Contato, Comentários, Sugestões
jose_crisostomo@uol.com.br
José Crisóstomo de Souza
Deptº, Filosofia FFCH/UFBA
Estrada de S. Lázaro, 197
40210-730 Salvador, Bahia, Brasil
webdesign: Leall

 

 

CRÍTICA POSITIVA E CRÍTICA NEGATIVA: DOIS MODELOS DE CRÍTICA NO MOVIMENTO JOVEM-HEGELIANO[*
José Crisóstomo de Souza

Foi David Strauss, em 1835, quem deu o passo inicial do que viria a ser o crítico e radical movimento jovem-hegeliano, na Alemanha; e logo aí se encontrou confrontado por outro hegeliano, Bruno Bauer. Ainda que este sustentasse, inicialmente, as posições de um hegelianismo conservador, “de direita”, a diferença entre os dois já configurava um corte que atravessaria toda a evolução do movimento e explodiria no seu final; senão, vejamos. Marx nos conta, na Sagrada Família (1845, que a pendência entre Strauss e Bauer corresponde à oposição entre a “Substância” e a “Consciência de Si”; e que, sendo assim, trata-se de uma divergência no interior da “especulação hegeliana”. A Substância. Hegel a teria tomado do filósofo judeu-holandês Baruch Espinoza; a Consciência de Si, ele a teria aproveitado do alemão Johann Gottlieb Fichte; e o Espírito Absoluto seria justamente a unidade hegeliana, “necessariamente contraditória”, daqueles dois elementos, os quais, em Hegel, se encontrariam “um corrompido pelo outro”. O que Strauss e Bauer fizeram foi, “sem sair do domínio da teologia”, desenvolver Hegel “unilateralmente “ (um na perspectiva espinozeana e outro na linha fichteana), cada qual representando “um lado” do sistema hegeliano.
Para Marx, a essa altura, a Substância aparentemente nada mais é do que a natureza “em vestimenta metafísica” e “separada do homem”. E a Consciência de Si representa, também em trajes metafísicos, “o espírito”, “separado da natureza”. Enquanto Strauss e Bauer permaneceram limitados e unilaterais, foi Ludwig Feuerbach – Marx acredita – o primeiro que “concluiu e criticou Hegel”, não de um ponto de vista espinozeano ou fichteano, mas do ponto de vista propriamente hegeliano. Fez isso convertendo o metafísico Espírito Absoluto hegeliano no “homem real sobre a base da natureza”, deixando definitivamente para trás o domínio da teologia. Ele teria sido o primeiro a arrematar a crítica da religião, formulando ao mesmo tempo “os princípios da crítica da especulação hegeliana” e de toda metafísica. Cá estamos nós, portanto, dialeticamente, com Feuerbach e Marx como hegelianos perfeitos e ao mesmo tempo perfeitamente anti-hegelianos, os verdadeiros críticos de Hegel. Eles teriam avançado a verdadeira síntese do que em Hegel permanecera contraditório e fora depois dele unilateralmente desenvolvido em duas direções opostas. Marx, no entanto, formula suas considerações a esse respeito numa crítica ferrenha a Bruno Bauer, representante da Consciência de Si. E é possível que, apesar da pretensão de ter superado aquela oposição, não deixe de estar mais próximo do pólo da Substância. A eqüidistância de Feuerbach parece ainda mais duvidosa...
Traduzindo a Substância tão somente pela natureza, o jovem hegeliano Karl Marx reserva para si próprio e para Feuerbach – e, ao final, apenas para si – a superação da unilateralidade de Strauss. Diferente do que ele diz, porém, a crítica straussiana não é feita propriamente em benefício da natureza e sim da “Humanidade” e da “Comunidade”. Strauss faz a crítica da doutrina do “Deus-Homem” em benefício do “Homem”, e seu questionamento da transcendência da Divindade com relação à Humanidade – deve ser notado – coincide com um deslocamento do indivíduo singular em benefício do “Gênero Humano” absolutizado. Esse, sim, parece ser o traço mais marcante do que pode ser chamado de o ponto de vista da Substância. Strauss declara que “as qualidades e funções que a doutrina eclesiástica atribui a Cristo não são compatíveis com um indivíduo..., mas o são com a idéia de Gênero Humano” (o que é muito parecido com o que depois dele dirá Feuerbach a respeito dos “predicados” divinos). E, para Strauss, essa idéia de Humanidade ou de Gênero Humano não é simplesmente uma idéia como as outras – “ideal”, “subjetiva”, “irreal”, “kantiana”. Trata-se, para ele, de um idéia “hegeliana”, “real”, mas representando “a união hipostática das duas natureza, a divina e a humana”. Ela é o verdadeiro Sujeito – a Substância como Sujeito! – ao qual se aplicam os atributos ou predicados que a teologia oficial reservou apenas para um indivíduo, Cristo. O ideal messiânico de redenção da humanidade, a idéia da unidade das naturezas humana e divina, diz Strauss, “é uma idéia real num sentido mais elevado quando considero o inteiro Gênero Humano como sua realização”. É esse o “humanismo panteísta” de David Strauss.
Segundo ele, a encarnação de Deus não deve ser entendida como limitada a “um ponto no tempo”, mas como prosseguindo desde a eternidade através de toda a história – uma caminhada no sentido da humanização crescente da vida, da realização do “divino”. A divindade, como qualquer outra coisa, não pode ser transcendente ao processo histórico e social; o poder criativo deve provir “de dentro” do mundo e não “de fora” dele. Assim, Strauss investe contra a crença numa Divindade Pessoal, individualmente criadora, em benefício da “Comunidade”. Na crítica straussiana, então, os Evangelhos são apenas a expressão da “tradição”, da consciência da comunidade – aliás, como qualquer outro mito. E a salvação do indivíduo, ou a superação de sua alienação, consistiria agora em entrar conscientemente na Comunidade, como o “equivalente secular do Corpo de Cristo”. Essa é a “nova fé” straussiana, recebida inicialmente com tanto entusiasmo por jovens hegelianos como Friedrich Engels, Karl Schmidt e outros; e criticada depois, em 1873, por Friedrich Nietzsche, nas suas Considerações Extemporâneas. Quanto à sua concepção de fundo, Strauss pode ser ainda considerado, como Hegel, um idealista; porém, mais adiante, ele vai se manifestar no sentido da desimportância da disjunção idealismo ou materialismo. Na verdade, sua posição quer ser essencialmente monista, contrária ao “dualismo que separa de seu corpo a alma do homem e opõe sua existência no tempo à sua existência na eternidade”.
O que Bruno Bauer, também teólogo, tem a dizer sobre isso? No prólogo da Crítica da História Evangélica dos Sinóticos (1841), ele afirma que “a tradição”, à qual Strauss atribui a origem dos Evangelhos, “nada mais é do que a Substância”, investida de “uma forma determinada de existência”, “como potência da Comunidade religiosa”. Strauss permanece fiel ao ponto de vista segundo o qual “a Substância é o Absoluto”. Ora, como diz Bauer hegelianamente, a Substância é “o Universal que ainda não atingiu a determinação real e racional do Universal”, que “só pode ser atingida na singularidade e no infinito da consciência de Si” – ou seja, na personalidade individual. Num nível mais prosaico, isso significa que, para Bauer, Strauss não pode explicar o surgimento dos Evangelhos a partir da tradição: “a Comunidade” – eis a que conduz a elucubração baueriana – “não tem mãos para compor, nem capacidade de julgamento para dar unidade a detalhes relevantes”. A Tradição, a Comunidade, sua Consciência mítica, têm um papel apenas secundário; só o indivíduo pode ser criador; é antes na personalidade dos evangelistas que se deve buscar a fonte dos Evangelhos.
A propósito de que Marx resolve lembrar na Sagrada Família esse querela especulativa e teológica do auge da crítica jovem-hegeliana da religião? Nesse momento, ele está desenvolvendo o combate contra a “Crítica Pura” de Bruno Bauer, que acabara de atacar o Comunismo em alguns artigos recentes. É que ela não quer mais ser crítica religiosa, social ou política, mas crítica da religião, da política e de tudo mais. Obrigada, “a Crítica” fizera política, atacando o regime prussiano para se defender, e com isso se colocara no mesmo nível de adversário e no terreno dos pressupostos dogmáticos das demais correntes políticas. Ela, diz Bauer, abrira mão do “espinozismo” mas ainda “supusera a Substância em um domínio”. Agora, volta-se também contra os “preconceitos políticos” que embaraçavam, e não mais se deixará limitar por quaisquer peias. E isso, em termos filosóficos, corresponderia a uma total superação do ponto de vista da Substância. Agora a Crítica investe igualmente contra o Liberalismo e o Comunismo, e contra seu pressuposto: o “Povo”, ou a “Massa”. Pois a Massa na verdade seria o oposto da “Crítica” e do “Espírito”, com cujos interesses não coincide de forma alguma.
É contra essas teses que Marx – que politicamente está tomando o rumo oposto – vai denunciar que, com sua alegada “vitória sobre o espinozismo”, Bauer apenas assume plenamente o idealismo hegeliano, ou, o que seria a mesma coisa, o espiritualismo cristão. “Renunciando à Substância”, ele chegaria “a um outro monstro metafísico”: o Sujeito, entendido como a ciosa “Consciência de Si infinita”, como o homem separado da natureza. A “Crítica Pura”, com sua contraposição entre Crítica (espírito) e Massa (carne), simplesmente recuperaria a “teoria criacionista cristã sob sua forma especulativa hegeliana”, não passando de “pura”... teologia. Ora, tudo isso soa certamente muito “materialista” e “ateu”, mas aqui Marx está defendendo também sua preferência pela tradução “substancialista” do Espírito na “Humanidade” e na “Sociedade”, em vez de numa soberana e dissolvedora “Consciência de Si” que resultará ser, em última análise, com um outro jovem hegeliano, Max Stirner, o indivíduo consciente de si, soberano e sem medida. Marx está optando decididamente pelo ponto de vista da Substância, contra o de um crítica potencialmente individualista-niilista.
Na verdade, por trás da oposição Substância vs. Consciência de Si (ou materialismo vs. idealismo) está uma outra: a de um ponto de vista “positivo” versus um ponto de vista dissolvedor e crítico-niilista. A crítica de Bauer é “absoluta” porque não confere valor absoluto a coisa alguma; por isso ela pode ser considerada como um “niilismo crítico”, limitado apenas por uma fé hegeliana na História. A crítica baueriana vai além das críticas filosóficas, teológicas e políticas, de Feuerbach, Strauss e Arnold Ruge, que se pretendiam ainda “positivas”. Segundo H. A. Baatsch, ela é “uma insurreição do espírito contra sua própria esfera” – o que é algo muito parecido com a apreciação que dela faz Max Stirner. É a última e mais radical revolta espiritual; não mais de um pensamento contra outro, mas supostamente do livre e corrosivo pensar contra todo e qualquer pensamento fixado, todo e qualquer “dogma”. Dando um passo além, Stirner, inicialmente baueriano, surpreenderá Marx e embaraçará sua refutação de tudo isso como espiritualismo hegelianismo, avançando da Consciência de Si para um voluntarioso eu singular corpóreo. Stirner pretende escapar ao círculo vicioso do hegelianismo e do espiritualismo através de uma insurreição do corpo, ao mesmo tempo contra todo pensamento e contra o próprio pensar que se pretenda “livre” e “absoluto”. Assim ele supõe – como Marx de outra maneira – ter finalmente deixado para trás a filosofia e o idealismo; com isso ele abre mão inclusive da “Crítica”, salvo se entendida como “própria” e – como diríamos hoje – “desejante”. Stirner, pode-se dizer, traduz o Espírito Absoluto e a Consciência de Si no indivíduo corpóreo particular e presente. E Marx, o Espírito Absoluto e o Ser-Genérico no Corpo Social e no indivíduo social-corpóreo. Não obstante isso, mesmo sob esses novos avatares – e até na forma de uma disputa pelo corpo – a luta entre Substância e Consciência de Si de certo modo vai continuar – ainda na Ideologia Alemã (1945-1946), de Marx e Engels.
Nessa obra, na seção sobre Bruno Bauer (intitulada “Sankt Bruno”), Marx procura defender seu aliado Feuerbach contra a pecha de “Cavaleiro da Substância” ou da Hilé (matéria). Bruno Bauer, num ataque ao então mestre materialista de Marx, dissera que a síntese hegeliana da “Substância espinozeana” e do “Eu fichteano” estava marcada por uma contradição que só poderia ser “resolvida e suprimida” de duas maneiras. Ou “a Consciência de Si consome-se no fogo da Substância”, ou “é preciso mostrar que a Personalidade é a causa primeira de seus atributos e de sua essência”, isto é, “que o conceito de Personalidade implica em si que ela põe seus próprios limites”. E a radicalização stirneriana lhe parece – a Bauer – “um esforço real”, ainda que equivocado, “para aniquilar radicalmente a Substância”. Mais do que o próprio Feuerbach, no entanto, Karl Marx, sem o admitir, persegue na Ideologia Alemã precisamente a primeira solução (“substancialista”); mesmo que para isso deva abrir inteiramente mão da “Personalidade Livre” e da transcendência do Sujeito. Pois qualquer titubeio ou concessão nesse terreno parece deixar uma brecha que pode ser forçada pelo individualismo e pelo niilismo da Consciência de Si.
Nesse momento, no “Sankt Bruno”, Marx se limita a atacar a proposição de Bauer por seu fraseado hegeliano, e a considerar o problema como uma questão “interna à especulação hegeliana” (IA 116-7, d82). Mais adiante, porém, ele reconhece que a filosofia baueriana da Consciência de Si evoluiu para uma filosofia da Personalidade que trata, na mesma linha de Max Stirner, de apresentar pretensiosamente o indivíduo “como sua própria obra” (118, d83). E, a propósito de nada, depois também de reconhecer Stirner como um adversário da Substância, vai referir-se ao “ódio” deste por Espinoza (que Stirner sequer menciona na sua obra), e denunciar sua suposta adoção do ponto de vista de Leibniz (205), o filósofo da mônadas – que, para a filosofia alemã do período, representa, ainda mais do que Fichte, o contrário de Espinoza. Na Ideologia Alemã, Marx vai ainda caracterizar ironicamente Stirner como “herói” da luta “contra o homem genérico e da Substância “(470, d413), e destacar que é uma ilusão supor-se que, na forma de associação dos indivíduos proposta por Stirner, “a Substância é destruída” e as relações entre seus integrantes “não tomam jamais uma forma fixada frente a cada indivíduo particular” (456, d399). Embora alusões como essa pareçam brincadeiras com a linguagem dos adversários, elas podem também, como veremos, ser lidas como indicações de que Marx ainda permanece envolvido com a problemática do hegelianismo e da filosofia alemã – mesmo na sua obra de ruptura com ela, que é a Ideologia Alemã.
Na “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” (1843-44), Marx apressara-se em dar por encerrada a crítica da religião, enquanto ela deixava ainda subsistir um princípio “positivo” e “substancial”, uma medida universal objetiva: o “homem”. “No que diz respeito à Alemanha”, ele afirma, a crítica radical da religião “está no essencial concluída”; “ser radical” não é outra coisa senão “atacar o problema pela raiz”, e na raiz – felizmente – está... o “homem”. A crítica da religião, no seu desenvolvimento, não deságua no nada ou no eu; ela desemboca no “homem genérico”; melhor ainda, ela “desemboca na doutrina de que o homem é o Ser Supremo para o homem”. A preferência de Marx pela crítica feuerbachiana da religião – pois é dela que se trata- parece assim decorrer de ser ela “positiva” e não lhe deixar sem um “ser supremo”, algo de universal e positivo. “O radicalismo da teoria alemã” – Marx argüi pro domo sua – está em saber partir da “superação positiva (grifo J.C.S.) da religião”. Nos Manuscritos de 44, ele deixa perfeitamente clara sua contraposição entre os dois tipos de crítica que se desenvolvem no seio do movimento jovem hegeliano, bem como seu compromisso com um deles. No prefácio, ele se refere a si mesmo e a Feuerbach como “críticos positivos”, em oposição ao crítico “absoluto” que é Bruno Bauer. E admite que “a crítica positiva em geral” – incluindo a própria “crítica da economia política”, diz ele – deve seu fundamento “às descobertas de Feuerbach”, que é o fundador da “Crítica humanista e naturalista positiva”.
A crítica baueriana da religião encera o Cristianismo como um determinado momento no desenvolvimento da Consciência de Si. A partir daí, ela conclui que as formas objetivas que correspondem a tal etapa, com a família e o Estado cristãos, além da Igreja, devem ser “dissolvidas”, junto com o próprio Cristianismo, por uma Consciência de Si superior; pois a Consciência de Si que tudo engendra é a mesma que tudo deve negar. Até certo ponto, a “Crítica (que em Bauer nada mais é do que a Consciência de Si em marcha) parece sustentar, frente ao existente, algo de positivo como o “homem verdadeiramente universal e a universal liberdade. Mas tais noções não poderiam coincidir com qualquer figura política determinada, ou fixar-se num outro “dogma” qualquer. Quanto a Marx, seu objetivo principal aparentemente sempre foi “construtivo”; suas pretensões destrutivas limitando-se às “falsas” manifestações do “humano”. Até na maturidade, ele sempre se considerará um “crítico”; sua crítica, entretanto, não quer abrir mão de um fundamento positivo – o que seus adversários chamariam de um “dogma”. Em vez de um dogma filosófico, ela vai atrás de um dogma supostamente empírico, pois qualquer princípio metafísico ideal poderia cair sob o fogo da crítica niilista. Na Ideologia Alemã, Marx retruca que “todas as formas e produtos de consciência podem ser dissolvidos”, mas “não pela crítica intelectual, não pela Consciência de Si”; só a “derrubada prática das relações sociais concretas”, isto é, a Revolução, pode fazê-lo. Ora, ela o fará em nome da construção de algo muito “positivo”, que deveria representar a verdadeira Comunidade e o homem verdadeiramente genérico: o Comunismo (IA 94, 96).
No seio do movimento jovem-hegeliano e do idealismo alemão, Espinoza representa tanto o “substancialismo” quanto o “dogmatismo” – dois aspectos de uma mesma posição, dois nomes para um mesmas coisa. O dogmatismo, por oposição ao criticismo (kantiano-fichteano), afirma para o homem a possibilidade de alcançar teoricamente verdades absolutas, que se impõem a ele como inteiramente objetivas. Assim é, também, com toda teoria que parte de uma sólida certeza inicial, uma premissa que permite descartar toda teoria concorrente. A nível prático, o dogmatismo é uma doutrina que dita materialmente ao homem o que ele deve fazer. Tratando daquela oposição, nas “Cartas Filosóficas sobre o Dogmatismo e o Criticismo” (1795), Friedrich von Schelling entende – “stirnerianamente” que “o princípio supremo do criticismo” é: “Eu sou!”. Enquanto isso, o dogmatismo anula no Sujeito, no eu, toda “causalidade livre”... em benefício do objeto; ele “soluciona o conflito teórico entre sujeito e objeto, pela exigência de que o sujeito deixe de ser sujeito para o objeto absoluto, isto é, que deixe de ser oposto a ele”.
Veremos que, na Ideologia Alemã, como também nas “Teses ad Feuerbach” (1845), Marx se esforça para escapar a tal antinomia, embora, a nosso ver, seu esforço redunde ainda numa solução “substancialista” e “dogmática”. Em todo caso, ele, no início da Ideologia Alemã, argumenta materialistamente que seus pressupostos fundamentais “não são dogmas”, mas são bases reais das quais não podemos fazer abstração “senão na imaginação” (IA 45, d20). Consistem nos próprios “indivíduos reais”, na “sua ação”, e em “suas condições materiais de existência”, e “são verificáveis por via puramente empírica” (id.). Ora, pelo menos de início, não seria aconselhável – ao contrário do que faz a maioria dos comentadores – deixar-se impressionar demasiadamente pelas pretensões de Marx a uma fundação “puramente empírica” e não-filosófica de sua teoria. Também o humanista Feuerbach sustentava que seus “pressupostos” não eram “pensamentos”, mas, ao contrário, “fatos objetivos”. E o próprio Marx, no prefácio dos filosóficos Manuscritos de 44, afirmava candidamente que, “para o leitor familiarizado com a economia política, não preciso assegurar que meus resultados são o produto de um análise inteiramente empírica”.
De qualquer maneira é importante notar que, mesmo na Ideologia Alemã, não se trata de um questão puramente teórica; com seus pressupostos, dogmáticos ou não, Marx tem em vista conseqüências práticas. Stirner imagina que, “se não houver nada de sagrado para o homem, a porta estará inteiramente aberta para o capricho, o arbítrio e uma subjetividade ilimitada”. Criticando o “homem genérico” após a crítica de Deus, é nesse sentido que Stirner se encaminha: “O homem não é a medida de tudo; eu é que sou essa medida”. Não obstante procure fugir à discussão nesses termos, Marx, ainda na Ideologia Alemã, acaba por mostrar claramente como repudia a supressão de um “tertium comparationis” universal – senão de um Ser Supremo – para os indivíduos (IA 476). Stirner, ele se queixa, “não deixa qualquer critério objetivo para os indivíduos” (IA 475, d418). Do ponto de vista do novo materialismo, felizmente, isso de modo algum acontece; com suas premissas “puramente empíricas”, Marx encontra uma fundação não filosófica de um critério objetivo para a prática dos homens. A partir daquelas, ele vai aparentemente “deduzir” – e esse dever ser o próprio percurso dialético da História – a Revolução e o ideal do Homem Genérico sob sua expressão concreta, o Comunismo. Trata-se, portanto, de premissas empíricas prenhes de conseqüências práticas, que devem fundar solidamente um novo ideário positivo para os homens. Mais do que isso, devem conduzir finalmente à sua plena realização. Serão, porém, as premissas de nosso “crítico positivo” de fato inteiramente não-filosóficas e até mesmo anti-filosóficas?
Na Ideologia Alemã, ele afirma “dogmaticamente” que, com sua concepção do mundo e do homem como atividade sensível, “vê as coisas tais como são realmente e realmente se passaram”. E aí “qualquer problema filosófico profundo se resolve com clareza em um fato empírico” (IA 55, d43). Esta pode parecer uma declaração empirista e anti-filosófica radical, mas, apesar disso, poderia também conter uma implicação insuspeita. Pois sugere que Marx espera encontrar uma tradução empírica para os problemas postos pela filosofia alemã, e igualmente uma solução empírica para os mesmos. O que significa não só atribuir muita realidade à filosofia – ao pensamento, em última análise – como também muita filosofia à realidade. Na oitava tese “ad Feuerbach”, ele já havia declarado que “todos os mistérios que desviam a teoria para o misticismo encontram sua solução racional na prática humana e na compreensão dessa prática”.
Tão materialista quanto seja ou pareça ser a posição anti-consciencialista de Marx – que nega toda atividade e todo conteúdo próprios á Consciência e, por conseqüência, também à filosofia e à religião – ela está estreitamente associada a esse eventual “projeção” ou “tradução” da filosofia na realidade. Quando Marx se refere à filosofia, nesse momento, ele quer dizer essencialmente Hegel e a filosofia clássica alemã; e em Hegel – diz uma passagem, depois suprimida, do prefácio da Ideologia Alemã – “todo o mundo material foi metamorfoseado em um mundo de idéias” (IA 40não, d14n). Desse modo, o conteúdo da filosofia – e também da religião – torna-se o mundo material “metamorfoseado”, e fica perfeitamente legitimada e recomendada a “metamorfose” na direção oposta. Marx louva a tese de Feuerbach de que “a religião não tem nenhum conteúdo particular que lhe seja próprio”; e, na Ideologia Alemã, insiste em que a religião, não apenas não tem história própria, como também não possui nenhuma “essência própria” (IA 12, d86). Ora, não estaria aí uma porta aberta para - em vez de aniquilar – transferir para a realidade o conteúdo da religião?
Marx parte da crítica feuerbachiana da religião. NO prefácio da Segunda edição de Essência do Cristianismo Feuerbach diz que “a religião é o sonho do espírito humano”, mas que aí “não nos encontramos no nada ou no céu, e sim na terra, no reino da realidade”. “Eu me contento”, completa ele, em transformar o objeto da representação ou da imaginação em objeto da realidade”. Acompanhando o mestre, Marx afirma, na Ideologia Alemã, que não há por que passar “do reino de Deus ao reino dos homens”, pois nunca saímos deste último (IA 72). Essa é a posição característica da crítica materialista da religião, mas poderia também ser a posição adequada a uma crítica não niilista da mesma, uma crítica “positiva”.
Se prestarmos atenção, Marx se dispõe a mostrar, na Ideologia Alemã, qual “problema filosófico profundo” se resolve em “um fato empírico”, e como. Estamos exatamente em pleno materialismo histórico. Depois de apresentar seus pressupostos materialistas: os “indivíduos reais”, com suas necessidades, sua produção e os decorrentes laços materiais (IA 57-9, d28ss). Depois de chegar à divisão do trabalho – que acarreta a dissociação da consciência, a propriedade privada e a separação entre os homens (59-60). Marx se depara então com a contradição entre interesse pessoal e interesse geral hipostasiado. E também com a “fixação da atividade social” em uma “potência estrangeira”; com a “petrificação” do produto do trabalho em uma “potência objetiva” (a “Substância”!), que passa agora a dominar os indivíduos dispersos (61-63). Em uma palavra, o “problema filosófico profundo” a que ele se refere é a “alienação” (como Marx mesmo reconhece, sempre com o cuidado de cercar com aspas a expressão), da qual o Comunismo deverá representar a solução.
Referindo-se à pendência filosófica entre Consciência de Si e Substância, Marx declara que esse não é um problema de significação “universal” ou “absoluta”, mas de um conflito “no seio da especulação hegeliana” (IA 117, d82). Entretanto, ele admite contraditoriamente que se trata de “expressão abstrata e transfigurada” de um “conflito real” e, como veremos, bastante “universal”. Trata-se da oposição entre os homens individuais e o “Gênero”, i.e., entre eles e “suas relações sociais” que, com a divisão do trabalho, “parecem existir de maneira autônoma frente a eles” (ibid.). O erro – diz Marx a propósito de Bauer – está em tomar “a formulação filosófica do problema real” pelo próprio “problema real” (ibid.). Na seção “Feuerbach”, da Ideologia Alemã, Marx já havia “traduzido” a mesma oposição em termos da relação entre “o homem” e “a natureza”, ou entre “a história e essa última (55, d43). A questão Substância vs. Consciência de Si, diz ele, “se reduz à compreensão do fato de que a célebre ‘unidade do homem e da natureza’ sempre existiu na indústria”, variando em cada época segundo o desenvolvimento desta (ibid.). De igual maneira, na seção sobre Stirner, vai-se valer do mesmo artifício da “tradução” para sustentar, à sua maneira, a oposição filosófica entre “essência” (genérica) e “existência”, contra o “crítico negativo” Marx Stirner (472ss, d415ss); bem como para defender a sua solução prática (o Comunismo, novamente) para a mesma. Sempre em nome da realidade, e não de qualquer filosofia, Marx vai entender igualmente as “circunstâncias” em termos de “Substância”, tendo sempre o cuidado de cercar a expressão com aspas. Contudo, serão as aspas, em todos esses casos, o suficiente para transportá-lo inteiramente para fora do terreno da filosofia alemã ou para disfarçar a preocupação “anti-niilista” que na verdade caracteriza (como “crítica positiva”) sua crítica alegadamente materialista?
]

 

VOLTA