Contato, Comentários, Sugestões
jose_crisostomo@uol.com.br
José Crisóstomo de Souza
Deptº, Filosofia FFCH/UFBA
Estrada de S. Lázaro, 197
40210-730 Salvador, Bahia, Brasil
webdesign: Leall

 

 

Mário Vieira de Melo.
Trecho de “Compreensão brasileira do problema europeu. O século das luzes e Rousseau. Os diferentes tipos de romantismo europeu. O espírito estetizante: o ‘homem cordial’ e o ‘herói da inteligência’.”
Do livro Desenvolvimento e Cultura: o Problema do Estetismo no Brasil (1963), São Paulo: Paz e Terra, 1980.
(...) Um dos vícios básicos da nossa maneira de compreender a cultura europeia é encará-la como um produto de uma legitimidade indubitável, como algo de definitivo e de inelutável. Os nossos intelectuais católicos constituem uma exceção a esta afirmativa. E a coisa se compreende: a posição católica requer uma atitude de reserva com relação à cultura, uma subordinação do plano cultural ao plano religioso. Mas, mesmo os intelectuais brasileiros que se insurgem contra a nossa subserviência cultural, baseiam suas ideias sobre a premissa implícita de que o que a Europa produz no domínio da cultura é, do ponto de vista do próprio consumo europeu, perfeitamente inatacável. Essa produção europeia começa a ser suscetível de reparos somente depois de transformada em material de consumo brasileiro, mas ainda então, as críticas visariam não as próprias ideias europeias, mas a utilização artificial que delas estaríamos fazendo. O mal estaria, assim, não na própria essência das ideias europeias, mas no fato acidental de que não tendo sido elaboradas por nós mesmos não poderiam a rigor servir à edificação da nossa própria realidade cultural.Com isto manifestamos, ao mesmo tempo que uma inegável indulgência, uma severidade não menos certa, com relação aos produtos da cultura europeia. A circunstância de aceitarmos como boas para a Europa todas as ideias surgidas no solo europeu é, evidentemente a consequência de uma indulgência excessiva; uma atitude menos marcada por esta benevolência, nos levaria sem dúvida a perceber entre as diferentes ideias europeias uma diversidade de valores extremamente acentuada, percepção aliás que poderia se revestir de uma significação especialíssima para o nosso desenvolvimento cultural uma vez que nos obrigaria, em última análise, a tomar posição diante desses valores e a denunciar aqueles que devessem ser rejeitados, não só por nós mesmos como pela própria Europa. Por outro lado, a insistência em considerarmos más, para o Brasil, todas as ideias surgidas na Europa é o resultado de um julgamento demasiadamente severo; uma atitude menos marcada por essa intransigência nos levaria, sem dúvida, a compreender que nem todas as ideias do velho mundo são a rejeitar e que aquelas que no corpo de sua cultura representam o elemento sadio, a força viva e renovadora, constituem justamente o fator precioso, a realidade eficaz de que necessita o Brasil para levar adiante a tarefa difícil, árdua e complexa de sua edificação cultural.A distinção entre um ponto de vista brasileiro e um ponto de vista europeu deve ser feita, por conseguinte, na problemática da cultura, levando-se em conta os laços múltiplos e invisíveis que unem esses dois pontos de vista. Nenhuma atitude é mais estéril do que aquela que consiste em considerar a cultura europeia como um patrimônio precioso para a humanidade, mas sem serventia para o Brasil. O fato de havermos feito, até hoje, uma utilização pouco satisfatória desse patrimônio é um argumento contra nós mesmos, não contra a cultura europeia. A nossa emancipação espiritual - se é que de fato estamos destinados a promovê-la um dia - dependerá não da decisão radical de nos afastarmos de tais fontes de cultura, mas de uma compreensão mais aprofundada do que elas representam como valor inelutável para o futuro de toda a humanidade, o Brasil inclusive. Eis porque a ideia de uma cultura brasileira que seja autêntica e independente de padrões europeus agrava, ao invés de eliminar, o impasse a que chegamos em virtude da nossa curiosa incompreensão do fenômeno europeu.E aqui tocamos um ponto com relação ao qual somos, como elite, como classe que recebeu uma educação europeia, especialmente suscetíveis de crítica. O brasileiro culto não tem a menor dúvida sobre o fato de que o repositório de ideias de que dispõe a Europa constitua um patrimônio importante para o mundo em geral; nem tampouco lhe parece ocorrer dúvida alguma quanto ao fato de que esse patrimônio esteja sempre ao seu alcance, sempre à sua disposição, à espera do momento em que se decida fazer o gesto de apropriação necessário. Mas, como é pouco provável que lhe passe pelo espírito a ideia de que existam, talvez, certas dificuldades no ato mesmo pelo qual se deverá efetuar essa apropriação! Como é pouco provável que possua uma consciência nítida da sua incapacidade de pensar livremente diante da questão de saber se vale ou não a pena realizar um tal esforço de assimilação! Como é pouco provável que compreenda diante de uma tal questão, que uma certa maneira de conceber a Europa já predeterminou o tipo de resposta que será a sua!Ora, esse é o ponto que nos parece apresentar maior relevância. No capítulo anterior já indicamos como a situação intelectual da Europa contemporânea encerra elementos contraditórios e como a adoção exclusiva de uma entre as suas várias tradições levaria, fatalmente, ao paroquialismo, ao unilateralismo em matéria de cultura. Antes de saber se no esforço de formação da nossa substância nacional deveremos, sim ou não, utilizar elementos da cultura europeia, o problema que nos confronta é, por conseguinte, verificar se temos daquela cultura uma noção justa e adequada. Há em todo brasileiro culto uma certa imodéstia com relação a este problema, uma pretensão de já o ter resolvido e de não precisar de luzes alheias para fazê-lo. É comum encontrar-se em livros brasileiros afirmações de um dogmatismo surpreendente sobre o que deva ser considerada a tendência mais representativa do pensamento contemporâneo. Na verdade, o que estas afirmações revelam é uma total falta de sensibilidade para o clima de perplexidade em que vive o velho mundo, é também a vontade de simplificar de um modo radical os dados do problema europeu. Dessa simplificação resulta, naturalmente, a oposição de atitudes manifestadas no nosso país entre os partidários de um nacionalismo cultural e os adeptos de uma cultura brasileira apoiada em bases universais. Tanto uns quanto outros compreendem a Europa de uma certa maneira mas não têm consciência de quão deficiente e limitada é essa compreensão. Falta-lhes o sentimento de perplexidade em que se debate o mundo europeu, falta-lhes, por conseguinte, a perplexidade própria que os levaria a examinar com mais seriedade o fenômeno europeu. Certos de que sabem em que consiste este fenômeno tomam com relação ao mesmo uma atitude displicente e sumária que os leva fatalmente seja a se pronunciarem em favor de uma Europa que não conhecem no seu misto de elementos sadios, estéreis, fecundos e malsãos, seja a se pronunciarem radicalmente contra ela, englobando na sua condenação os elementos mais diversos e contraditórios.Mas é evidente que reduzir as nossas relações culturais com a Europa a uma questão de apreciação individual ou mesmo perguntar se vale ou não a pena realizar no Brasil um esforço de assimilação de ideias europeias revela não somente uma completa incompreensão do problema da cultura, como também uma inteira incapacidade de perceber os rudimentos mesmos do problema europeu. Antes de pronunciar-se de maneira tão dogmática sobre a inutilidade para o Brasil da cultura europeia, os adeptos de um espírito autenticamente nacional deveriam certificar-se de que conhecem verdadeiramente a Europa, deveriam procurar nos mostrar que aquilo que rejeitam é uma realidade e não um fantasma. Mas, na verdade, o que os diversos pronunciamentos realizados por esses “nacionalistas” nos revelam é que da Europa eles têm a mais vaga das noções e que o problema da cultura jamais constituiu para eles objeto de um estudo sério e aprofundado.Em que se resume a Europa para nós? Quase que integralmente no Romantismo francês do século XIX. Uma tal constatação que deveria lançar as mais sérias dúvidas sobre a maneira pela qual nossos antepassados “assimilaram” e a geração atual continua “assimilando” a cultura europeia constitui, pelo contrário, o ponto de partida habitual para os críticos e analistas brasileiros que comentam a evolução da literatura e da arte do país. Trata-se, na verdade, de uma reflexão tranquilamente feita pela maior parte dos estudiosos de nossas letras, sem que a menor sombra de má consciência se acuse na maneira pela qual eles nos introduzem no mundo da cultura nacional. Dir-se-ia que o Romantismo francês do século XIX representou para os nossos antepassados e representa ainda para nós a única forma possível de uma cultura de inspiração europeia, o único valor espiritual que emergiu na Europa como resultado de um esforço de elaboração de ideias duas vezes milenar. Diante de uma concepção tão sumária, tão inexata, do desenvolvimento da cultura no velho continente, torna-se até certo ponto compreensível que, de vez em quando, surja no Brasil um prurido de revolta contra uma tal cultura; mas o que é surpreendente é que essa revolta tenha levado os intelectuais brasileiros a reconsiderar o problema da cultura, mas não o problema da Europa, como se desses dois problemas só o primeiro fosse suscetível de uma reconsideração.É nossa profunda convicção que para o Brasil os dois problemas se acham intimamente ligados. Assim como para os europeus dos primeiros séculos da era cristã o problema da cultura estava ligado ao problema da Grécia e a cultura foi assimilada unicamente na medida em que a Grécia se tornava melhor compreendida; assim como teria sido absurdo para um pensador daquela época procurar extrair ideias do solo europeu, não levando em consideração a Grécia, no afã de fundar uma cultura autenticamente nativa; assim como o processo do desenvolvimento cultural do velho continente coincide, da maneira mais precisa, com o processo do descobrimento das riquezas do patrimônio grego - do mesmo modo nós, brasileiros, não poderemos pensar seriamente na nossa emancipação cultural, sem termos preliminarmente abordado, com a consciência de uma enorme tarefa a executar, o problema da Europa. Nossa falta de cultura se revela justamente no fato de que, para nós, a Europa jamais constituiu um problema. A facilidade com que aceitamos certas ideias europeias e a facilidade com que, de vez em quando, proclamamos a necessidade de uma cultura nacional, mostram bem como no entusiasmo, como na decepção, o que nos falta é o senso de solidariedade com o velho continente, sem o qual relações culturais verdadeiramente eficazes jamais poderão se estabelecer. É de um tal senso de solidariedade que resultaria a capacidade crítica de discernir os elementos da cultura europeia que poderiam nos ser úteis - o entusiasmo total, a aceitação irrestrita que certas pessoas confundem com essa solidariedade nada mais são do que uma manifestação vaidosa e ingênua que deriva da noção ilusória de que o importante é parecer com os países do velho mundo, mesmo que essa parecença implique uma adesão aos elementos menos valiosos da cultura europeia.Foi por achar que o problema da Europa tem prioridade sobre o problema da cultura que reservamos no nosso trabalho um tão grande espaço à análise das ideias europeias. Este último problema não pode ser resolvido de um modo abstrato; não nos é possível decidir sobre quais devam ser as bases e a natureza da nossa cultura nacional sem termos um exemplo, uma ilustração daquilo que, de uma maneira geral, possa representar uma cultura. O erro mais comumente cometido pelos intelectuais brasileiros que procuram situar o problema da cultura independentemente do problema europeu consiste em adotar, como soluções definitivas, formulações abstratas, que foram, naturalmente, elaboradas no velho mundo mas que estão longe de constituir respostas capazes de englobar a totalidade dos elementos a elucidar. Citemos aqui, por exemplo, a noção de um ideal latino que constituiria a vocação irresistível do nosso espírito ou a ideia de uma tradição católica que teria deixado marcas indeléveis na nossa alma coletiva, ou, finalmente, o conceito de uma cultura autêntica, não alienada, baseada em nossa realidade econômico-social, conceito, como se sabe derivado do marxismo. Para adquirirmos a certeza de que a nossa ideia de cultura não é estreita, unilateral ou incompleta, só há um meio: procurar na história uma lição convincente e que possa se constituir como paradigma. O modelo latino, por exemplo, dificilmente poderia aspirar a uma situação de supremacia indiscutível sobre os demais padrões que a Europa teria a nos oferecer. Não vemos nós os países da Europa Latina - a Itália, a Espanha e mesmo a França - procurarem renovar hoje em dia o seu espírito através de um contato com as ideias dos povos não latinos? Do mesmo modo uma cultura exclusivamente católica nos obrigaria a uma dependência intelectual de um sistema de ideias do qual o mínimo que se poderia dizer é que ele pertence ao passado. Mesmo se admitirmos o fato de uma tradição católica no Brasil e a necessidade de respeitarmos os laços que nos ligam a essa tradição, ainda assim, o imperativo de uma cultura católica não estaria demonstrado. A única tradição cultural que existe no Brasil é a tradição do Romantismo francês do século XIX. O nosso catolicismo, na medida em que deixa de ser uma mera observância de ritos para se elevar ao plano de uma consciência cultural, se situa, como todas as outras tendências e ideias que formaram o espírito brasileiro, dentro dos quadros desse Romantismo. Um Gustavo Corção com o seu humor cáustico, voltairiano, não se situa menos dentro do Romantismo francês. Se no plano da sensibilidade o seu modelo é Chesterton, no plano das ideias o seu mestre é, incontestavelmente, Maritain. A impressionante semelhança que encontramos entre as atitudes espirituais de homens como Maritain, Léon Bloy, Bernanos, René Schwob e Chesterton de um lado e Jackson de Figueiredo, Alceu Amoroso Lima, Otávio de Faria e Gustavo Corção do outro, não é mero produto do acaso. Uma mesma atitude romântica de desafio à cultura contemporânea parece ser o traço comum a todos eles. No Brasil, essa atitude de desafio é menos visível. E a razão disso é óbvia: Maritain, Léon Bloy, Bernanos, Schwob e Chesterton, etc., autores ainda em vida ou recentemente desaparecidos, são naturalmente os modelos escolhidos pelos nossos católicos que os consideram e apresentam ao público brasileiro como os verdadeiros representantes da cultura da Europa contemporânea.Quanto ao ideal de uma cultura autêntica, não alienada, já discutimos o problema suficientemente em outros capítulos para que nos seja agora necessário acentuar ainda o fraco poder de persuasão que encerra. Digamos apenas que aqui, mais uma vez, temos diante de nós uma noção estreita, uma visão parcial do problema da cultura e, na verdade, uma noção bem mais estreita, uma visão bem mais parcial do que a formulação romântica. A ideia rousseauniana de um estado de alienação do homem com relação à natureza e a si próprio - ideia que indiscutivelmente está na base da concepção de uma cultura alienada - pressupõe, evidentemente, a noção romântica de que o natural é superior ao social [1], o espontâneo superior ao normativo, noção que por sua vez pressupõe a rebelião contra o princípio ético levada a efeito pelo Renascimento italiano. Mas enquanto o espírito do Renascimento italiano ou o do Romantismo representam uma atitude geral que acabou por se identificar com uma parte essencial da estrutura da consciência europeia, a noção de uma consciência alienada ou de uma cultura alienada constitui, ainda hoje, uma concepção paroquial que repugna à maior parte da consciência europeia.Precisamos nos decidir seriamente a considerar o problema da cultura europeia como o problema preliminar por excelência, a partir do qual possam ser encontradas as soluções para o problema da nossa cultura. É somente depois de tomarmos uma tal decisão que poderá a nossa situação espiritual se tornar objeto de uma investigação proveitosa.Hoje em dia nos vemos em presença de um sem número de tendências literárias, artísticas ou filosóficas, mas o fato de parecer faltar a todas elas um nervo íntimo, um caráter de necessidade, nos faz hesitar e dar à nossa adesão um sentido apenas provisório. É curioso observar como são frequentes entre os intelectuais e artistas brasileiros as conversões, sejam elas religiosas, literárias ou artísticas - é curioso notar como eles se tornam positivistas, evolucionistas, católicos, marxistas, abstracionistas, existencialistas ou adeptos do espírito científico sem que nenhum antecedente cultural, seja ele individual ou nacional, explique essa súbita mudança de orientação. Uma tal instabilidade cultural não parece constituir um sintoma positivo, não parece se um indício do dinamismo espiritual capaz de assumir sempre novas formas, de levantar sempre novos problemas; parece, ao contrário, trair a perplexidade de uma alma que se sente perdida, que procura um porto, um abrigo que lhe seja favorável e que na ânsia de escapar à imensidão desértica vai, muitas vezes, se refugiar em terras inimigas.
(....)

E aqui chegamos a um ponto importante e que convém elaborar do modo mais completo que nos for possível. Quando o senhor Amoroso Lima denuncia o que ele chama de culturalismo - a tendência a transformar a cultura num fim em si mesmo, quando deveria resignar-se à função mais modesta, à função de simples meio, de simples instrumento - o que ele no fundo está atacando é o estetismo, é a concepção de uma cultura meramente formal, meramente ornamental. É curioso observar como um homem bem informado como ele tenha podido aceitar a ideia de que o princípio ético só é suscetível de apreensão fora da área da cultura, só é capaz de afirmar sua presença nos domínios da religião. A oposição que estabelece entre um plano religioso e um plano cultural é desnecessária e perigosa; desnecessária porque equivale, na verdade, à oposição entre o princípio ético e o princípio estético no próprio plano da cultura; perigosa porque tende a desprestigiar a noção da cultura que urgiria, ao contrário, enaltecer, pois representa um dos imperativos a que deveremos obedecer se quisermos um dia ser um grande povo.Nada mostra melhor a tirania que exerce sobre nós o espírito estetizante do romantismo do que este esforço de natureza ética no sentido de uma libertação dos males da cultura. Não tivesse o senhor Amoroso Lima identificado de uma maneira tão completa cultura e estetismo, e a ideia de uma cultura ética se teria apresentado ao seu espírito como uma possibilidade que seria interessante examinar. A vantagem que um ideal ético não estreitamente ligado a uma concepção teológica particular manifesta com relação a um ideal ético-religioso, tal como o do catolicismo, consiste justamente nessa sua possibilidade de se transformar em cultura. A cultura secular é, inegavelmente, em nossa época, a única autoridade espiritual capaz de exercer sobre a humanidade uma influência decisiva. A Igreja de Roma continua hoje sua existência como se a Revolta de Lutero não tivesse tido consequências desastrosas para a sua autoridade sobre os homens; mas na realidade, se quisermos examinar com objetividade a situação espiritual do mundo contemporâneo, deveremos reconhecer que o ideal católico poucas possibilidades tem de voltar à sua antiga posição de prestígio. Uma tal constatação será naturalmente alarmante para o espírito ético que tenha compreendido os efeitos perniciosos da propagação da cultura do Renascimento italiano, que tenha percebido a ação insidiosa do estetismo sobre todos os aspectos da realidade espiritual do homem; mas ela deverá ter um sentido ainda mais grave para os católicos capazes de um momento de dúvida e de incerteza pois eles acreditam encontrar na Igreja de Roma a salvação do mundo e estar a sorte do ideal ético indissoluvelmente ligada à sorte do ideal católico.Felizmente para nós há grandes probabilidades de que neste particular os católicos se enganem. Digo felizmente porque se a identificação do ideal ético e do ideal católico exprimisse uma verdade certa, o mundo estaria definitivamente perdido. A Igreja de Roma não parece ser capaz de salvar o mundo; a sorte do ideal ético capaz de regenerar o espírito humano não parece estar indissoluvelmente ligada à sorte do ideal católico. Na nossa análise das ideias que contribuíram para a formação do espírito europeu, vimos destacar-se uma tradição extremamente importante, uma tradição donde se originou a possibilidade de uma cultura ética. Negar valor a essa tradição, como o fazem os católicos, atribuir-lhe os mesmo vícios que encontramos na tradição renascentista (como se a atitude individualista fosse essencialmente uma atitude viciosa) é condenar-se de antemão a uma situação de alheamento, de não participação nos problemas espirituais da Europa contemporânea. E, por maiores que sejam os esforços feitos pela Igreja de Roma no sentido de se modernizar, de acompanhar os progressos sociais e intelectuais do mundo contemporâneo, o seu espírito está irremediavelmente ligado a fórmulas do passado e não poderá, por exemplo, de modo algum, aceitar o fato da autoridade espiritual de uma cultura secular, fato sem o qual a história de nossos dias se torna incompreensível.É este desinteresse pela possibilidade de uma cultura ética que faz o senhor Amoroso Lima pronunciar-se de modo tão definitivo sobre os “males da cultura”. O fenômeno que tem em mente é o da cultura estética do Renascimento italiano, única forma de cultura aliás que conhecemos no Brasil. É curioso observar como uma verdade tão evidente quanto a que concerne a nossa exclusiva dependência de ideias renascentistas e que comporta naturalmente consequências de tão grande importância para o estudo da personalidade do homem brasileiro - é curioso observar como essa verdade tem sido sistematicamente ignorada pelos nossos estetas, sociólogos e filósofos.Já tem sido assinalado pelos nossos estudiosos que o Brasil é um fruto do Renascimento. Mas a esse fato que necessita ser aprofundado, tem-se atribuído um alcance extremamente limitado e que está longe de corresponder à sua verdadeira significação. Não é somente na sua realidade física, econômica, social e política que o Brasil se explica pelas suas origens renascentistas. Espiritualmente também o Brasil se revela como um autêntico produto do Renascimento. Na nossa maneira de julgar aquele movimento, nos deixamos influenciar por ideias portuguesas e manifestamos a tendência a ver na epopeia dos descobrimentos marítimos a sua característica mais essencial. Mas antes de ter consequências no plano fisiográfico, econômico, social e político, o Renascimento italiano constituiu um fenômeno espiritual da mais alta importância e que marcou de maneira indelével a alma do homem ocidental. Não foi o fato da descoberta da América que determinou o aparecimento das características renascentistas nessa alma, foi ao contrário, a existência de tais características que criou as condições em virtude das quais os empreendimentos marítimos e aquela descoberta se tornaram possíveis.Estamos aqui diante de uma constatação das mais elementares mas na verdade, seja por imitação dos portugueses que associam irresistivelmente a ideia do Renascimento à ideia dos Empreendimentos marítimos; seja pelo desejo de uma participação maior do que a manifestada por uma simples relação indireta com o grande movimento intelectual ocorrido na Europa: seja, enfim, por simples falta de clareza nas nossas ideias, procuramos sempre compreender o nosso destino como ligado imediatamente àquele grande triunfo da cultura italiana. Mas basta comparar os desenvolvimentos subsequentes à Descoberta em três pontos diferentes do continente americano, na América Latina, nos Estados Unidos e no Canadá, para compreender que o fato dos Empreendimentos marítimos haverem sido o resultado do clima espiritual criado pelo Renascimento italiano, não constitui motivação suficiente para assegurar às terras descobertas em virtude desses Empreendimentos um destino inelutavelmente renascentista. Com efeito, nos Estados Unidos o espírito da Reforma se faz sentir, hoje em dia, de modo incomparavelmente mais forte do que o espírito do Renascimento italiano, e no Canadá a influência dessas duas tendências parece se contrabalançar. Se no Brasil podemos afirmar que, ainda hoje as ideias renascentistas exercem uma influência preponderante, a razão disso deverá ser extraída não dos fatos acima indicados, mas de alguma outra circunstância que não foi suficientemente elucidada.O clima espiritual dos Estados Unidos de hoje se explica em parte pelo puritanismo dos ingleses que, procurando escapar à intolerância religiosa, embarcaram rumo ao Novo Mundo. Poderíamos da mesma maneira explicar o clima espiritual do Brasil de nossos dias pelo espírito renascentista dos portugueses que aportaram às nossas terras com a intenção de nelas se fixar? Colocado desse modo o problema, se evidencia logo a artificialidade da identificação a que já nos referimos, do ideal renascentista com a grande aventura marítima dos portugueses. Na realidade, a ideia de um renascimento português é um eufemismo cuidadosamente cultivado por historiadores da arte e da literatura portuguesas que veem no estilo manuelino uma expressão de grande originalidade arquitetônica e em Camões uma grande figura universal. Mas, justamente a qualidade daquele estilo e do humanismo que encontramos em Camões, de sentido absolutamente idêntico, dando ênfase não ao fenômeno individual mas ao fenômeno coletivo, deveria nos alertar para o fato de que não houve em Portugal um renascimento no sentido em que o entendeu a cultura italiana do quattrocento. O culto da virtu individual que fez do homem formado naquela cultura um microcosmo, um todo autônomo e dotado de uma exagerada consciência de si mesmo, esse culto nenhum papel exerceu na elaboração do estilo manuelino ou na vida de Camões, cuja personalidade manifesta claramente a tendência a reverenciar valores mais altos que ele próprio, como a Pátria e a Religião. Assim, a imagem que os criadores daquele estilo ou o gênio de Camões nos legam não é a de um homem possuidor de altas qualidades, consciente de seus dons e do grande destino que o espera - que é a essência do humanismo italiano - mas a de um povo, a de uma coletividade empenhada numa tarefa menos estética do que moral pois os Empreendimentos marítimos afinal de contas não se justificam por si mesmos mas unicamente porque levam a terras distantes a religião do Cristo, e nada mais são do que um outro aspecto da vocação que sente Portugal de se constituir como o defensor da Cristandade, numa Europa dividida e, por isso, incapaz de se defender contra as ameaças renovadas do Islã. Por isso a característica fundamental do Renascimento italiano - a autonomização do princípio estético - não se verifica nas obras máximas do Renascimento português, no Mosteiro dos Jerônimos ou n’Os Lusíadas. Uma tal constatação é mais do que suficiente para estabelecer o fato de que Portugal jamais elaborou de uma maneira precisa o ideal renascentista e que, por conseguinte, o Brasil jamais poderia ter herdado esse ideal dos portugueses. Basta aliás refletir um momento sobre as influências espirituais que teriam podido se exercer sobre a nossa vida colonial para compreender que a noção de um Brasil herdeiro do ideal renascentista português pertence ao domínio da mais completa utopia. As ideias de cultura que desde cedo, que já no século XVI aportaram às nossas terras, foram naturalmente as ideias da Contrarreforma. Manuel da Nóbrega chegou ao Brasil antes mesmo de ter sido publicado Os Lusíadas e durante dois séculos, até a expulsão da Companhia de Jesus em 1759, nosso país constituiu um campo de experiência extraordinária para a projeção da vocação missionária e educativa dos jesuítas. (...).

 

VOLTA