquer oposição essencial entre aquele universal e os indivíduos. Na Sagrada Família, assim, ele admite que Robespierre e Saint-Juste foram vítimas de um ideal que não correspondia adequadamente a interesses reais. Prudentemente, agora na Ideologia Alemã, contudo, ele admite uma contradição apenas entre interesses “profanos” - os da classe proprietária, de um lado, e os da “massa incontável”, de outro - que aparecem revestidos, é verdade, por uma aura sagrada (IA 204-5).
Quanto à hierarquia na Idade Média, ela é - para Marx - apenas um revestimento da dominação feudal, que é a única realmente existente “para a grande massa dos homens”. As diferenças entre a hierarquia (a Igreja, o papa) e o feudalismo (o imperador, etc) correspondem às contradições, secundárias, entre uma classe e seus ideólogos; e essas, por sua vez, sempre refletem contradições entre facções daquela classe. Em última análise, portanto, por trás de tudo só podem estar mesmo interesses sociais e econômicos, interesses de classe; e jamais quaisquer interesses ideais (IA 202-3). Agora, portanto, resta apenas dar conta da hierarquia dos dias de Stirner, e Marx e da suposta “dominação da idéia na vida ordinária”, alvo principal da denúncia stirneriana. Marx, ao que parece, não se sente à vontade para tratar de frente a questão da moral como opressora da individualidade. Segundo ele, no caso da moral burguesa, tudo não passa de hipocrisia da burguesia, de um “idealismo” muito instrumental para seu verdadeiro e cru egoísmo, coisas que só o crédulo Stirner levaria a sério. Se os burgueses cobram amor ao seu “reino”, Stirner entende que querem “fundar sobre a terra o reino do amor”; se exigem respeito à sua dominação e às condições da mesma, imagina que desejam a dominação do “respeito”. O crédulo “São Max” tomaria por “fundamento real do mundo burguês” as fórmulas de que “a ideologia hipócrita e mentirosa da burguesia” se vale para passar seus interesses particulares pelo “interesse geral” ou “ideal” (206, d163). Onde ele vê o domínio do sagrado, porém, reinam apenas relações inteiramente empíricas e somente interesses de classe (207).
Apesar de tudo, porém, o ponto de vista de Stirner não é bem esse que lhe é atribuído aqui por Marx, como se fosse o contrário do seu. Marx está, na verdade, apenas adiantando a crítica que fará da versão stirneriana da relação entre a burguesia e o liberalismo. Stirner, em alguns momentos, chega a apresentar a burguesia e o mundo burguês como filhos do liberalismo, do direito e do Estado. Aqui, porém, o que faz não é tanto atribuir idealismo à burguesia - ou a burguesia ao idealismo e à ideologia liberal; ele critica essencialmente, isto sim, o idealismo dos que não se fazem egoístas como os burgueses e que se tornam, por isso, presas fáceis da sua exploração. Certamente Stirner admitiria dizer que “o clericalismo tem vencido”, ou pelo menos permanecido até hoje, pois os homens, quando sacodem uma dominação ideal (um ser supremo), acabam por sucumbir a outra (UP 114, r85). Todavia, ele sabe muito bem que os burgueses, como no caso da Revolução Francesa, não se deixam desviar dos seus interesses pelo idealismo. “Não os culpo”, diz Stirner; “se fosse o caso de culpar alguém, esses seriam os que se deixam impor, como seus interesses, os interesses da classe burguesa” (115, r86). A propósito de hipocrisia, O Único também (tratando especificamente da moral) reconhece na sociedade moderna uma situação em que as pessoas não servem decididamente à moral nem vivem inteiramente o egoísmo à la Stirner, em que elas hesitam entre “querer livremente” e “querer moralmente” (sittlichen) (83-4, r56-7). Sobre uma oposição essencial entre moralidade (Sittlichkeit) e autonomia pessoal, coisa que na verdade hegelianamente recusa, Marx nada tem a dizer, pelo menos aqui; mas é precisamente essa a questão que Stirner está levantando.
Já vimos como, na questão da dominação por idéias, Stirner incorre de fato em fórmulas francamente “idealistas;” difíceis de serem aceitas, não apenas por “crianças” e “antigos”, como também por muitos “modernos”. Marx se aproveita de suas noções sobre a história como história do “homem espiritual”, sobre o repetido triunfo do “clericalismo”, sobre o império de “espíritos” como “o homem”, etc, para denunciá-lo como um idealista especulativo e delirante. Marx trata de ignorar as expressões mais “materialistas” de Stirner sobre a resistência do mundo e dos interesses egoístas, sobre a impossibilidade de qualquer idéia ou ideal prevalecer quando não satisfaz o egoísmo, etc, etc. Podemos entender agora que uma das razões para aquelas (as fórmulas stirnerianas francamente idealistas) é que, fazendo sua “fenomenologia”, Stirner vai-se expressar segundo o tipo de consciência que está descrevendo. É o caso do “situar-se acima do mundo”, “ser dono do mundo” e de muitas outras formulações com que ainda podemos nos deparar. Não só Marx trata de não ter isso em conta, como vários comentadores ingenuamente deixam de percebê-lo. Como veremos, outra explicação para suas expressões “ultra-idealistas” é também que Stirner está de fato tratando com o que se poderia chamar de “tipos ideais”. Marx não deixa de estar certo, por exemplo, quando diz que Stirner quer o tempo todo “identificar o espírito do ascetismo cristão com o espírito puro e simples” (IA 175); só os santos e ascetas levam tão a sério o ideal de desapego do mundo e tratam de levá-lo inteiramente à prática; e mesmo esses, Stirner sabe, também precisam comer e beber. “O humanista liberal”, por exemplo, segundo ele, interessa-se apenas pelo “homem”, e nunca pelas pessoas individuais, mas isso apenas se for o tempo todo um humanista liberal puro e completo... (UP 223, r189)
Trata-se, portanto, de “situações-limite”, são exatamente ideais, que a imensa maioria dos homens não realiza, e inclusive só poucos se propõem efetivamente realizar. Assim mesmo, são normas que se têm imposto em certa medida a eles através dos tempos, que estipulam cobranças sobre os indivíduos; a tais ideais, e aos que falam em seu nome, os homens têm pago sempre algum tributo na sua vida pessoal. Além disso, como já vimos, Stirner sugere que os ideais não têm tido o mesmo alcance nas diferentes épocas e em todas as mentalidades e culturas. Nesse sentido, parece plausível supor - com ele - um aprofundamento de seu domínio e opressão na Época Moderna, na vida pessoal e na cultura, com o protestantismo e com a filosofia moderna idealista. Stirner certamente vai atribuir um grande interesse e uma grande “realidade” a toda essa “idealidade”; o que, para Marx, é apenas coisa de alemão e de cristão - ele escreveu A Ideologia Alemã para mostrar. Stirner, aliás, constata como o ideal propriamente cristão tem perdido influência sobre os homens no seu tempo; ele até escreveu uma brochura sobre isso, que Marx certamente conheceu: uma “Réplica de um Membro da Paróquia Berlinense” sobre “a celebração do Domingo.” É verdade que ele aí se mostra incapaz de mencionar qualquer razão “material” para a acentuada perda de interesse dos berlinenses pela igreja e pelo culto, mas pelo menos dá a entender que pretende deixar de bom grado que os ideais - cristãos ou outros - vão-se embora para sempre. Enquanto isso Marx volta e meia parece preocupado em retirar o ideal do terreno da hipocrisia e do idealismo para lhe dar uma outra consistência e finalmente realizá-lo.
Stirner introduziu o tema da “hierarquia” observando que os homens podem ser divididos em “cultos” (Gebildete) e “incultos” (Ungebildete). Os primeiros, “enquanto merecem o nome” (ou seja, como o que chamei de tipo ideal), ocupam-se de idéias e espíritos tais como Deus, a Igreja, a moralidade (Sittlichkeit), a ordem, etc. Esses são pensamentos “sagrados”, para os quais, na Era Cristã ou Moderna, os homens do espírito têm exigido sempre maior respeito (UP 107, r79). Todavia, o que Stirner acrescenta em seguida - e que Karl Marx compreensivelmente não registra - é o mais interessante; segundo ele, não só em homens diferentes, mas também em um mesmo homem, chocam-se o “culto” e o “inculto”, e nenhum homem culto “é tão cultivado que não sinta prazer nas coisas”. Com efeito, é em Hegel que apareceria mais visível a ânsia do homem culto pelas coisas e o horror a toda “teoria oca;” Por isso, seu pensamento quer “corresponder absolutamente à realidade e ao mundo das coisas” (108, r80), e é por isso que o sistema hegeliano quer ser chamado de “objetivo”, pretendendo consumar finalmente a identidade do pensamento e da coisa: “aí o pensamento e o objeto, o ideal e o real, celebram sua união. No entanto, para Stirner, Hegel na verdade expressa precisamente “a suprema violência do pensamento, seu despotismo maior e seu absoluto poder”; o hegelianismo representa “o triunfo do espírito” e a vitória “da filosofia” (ibid.).
Esse é um aspecto decisivo da abordagem stirneriana do idealismo e do hegelianismo, que Marx parece até parafrasear, na Ideologia Alemã, ao tempo em que mascara. Ele prefere comentar mais de uma vez que, com a noção de que os “cultos” só se ocupam do espírito e do pensamento, Stirner apenas repete o que já dissera a propósito do “adolescente’, do “mongol” e do “moderno”(IA 208-9). A ênfase de Stirner, porém, está antes no empenho do idealista para realizar o ideal praticamente, na sua ânsia para lhe dar existência objetiva. De acordo com nosso suposto “idealista histórico”, os “cultos” ou “homens do espírito” (geistlichen Menschen), depois de porem algo na cabeça, querem de toda maneira vê-lo realizado; segundo essa ou aquela concepção, querem “fundar sobre a terra o reino do bem, etc - onde ninguém agirá por interesse próprio” (UP 109, r80). Para Stirner, naturalmente, tais homens estão na verdade é com alucinações, a mais opressiva das quais seria “o homem;” o caminho para o inferno, lembra ele, está coberto de boas intenções; a de realizar a “humanidade”, a de “tornar-se bom, nobre, caridoso, etc.” Marx certamente não é nenhum “filantropo” ou humanista piegas; o ideal que quer realizar está para ele inscrito no próprio movimento da história e corresponde a interesses pelos quais lutam espontaneamente muitos homens. Será isso, contudo, o suficiente para deixá-lo fora do alcance desse tipo de crítica? Já havíamos antes ouvido Stiner falar do anseio do espírito por espiritualizar o mundo - ou para que o ideal se torne real. Ao tempo em que se separa do mundo, o espírito quer também conquistá-lo integralmente; exatamente para poder, enfim, deparar-se apenas com o que é espiritual. Vimos também como, através da história, o espírito se tem feito mais humano e se aproximado mais dos homens; ou, por outra, como os homens têm buscado recuperá-lo, sem que ainda reconheçam que se trata simplesmente do espírito de cada um, de um espírito subjetivo. Stirner pretende colocar-se na seqüência e resolução desse movimento, representando o rompimento com o mundo do espírito. E do ponto de vista stirneriano, Marx, embora com uma concepção de tipo novo, possivelmente ainda se encontraria no interior daquele movimento de “humanização” do espírito; ou seja, no movimento para tornar o espírito real, corpóreo e material. De modo algum disposto a abrir mão de sua objetividade e universalidade - isto é, de sua substancialidade - mas, pelo contrário, firmemente empenhado em conservá-la.
Stirner coloca no interior da “alienação espiritualizante” que está denunciando todo o movimento de “encarnação” que caracteriza o pensamento moderno. Para ele, a Época Moderna não apenas é a fase da plena dominação do espírito, mas também, por isso mesmo, a da busca de sua plena “realização”. O inimigo, portanto, ao contrário do que diria a concepção de Marx, não é simplesmente o espírito ou o conceito “abstrato.” É justamente o pensamento “concreto”, o universal “concreto”, o conceito “concreto” e “objetivo” - coisas de que Marx absolutamente não abre mão e, ao contrário, busca diligentemente alcançar. Ao contrário de Hegel e de Marx, Stirner está inteiramente convencido de que a oposição do real e do ideal é inconciliável, ou por outra, de que “a contradição entre esses dois termos só pode ser resolvida aniquilando-se ambos,” e é nesse “se”, esse terceiro elemento, o eu, que ela deve encontrar seu fim. A via da “encarnação” ou “corporificação (Verleiblichung) do ideal é para o nosso egoísta um beco sem saída. Como a “santidade” para os antigos, a “corporeidade” (Leibhaftigkeit) permanecerá para os modernos um pium desiderium - enquanto for procurada dentro do “círculo mágico do Cristianismo”, o círculo da “encarnação” (UP 451-2, r407-8).
É desse modo que a concepção de Stirner se oferece como uma outra perspectiva para enfocar a evolução da própria esquerda hegeliana, que Marx e Engels caracterizam como “decomposição” ou “putrescência” do sistema. Iniciada com David Strauss, a evolução passa por Bruno Bauer e Ludwig Feuerbach, antes de chegar a Max Stirner, Karl Marx e Friedrich Engels - com Arnold Ruge e Moses Hess no meio do percurso. Ora, junto com a “putrescência”, se poderia constatar aí um movimento de progressiva “encarnação” do Espírito, que começa com a atribuição à Humanidade, por Strauss, da tarefa da salvação cristã. Depois dele, Feuerbach passa da teologia e da filosofia especulativa para uma antropologia semi-materialista, e, decididamente, de Deus para o gênero humano. Ruge vai da filosofia hegeliana e feuerbachiana à política e à luta democrática; e Hess, Engels e Marx vão do gênero humano à sociedade e ao socialismo, da filosofia à política e finalmente à economia. Constituindo em certa medida um outro leito, paralelo, Bauer e Stirner marcham também de Deus à autoconsciência, entendida como o homem, o eu, ou mesmo o indivíduo na sua liberdade e racionalidade. Quando a Stirner, porém, este pretende, à sua maneira, saltar para fora dessa trilha, fora do que ele define como “círculo vicioso do cristianismo”. Por isso, rejeita qualquer outra instância supostamente maior ou mais real do que o indivíduo contingente, que possa ser sua medida; por isso, rompe com o espírito enquanto algo de objetivo, infinito ou universal. Marx vai pretender também abandonar tudo o que lhe parece idealismo, em benefício da vida material dos homens. Mas, nesse próprio movimento, ele habilmente revela os homens atrelados inevitavelmente ao mundo e uns aos outros, e em marcha para a realização concreta de sua universalidade.
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