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José Crisóstomo de Souza
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A CRÍTICA DE HEGEL AO FORMALISMO MORAL KANTIANO: APONTAMENTOS
José Crisóstomo de Souza [*

Resumo:
O trabalho se apóia, em parte, em considerações de W. H. Walsh, André Kaan e Roland Maspétiol sobre a crítica de Hegel ao formalismo moral kantiano. E busca sua fundamentação e verificação na leitura das principais obras de Kant e de Hegel pertinentes ao tema: de Hegel, a Filosofia do direito, o Direito natural, a Fenomenologia do espírito e a Enciclopédia das ciências filosóficas; de Kant, a Fundamentação da metafísica dos costumes e a Crítica da razão prática. Hegel aceita, de Kant, a noção de que o dever é racional e é a essência da vontade. Mas denuncia que o formalismo e o subjetivismo do ponto de vista moral kantiano inviabiliza o ponto de vista da “vida ética” (Sittlichkeit) e qualquer doutrina positiva dos deveres. Pior ainda: em última análise, abre espaço para o arbítrio e o mal. É possível que parte dessa crítica, entretanto, se aplique mais a uma deformação da concepção kantiana pelo subjetivismo romântico que ao próprio Kant.

Palavras-chave: Hegel ; Kant ; moral ; dever ; formalismo ; subjetivismo.

Abstract:
This paper is partially base on the presentations of W. H. Walsh, André Kaan e Roland Maspétiol of Hegel’s critique of Kant’s moral formalism. And looks for support and verification in the main texts of Kant and Hegel concerned with the subject: Hegel’s Philosophy of right, Natural law, Phenomenology of spirit, and Encyclopedia; and Kant’s Groundwork for the metaphysics of morals, and Critique of practical reason. Hegel accepts Kant’s notion of duty as that which is rational and the will’s essence. However, he denounces the formalism and subjectivism of Kant’s moral viewpoint, which precludes both the viewpoint of ethical life (Sittlichkeit) and any positive doctrine of duties. Worse yet: it ultimately gives room for arbitrariness and evil. Nonetheless, it is possible that part of that critique applies mostly to a subjective romantic degradation of Kant’s doctrine, than to Kant himself.

Keywords: Hegel ; Kant ; morals ; duty ; formalism ; subjectivism.

1. Apresentação

Chamamos este trabalho de “apontamentos” pois é disso que se trata: de anotações, e em sentido particularmente estrito. Parte dele consiste apenas numa compilação (e tradução), às vezes com pouca ou nenhuma alteração, de contribuições de W. H. WALSH (1969), André KAAN (1982) e Roland MASPÉTIOL (1983), sobre o tema. Trata-se de boas contribuições, de acesso relativamente difícil, sem tradução para o português. Dividimos o texto em 6 partes: Walsh é aproveitado nas partes 2 e 4, André Kaan na parte 3, e Maspétiol na parte 5. Ao mesmo tempo, na fundamentação, procuramos avançar nos textos primários, indo diretamente às obras de Hegel e de Kant e reproduzindo largos trechos das mesmas (de boas edições – em francês, inglês, espanhol e português). Com tal caráter, estes apontamentos foram originalmente destinados ao uso em sala de aula, em cursos de ética. Entretanto, além de se revelarem muito úteis no meu trabalho docente, vieram a ser apreciados e utilizados por vários colegas, motivando agora sua publicação. O que se justifica ainda, entre outras coisas, pelo fato de que a crítica hegeliana ao formalismo moral kantiano é substancialmente retomada, não só por Marx e pelos marxistas, como também nos argumentos “anti-idealistas” de várias expressões filosóficas contemporâneas – em alguma medida, assim, hegelianas e anti-kantianas.
O trabalho tem como eixo o § 135 (mais especificamente a nota explicativa que Hegel lhe acrescenta) da Filosofia do direito. Entretanto, como indicam as citações, inclui a consideração de outros textos de Hegel sobre o assunto, tanto na mesma obra como no Direito natural e na Fenomenologia do espírito. No caso dessa última, o trabalho apenas percorre, resumidamente, os dois primeiros itens da seção sobre a moralidade. Além disso, toma em consideração alguns trechos pertinentes da Enciclopédia das ciências filosóficas. Quanto à obra de Kant, consideramos principalmente a Fundamentação da metafísica dos costumes (primeira e segunda seções), mas também a Crítica da razão prática (primeiro capítulo). As edições utilizadas, desses textos primários, foram aquelas de mais fácil acesso por ocasião da preparação destes apontamentos.
Algumas observações de Hegel (ver parte 6 deste trabalho) dão conta do tom geral da sua apreciação sobre a filosofia moral kantiana. De um lado, expressam o reconhecimento do mérito kantiano de estabelecer o dever como essência da vontade e como racional. De outro, empenham-se na denúncia do erro (sobre o qual Hegel se estende mais) de inviabilizar o ponto de vista da eticidade ou “vida ética” (Sittlichkeit): o ponto de vista kantiano não conduz a uma doutrina positiva dos deveres. Segundo Hegel, é uma falha mais grave do que pode parecer de início: acaba propiciando que se justifique moralmente qualquer linha de comportamento.
Uma parte da crítica hegeliana atinge conjuntamente tanto Kant como alguns filósofos românticos da época, que representam, para Hegel, uma degradação da filosofia kantiana. Segundo alguns comentadores, atinge mais esses românticos que Kant propriamente dito. É o caso da crítica ao subjetivismo moral (FD § 140, comentado na parte 6 deste trabalho), o qual se contenta em desejar o bem abstrato, formal. Isso, para Hegel, é mais afim ao mal que ao bem, pois atribui à vontade arbitrária do sujeito o direito de dar conteúdo àquela forma. A maior parte da argumentação hegeliana que expomos, porém, trata mesmo, diretamente, da moral kantiana e particularmente do formalismo que caracteriza a prova da universalidade – a universalização da máxima, sem contradição (partes 2 e 3).
A prova da universalidade, cuja discussão constitui o centro dos apontamentos, aparece primeiramente como negativa, no sentido de que não diz ao sujeito moral o que ele deve concretamente fazer. Em segundo lugar, ela é criticada porque justificaria em última análise qualquer tipo de conduta. Esse é o argumento da nota do § 135 da Filosofia do direito, que se encontra também, de modo mais desenvolvido, no capítulo II do Direito natural. A legislação da razão pura prática é tida, então, como supérflua; só vale quando se tem o princípio material pressuposto. Por si, consiste na posição de uma determinação (que é conteúdo da máxima) como conceito ou universal. Mas, Hegel mostra, qualquer uma de duas determinações opostas pode ser assim universalizada sem contradição. A legislação da razão pura prática é em realidade uma tautologia, que, e isso é o mais grave, acaba por conferir o caráter absoluto da forma a um conteúdo na verdade condicionado – o que é o próprio princípio da imoralidade. Hegel vai sugerir ainda, ao reverso, que certas máximas morais e racionais, como ajudar os pobres, teriam que ser condenadas como imorais, a prevalecer o critério kantiano.
Depois dessa parte, apresentamos (parte 5) uma consideração resumida da Moralidade (a segunda parte da Filosofia do direito), como o segundo estágio da Idéia da Vontade Livre, com o qual o ponto de vista kantiano coincide em larga medida. A moralidade é uma noção unilateral na qual o espírito não se pode deter. E a moral kantiana é justamente uma fixação nesse momento unilateral, num tratamento puramente formal do problema moral. Preferimos, em vez de cortar o resumo para utilizá-lo apenas como introdução, deixá-lo integral, para dar uma idéia mais completa do que é essa esfera (“kantiana”) da moralidade, na Filosofia do direito. Também, ao final (item 4), apresentamos resumidamente o que seriam as inconsistências principais do ponto de vista moral, como ele aparece na Fenomenologia do espírito (seção C), naquilo que, segundo nos pareceu, mais acrescenta à argumentação já formulada contra Kant.

2. A CRÍTICA AO FORMALISMO KANTIANO NA FILOSOFIA DO DIREITO

Tanto Hegel como Kant enfatizam o caráter objetivo da lei moral, que se impõe aos agentes independentemente de seus desejos pessoais. Ambos argumentam que o conteúdo da lei está determinado por princípios racionais e pode ser, conseqüentemente, apreendido pela razão. Essa concordância aparente não deve, entretanto, ocultar suas diferenças substanciais acerca do espaço e da natureza da razão como faculdade moral.
De acordo com Kant, a fórmula para decidir se uma determinada ação pretendida é moralmente legítima é perguntar a si mesmo se a máxima daquela ação poderia servir como lei universal. Decidir-se por uma ação cuja máxima não pode ser universalizada desse modo, e ao mesmo tempo proclamá-la moralmente permissível, é cometer uma inconsistência lógica, já que, do ponto de vista moral, o que é válido para um homem deve ser válido para todos os demais em circunstâncias semelhantes. O que Kant entende por máxima é “o princípio subjetivo do querer” (FMC, p. 209), ou “o princípio subjetivo da ação” (FMC, p. 223n). A máxima de um agente corresponde à descrição geral que se pode dar do ato, quando se o olha do ponto de vista do agente.
No caso do homem que se propõe suicidar-se, por exemplo, Kant encontra a seguinte máxima para o suicida: “Por amor de mim mesmo, admito como princípio que, se a vida, prolongando-se, me ameaça mais com desgraças que me promete alegrias, devo encurtá-la.” (FMC, p. 224) A pergunta então é: poderia esse princípio do amor de si mesmo tornar-se uma lei universal da natureza? Não, diz Kant; vê-se que

Uma natureza, cuja lei fosse destruir a vida em virtude do mesmo sentimento cujo objetivo é suscitar a sua conservação, se contradiria a si mesma e, portanto, não existiria como natureza. Por conseguinte, aquela máxima não pode de maneira alguma dar-se como lei universal da natureza e, por isso, é absolutamente contrária ao princípio supremo do dever. (Ibidem)

A prova kantiana da aceitabilidade moral de uma máxima é que ela possa ser universalizada sem contradição. Em uma série de casos, diz Kant, só temos que imaginar que a máxima tenha aplicação geral para ver que ela implica contradição. Em outros casos, podemos imaginar a máxima tendo aplicação geral, mas não podemos desejar, consistentemente, que a tenha (FMC, p. 225-6). Uma máxima que não pode reger as ações de todos os agentes que se encontram nas mesmas circunstâncias gerais, ou que não se pode desejar, consistentemente, que tenha aplicação geral, é desqualificada por ser incapaz de servir como lei moral, por não poder ter a universalidade que constitui uma característica formal da lei.
Pelo que podemos perceber, a prova da universalidade, interpretada desse modo, é puramente negativa. Adequadamente aplicada, poderá mostrar o que não se deve fazer, mas não dirá o que podemos fazer positivamente. Quando Hegel se queixa de que o ponto de vista kantiano não torna possível “qualquer doutrina imanente de deveres” (FD § 135), parece ter em vista essa questão. Ele afirma que

Fixar-se na posição puramente moral (como faria Kant), sem fazer a transição para a concepção da vida ética, é reduzir esse ganho (a ênfase kantiana na infinita autonomia da vontade) a um formalismo vazio, e a ciência da moral à pregação do dever pelo dever ... Se a definição do dever fica sendo a ausência de contradição, a correspondência formal consigo mesmo (o que não é senão a indeterminidade abstrata estabilizada), não é possível qualquer transição para a especificação de deveres particulares. Tampouco, se um conteúdo particular para a ação entrar em consideração, não há qualquer critério naquele princípio para decidir se se trata ou não de um dever” (FD § 135).

Na verdade, Hegel vai mais longe na sua crítica. A prova kantiana não seria eficaz nem sequer enquanto considerada como puramente negativa. Por si mesma, não pode descartar nada, e acaba sendo um meio para justificar qualquer conduta: “Por esse meio”, afirma Hegel, “qualquer linha de conduta errada ou imoral pode ser justificada” (§ 135). Vejamos como ele esclarece o assunto, referindo-se à máxima universal de Kant e ao princípio da “ausência de contradição” nela contido:

A ausência de propriedade contém em si tão pouca contradição quanto a não existência dessa ou daquela nação, família, etc., ou a morte de toda a raça humana. Mas já foi estabelecido, em outras bases, que a propriedade e a vida humana devem existir e ser respeitadas, pois é de fato uma contradição cometer roubo ou assassinato. Uma contradição deve ser contradição de uma coisa, e de algum conteúdo pressuposto desde o começo como um princípio firme. É apenas a um princípio desse tipo, portanto, que uma ação pode ser relacionada em termos de correspondência ou de contradição.” (§ 135)

Para que esse ponto fique mais claro, concentremo-nos nos exemplos do próprio Kant. Ele sustenta que

A máxima ‘quando julgo estar em apuros de dinheiro, vou pedi-lo emprestado e prometo pagá-lo, embora saiba que tal nunca sucederá’ não poderia nunca valer como lei universal da natureza e concordar consigo mesma. Pelo contrário, ela se contradiria necessariamente. Pois a universalidade de uma lei que permitisse, a cada homem, que se julgasse em apuros, prometer o que lhe viesse à idéia com intenção de o não cumprir, tornaria impossível a própria promessa e a finalidade que com ela pudesse ter em vista; ninguém acreditaria em qualquer coisa que lhe prometessem e rir-se-ia apenas de tais declarações como de vãos enganos.” (FMC, p. 224-5)

Kant está certo em dizer que, nessas circunstâncias, toda a instituição de fazer e aceitar promessas desapareceria. Mas, alertados por Hegel, poderíamos perguntar: e daí? Daí não parece seguir-se necessariamente que um mundo sem promessas seja necessariamente um mundo moralmente degradado. O que Kant demonstra parece ser apenas que não se pode aceitar a instituição de cumprir promessas e repudiar ao mesmo tempo algo que ela necessariamente implica, v. g. que uma pessoa que fez uma promessa tente seriamente cumpri-la. Mas Hegel parece ter razão ao argumentar que há um pressuposto na argumentação kantiana: que é correto cumprir as promessas, ou que devem existir promessas. Conclusão que deveria ser supostamente justificada pela prova da universalidade. É o que Hegel aponta no adendo ao § 135 da Filosofia do direito, quando diz:

A proposição: ‘age como se a máxima de tua ação pudesse ser fixada como um princípio universal’ seria admirável se já tivéssemos princípios de conduta determinados. Dado o conteúdo, então certamente a aplicação do princípio seria um assunto simples. No caso de Kant, entretanto, o próprio princípio não está disponível, e seu critério de não contradição não produz coisa alguma, pois onde nada há, tampouco pode haver contradição. (FD, p. 254)

O cabimento das críticas de Hegel aparece mais claramente no outro tipo de caso que Kant considera, aquele em que é concebível a universalização máxima, mas ela não é desejável, isto é, não podemos desejar que seja mantida como lei universal. Kant oferece dois exemplos para o caso: um relativo ao cultivo dos talentos pessoais, outro referido à ajuda aos que estão em desgraça (FMC, p. 225). O primeiro, um tanto curioso, trata de uma pessoa que escolhe entre uma vida de esforços, necessária para o desenvolvimento de seus talentos, e uma vida de gozo, que é igualmente possível, “ao modo dos habitantes dos mares do Sul, que vivem na ociosidade, no prazer e na propagação da espécie”.
Quanto ao segundo exemplo, Kant admite que poderia haver um mundo em que cada um se ocupasse apenas de si mesmo e não fizesse nada para prestar ajuda àqueles que a necessitam. Acrescenta, contudo, que “não é possível querer que tal princípio valha por toda parte como lei natural, pois uma vontade que decidisse por tal coisa pôr-se-ia em contradição consigo mesma.” (FMC, p. 225) Como seria exatamente isso? Podemos imaginar que Kant supõe que o homem que repudia a obrigação de ajudar os outros, consideraria, contudo, em outra situação, que os demais deveriam ajudá-lo. Sua vontade, então, estaria em desacordo consigo mesma, por sustentar, potencial ou implicitamente, um princípio que, no momento presente, está negando ativamente. Mas isso não mostraria que negar-se a ajudar os que precisam é algo de necessariamente imoral. O homem que simultaneamente nega ajuda aos outros e a solicita para si está, certamente, envolvido em inconsistência ou contradição. Mas poderia sair dela, tanto reconhecendo que deve ajudar o próximo, como desistindo de sustentar que os outros devam ajudá-lo. A falha da argumentação kantiana estaria em pressupor que o agente tem apenas a primeira possibilidade. Isso porque, como viu Hegel, lhe parecia evidente desde o início que os seres humanos devem ajudar os outros nas circunstâncias descritas. Dessa forma, a prova da universalidade ou da ausência de contradições teria valor nas circunstâncias em que o agente moral já estivesse firmemente comprometido como um princípio moral. Mas, então, não seria ela supérflua? Vejamos como Hegel desenvolve essa argumentação no seu Sobre as espécies de tratamento científico sobre o direito natural.

3. A CRÍTICA AO FORMALISMO MORAL NO SOBRE O TRATAMENTO CIENTÍFICO DO DIREITO NATURAL

O Direito natural, extenso artigo publicado inicialmente no Jornal crítico da filosofia, dos anos 1802-3, período em que Hegel está associado a Schelling, trata dos métodos ou tratamentos científicos do direito natural, especificamente do empirismo (de Hobbes, Locke e outros) e do formalismo que caracteriza a filosofia crítica kantiana, ambos contrapostos à “intuição não-empírica” do povo, como modos inautênticos de tratar o direito. O objetivo do artigo, pelo que se lê nas primeiras páginas da introdução, é mostrar que a filosofia prática “formal” kantiana não fez o progresso decisivo (com relação ao empirismo) que ela alardeia . O roteiro de Hegel no Direito natural é primeiro mostrar a solidariedade íntima de empirismo e formalismo, para em seguida descrever como a intuição (não-empirista) do povo vai além deles.
A argumentação de Hegel no Direito natural, a respeito especificamente de Kant, procura mostrar que a universalidade da lei é a do discurso (a que resulta da obrigação de não variar os termos depois de definidos). E se trata de uma universalidade formal, no sentido de que não permite uma escolha entre as diferentes determinações que se oferecem à ação e por conseguinte autoriza a justificação de qualquer das opções. Vejamos.
Para Kant, como já foi mostrado, é lei fundamental da razão pura prática que a máxima do querer possa valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal. Esta lei exprime que uma certa determinação, que constitui o conteúdo da máxima de uma vontade particular, é posta como conceito, como universal. Ora, diz Hegel, qualquer determinação é suscetível de ser traduzida na forma de conceito; donde não há absolutamente nada que não possa dessa maneira ser transformado em lei moral (DN, p. 92).
Kant pretende que “o entendimento mais ordinário pode, sem prévia instrução, distinguir que forma está ou não dentro da máxima capaz de se adaptar a uma legislação universal” (CRP, p. 26). Para mostrar como, toma o exemplo da não-devolução de um depósito ao seu legítimo dono. A máxima para esse conteúdo diria que “cada uma está autorizado a não devolver um depósito quando ninguém puder provar que ele lhe foi confiado”. Pode tal máxima valer como lei prática universal? O “entendimento mais ordinário” verificaria facilmente que não: um tal princípio se destruiria a si mesmo como lei, pois teria como resultado eliminar qualquer depósito. Mas – Hegel retruca – que contradição há em que não exista nenhum depósito?
Tal inexistência pode contradizer outras determinações necessárias. Mas, para o próprio Kant, não se tem o direito de invocar outros fins e outros motivos materiais; é apenas a forma imediata do conceito que deve decidir em favor da primeira ou da segunda tese. Ora, prossegue Hegel, com relação à forma, cada uma das duas determinações que se opõem é equivalente à outra; cada uma pode ser concebida e enunciada como lei.

O único que importa é algo que está fora do âmbito dessa legislação prática da razão pura: decidir qual das determinações opostas deve ser admitida. Unicamente isso deve estar já assentado e uma das duas determinações contraditórias deve ter sido pressuposta: a razão pura o exige para poder em seguida produzir sua legislação, já então supérflua.” (DN, p. 93)

Hegel toma o problema em termos do caso da existência ou não da propriedade: “Se pusermos a determinação da propriedade em geral, podemos fabricar o seguinte enunciado tautológico: a propriedade é a propriedade, e nada mais, e essa produção tautológica é a legislação da razão prática”. De modo um pouco mais claro: “A propriedade, se existe propriedade, deve ser necessariamente propriedade”. Mas, se se parte da determinação oposta, negando a propriedade, a legislação desta mesma razão prática oferece a tautologia: a não-propriedade é a não-propriedade. Isto é, se não há propriedade, aquilo que pretende ser propriedade deve ser suprimido. Ora, o que interessa é mostrar que deve existir propriedade (DN, p. 93). Em resumo, parece-nos que Hegel quer dizer que a lei de restituir um depósito só se sustenta como um dever se se supõe a existência da propriedade, ou, talvez melhor, se se supõe que ela deva existir.
Aqui, no Direito natural, com também na nota do § 135 da Filosofia do direito, Hegel não se satisfaz, entretanto, em mostrar que a legislação da razão pura prática é algo de supérfluo. Mais que isso, “é preciso reconhecer nela o princípio da imoralidade. Pois, quando uma determinação particular é promovida à dignidade do em si, de um absoluto, de uma lei, de um dever, já nos encontramos no terreno da imoralidade.” (DN, p. 93-4)
Na opinião de Hegel é fácil desmascarar a ilegitimidade da transformação do condicionado e do irreal em incondicionado e absoluto. Vejamos. O caráter absoluto da forma de uma proposição (a forma de uma tautologia, a identidade do sujeito e do predicado, que é o verdadeiro produto da legislação da razão prática) é transferido ao conteúdo, que é por natureza algo de condicionado. Esse condicionado é, contrariamente à sua essência, elevado ao absoluto graças a essa mistura da forma absoluta com a matéria condicionada, que permite substituir sub-repticiamente, ao irreal e ao condicional que vem do conteúdo, o absoluto da forma. “Nessa inversão e nesse escamoteamento se encontra o miolo dessa legislação da razão pura” (DN, p. 94).
Voltemos ao caso do depósito/propriedade. Para Hegel, já vimos, a lei de restituir um depósito não se impõe se não existe tal instituição, ou, mais genericamente, se não existe a propriedade. A determinação da propriedade, a posição dessa determinação, é suposta na lei kantiana sobre o depósito. O que implica, em última análise, uma tautologia. Agora, a proposição “a propriedade é a propriedade”, diz Hegel, significa tão somente que a identidade que esse enunciado exprime na sua forma é absoluta. Mas o que Kant faz é retirar desta significação esta outra: “a matéria da prescrição, a propriedade, é absoluta”.
Por esse procedimento, qualquer determinação pode ser batizada como dever incondicional. “O arbítrio tem a escolha entre as determinações opostas, e será apenas por inabilidade que não se encontrará, para qualquer ação, um princípio que não terá mais apenas, como nos jesuítas, a forma da probabilidade, mas a do direito e do dever”. Ao final das contas, o formalismo moral não ultrapassaria a técnica moral dos jesuítas e os princípios da doutrina do bem-estar (DN, p. 95, FD §140n, c).
Hegel observa ainda que:

A tradução da determinação [a instituição do empréstimo, por exemplo] no conceito (como algo universal e necessário) é compreendida como algo de formal, ou, ainda, [como implicando] que a determinação deve subsistir. Nesse caso, matéria e forma se contradizem; aquela é indeterminada, esta é infinita. Mas, se o conteúdo fosse realmente igualado à forma, a determinação igualada à unidade, a legislação prática não teria lugar. Dessa forma, a propriedade mesma é imediatamente oposta à universalidade. Se ela lhe é igualada, ela é suprimida.

Essa negação da determinação, ao ser traduzida ao infinito e universal, tem como resultado embaraçar a legislação prática (DN, p. 95-6).
Para compreender melhor esse argumento de Hegel, tenhamos em vista o exemplo da prescrição de ajudar os pobres. Trata-se de uma determinação (a instituição de ajudar os pobres) da espécie que prescreve ela mesma a abolição de uma determinação (a pobreza). O fato de elevar ao universal essa abolição destrói igualmente a determinação a abolir (a pobreza) e destrói a abolição mesma (a ajuda).

Dessa maneira, desde quando uma máxima se refira a uma determinação que se destrói quando nós pensamos a máxima universalmente, ela não é capaz de se tornar princípio de uma legislação universal. É, portanto, imoral. (...) Em outros termos, quando uma máxima cujo conteúdo prescreve a abolição de uma determinação é posta como conceito, ela se contradiz a si mesma. Se a determinação é pensada como suprimida, então o ato de abolir desaparece. Se a determinação deve subsistir, então renunciamos a pôr a abolição que foi posta na máxima. Quer a determinação subsista ou não, em nenhum caso a sua abolição é possível. (DN, p. 96)

Hegel, então, conclui: “Dessa maneira, uma máxima que é imoral em princípio, porque se contradiz, é ao mesmo tempo absolutamente racional e absolutamente moral enquanto prescreve a abolição de uma determinação” (Ibidem). O preenchimento da máxima tornaria ela mesma sem sentido.
Dito novamente, de uma maneira mais clara, ainda por Hegel:

A prescrição determinada de ajudar os pobres implica a abolição desta determinação que é a pobreza. A máxima cujo conteúdo é esta prescrição não resistirá à prova de ser elevada ao nível de princípio de legislação universal e se revelará falsa. Ela se destrói a si mesma. Pois, se pensamos a ajuda aos pobres como universal, ou bem não há mais pobres, ou bem não há mais que pobres e não há mais ninguém para ajudar e, nos dois casos, a ajuda desaparece. Assim, a máxima pensada com universal se suprime. Se a determinação que condiciona a obra de abolição, isto é, a pobreza, devesse subsistir, conservaríamos a possibilidade de ajuda, mas como possibilidade, e não como realidade da maneira que a máxima prescreve. Se a pobreza deve subsistir para que possa ser cumprido o dever de ajudar os pobres, essa manutenção da pobreza se opõe imediatamente à realização do dever. (DN, p. 96)

Aqui, como na Fenomenologia, o ponto de vista da moralidade revela sua inconsistência e se contradiz a si mesmo .

4. A CRÍTICA DA CONCEPÇÃO MORAL NA FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO

Hegel conclui a nota do § 135, na qual expõe as limitações do ponto de vista kantiano da moralidade, remetendo à Fenomenologia do espírito: “As outras antinomias e configurações desse infindável dever-ser, no qual o modo de pensar exclusivamente moral – pensar em termos de relação – simplesmente vagueia para frente e para trás, sem ser capaz de resolvê-las e de ir além do dever ser, eu as desenvolvi na minha Fenomenologia do espírito”. Também no final da nota do § 140 (ver parte 6), Hegel lembra que o que está aí dito “pode ser comparado com toda a seção C (‘Consciência’) na Fenomenologia.” Certamente ele está se referindo a “O espírito certo de si mesmo; Moralidade”, parte que compreende a “Concepção moral do mundo”, o “Fingimento” e a “Boa consciência”.
A crítica hegeliana aí destaca dois pontos na concepção moral do mundo, que a tornariam insustentável. O primeiro se refere à relação entre o agente moral e a realidade externa (FE, p. 352 et seq.). O moralista (e parece que Hegel está pensando o tempo todo no moralista kantiano) faz uma distinção radical entre ele mesmo, considerado como puro ser moral, e a natureza, como o cenário em que age. A natureza está governada por um conjunto de normas, e o agente moral por outro completamente distinto. A natureza não se ocupa da consciência moral e a consciência moral não se ocupa da natureza. Acontece, porém, que o agente moral deve agir, o que significa que deve realizar objetivos no mundo. Com o que resulta que ele não se pode dissociar totalmente do mundo, mas, ao contrário, deve, em alguma medida, subordiná-lo a si mesmo. A possibilidade de uma ação eficaz, diz Hegel, radica em algo mais que a pureza interna do coração ou o correto direcionamento da vontade. Quanto a Kant, este tem a necessidade de postular Deus como garantia de que as intenções mais puras não serão aniquiladas por uma natureza estranha.
Outro aspecto, sob o qual Hegel considera o ponto de vista moral como insustentável, refere-se à constituição do próprio agente moral (FE, p. 354 et seq.). A natureza não existe apenas fora do homem, mas também dentro dele. Nas palavras do próprio Hegel:

A natureza não é apenas este mundo externo totalmente livre no qual a consciência teria que realizar seu fim como em um puro objeto. Em si mesma, a consciência é essencialmente uma consciência para a qual este outro é uma realidade separada, isto é, ela mesma é algo contingente e natural. Esta natureza, que é para a consciência a sua, é a sensibilidade sensível, a qual tem, na figura do dever, como impulsos e inclinações, a própria essencialidade determinada para si. Tem fins singulares e é, portanto, contraposta à vontade pura e ao seu puro fim. Mas, frente a esta contraposição, para a consciência pura a essência é antes a relação da sensibilidade com ela mesma. Ambas as coisas, o puro pensamento e a sensibilidade, são em si uma consciência ...”(FE, p. 354)

O fato de que o agente moral possui impulsos naturais significa que ele tem de enfrentar um problema duplo: tem que moralizar o mundo e tem que dominar ou domesticar os elementos sensuais que tem dentro de si. Mas aí, segundo Hegel, o ponto de vista moral do mundo mostra que é, em sua raiz, fundamentalmente incoerente. Em primeiro lugar, como já vimos, a moralidade é diferente da natureza, ao mesmo tempo que está vinculada a ela. Aspira a ignorar a natureza e a retirar-se inteiramente para dentro de si mesma, mas sabe muito bem que não o pode fazer, exatamente por causa da sua obrigação de atuar. Em segundo lugar, a moralidade se veria obrigada a, simultaneamente, anular as paixões naturais e a conservá-las. Seria obrigada ao primeiro porque, em caso de conflito, a razão deve prevalecer; e seria obrigada ao segundo porque a moral precisa das paixões naturais como antítese e como instrumento. Nas palavras de Hegel: “A moralidade é somente a consciência moral como a essência negativa para cujo puro dever a realidade sensível tem somente uma significação negativa e é somente algo não conforme.” (FE 362) Apesar do que diz, não deseja ver a domesticação total de sua natureza sensual, e a prova disso é o adiamento da perfeição moral para um futuro que está infinitamente distante. A consciência se contenta em ocupar um estágio intermediário (de não-perfeição), embora se suponha que o progresso até a vitória é sempre possível. Contudo, diz Hegel, tampouco isso pode ser, pois “o progredir na moralidade seria antes um encaminhar-se para sua decadência” (364). Se a luta entre o corpo e o espírito deve ser considerada como sem fim, não se pode falar de avanço na direção de algo melhor, pois nesses termos o avanço pareceria mais um retrocesso.

5. A ESFERA DA MORALIDADE NA FILOSOFIA DO DIREITO

Na Filosofia do direito, a esfera da moralidade (Moralität) corresponde ao segundo estágio no desenvolvimento da idéia da vontade livre absoluta. A vontade moral é a vontade livre que retorna sobre si mesma, ou seja, que é consciente de si como livre e reconhece apenas a si mesma, e não a qualquer autoridade externa, como princípio de suas ações. Como tal, dizemos que ela, a vontade, é infinita ou universal, não somente em si mas também para si. “O ponto de vista da moralidade é o ponto de vista da vontade que é infinita e não meramente em si mas para si.” (FE § 105) Trata-se da vontade consciente de si mesma como fonte do seu próprio princípio de ação, de maneira irrestrita.
Hegel aqui introduz logo, en passant, o tema da obrigação ou dever-ser (FD § 108). Pois a vontade, considerada como uma vontade particular finita, pode não estar de acordo como a vontade tomada como universal. E aquilo que a vontade universal quer aparece, então, à vontade particular, como uma demanda ou dever. Hegel, no seu tratamento da moralidade, ocupa-se fundamentalmente da vontade livre autônoma, no seu aspecto subjetivo, isto é, no seu aspecto puramente formal. “A vontade subjetiva, diretamente consciente de si mesma e distinta do princípio da vontade (...) é, portanto, abstrata, restrita e formal.” (§§ 106n e 108)
Na primeira etapa do desenvolvimento da vontade livre, ela é imediata, e sua manifestação empírica é uma coisa exterior imediata. Essa é a esfera do direito abstrato. Na esfera da moralidade, a vontade retorna sobre si mesma, partindo daquela sua existência empírica exterior (FD §33). É a esfera do “direito da vontade subjetiva em relação ao direito do mundo e ao direito da idéia, embora da idéia que é ainda apenas implícita.” (FD §33) “O indivíduo livre, que é apenas pessoa no direito (imediato), é agora determinado como sujeito, é uma vontade refletida sobre si mesma” (ECF §503). Essa reflexão da vontade sobre si mesma e sua consciência explícita de sua identidade “fazem da pessoa um sujeito”. (FD §105)
A Moralität, afirma Roland Maspétiol, representa o princípio da moral individual face à unidade e à coesão da moral social (Sittlichkeit) absoluta da polis grega, como imaginada pelo jovem Hegel (ver ES, p. 76). Enquanto direito da vontade subjetiva, constitui o ponto central da diferença entre a Antigüidade e os Tempos Modernos:

Esse direito, na sua infinitude, recebeu expressão no cristianismo e tornou-se o princípio efetivo universal de uma nova forma de civilização. Entre as formas primárias que esse direito assume, está o amor, o romantismo, a busca de salvação eterna do indivíduo, etc. Em seguida, vêm as convicções morais e a consciência; finalmente, as outras formas ..., momentos na constituição do Estado ...” (FD §124)

Em seus elementos essenciais, a Moralität aparece, enquanto elemento do espírito objetivo, como uma passagem, como uma “mediação”, como um processo de natureza dialética. É o movimento que permite percorrer a distância que separa o direito abstrato da Sittlichkeit (a vida ética, ou moral social). Os §§ 104 e 141 do Fundamentos da filosofia do direito descrevem com precisão os dois “momentos” dessa passagem, que na verdade são duas. Uma, do direito abstrato à moralidade; outra, da moralidade à eticidade. A moralidade, segundo o uso que Hegel faz do termo, é um conceito unilateral, no qual o espírito não se pode deter. É sua intenção mostrar que o conceito puramente formal da moralidade é inadequado. E tratar a moral kantiana, enquanto formalista, como fixação nesse momento – unilateral – do desenvolvimento dialético da consciência moral plenamente realizada.
Voltando à vontade subjetiva, ela se manifesta na ação (FD §113). Mas a vontade livre, como auto-determinada, tem direito a considerar como ação sua, pela qual pode ser responsabilizada, apenas aqueles atos que têm com ela certas relações. Na primeira subseção da Moralidade, “O propósito e a responsabilidade”, na Filosofia do direito, Hegel está pensando nas características formais gerais das ações, e não em indicar onde estão os deveres morais concretos. Como entendemos, Hegel está procurando as características de uma ação que tornam possível dizer que uma pessoa agiu moralmente (ou imoralmente).
Em primeiro lugar, qualquer mudança ou alteração no mundo, causada pelo sujeito, pode ser classificada como um feito seu. Mas ele tem o direito de reconhecer como ação sua somente aquilo que foi o propósito de sua vontade (FD §118). Do que não se segue, certamente, que eu possa descomprometer-me (desculpar-me) de todas as suas conseqüências. Pois algumas conseqüências são simplesmente a forma exterior que o meu agir assume necessariamente, e devem ser consideradas como compreendidas no meu propósito. Contudo, seria contrário à idéia da vontade livre autodeterminada considerar o sujeito como responsável pelas conseqüências ou alterações imprevisíveis, no mundo que, num certo sentido, são um feito seu, mas que certamente não estavam incluídas no seu propósito.
O propósito é, portanto, o primeiro momento da moralidade. O segundo é a intenção, ou antes, a intenção e o bem-estar ou felicidade (Wohl) – a segunda subseção da Moralidade. A intenção é precisamente “o lado universal da ação” (FD §119); ela é relevante para o caráter moral da ação, embora não seja o único valor relevante. Hegel quer justamente afastar a noção de que qualquer ação se justifica por uma boa intenção. Mas a intenção é, não obstante, um momento ou um fator relevante na moralidade.
Hegel desenvolve a idéia de que as intenções estão dirigidas para o bem-estar. E defende que o agente moral tem o direito de procurar seu próprio bem, a satisfação de suas necessidades como ser humano. Hegel não está querendo, porém, que o egoísmo seja norma de conduta. Por ora, está apenas considerando a moralidade separada de seu quadro ou sua expressão social. Quando Hegel diz que um homem tem o direito de procurar seu próprio bem, está dizendo que a satisfação das suas necessidades como ser humano pertence à moralidade e não se opõe a ela. Em outras palavras, já aqui o autor da Filosofia do direito está rejeitando o ponto de vista kantiano de que uma ação perde o seu valor moral se é movida por inclinação. Na concepção hegeliana, é um erro supor que a moralidade consiste numa guerra constante contra as inclinações e os impulsos naturais.
Embora o indivíduo esteja autorizado a procurar o seu próprio bem-estar, a moralidade, entretanto, não consiste na vontade particular que procura seu bem particular. Ao mesmo tempo, essa idéia deve ser preservada e não simplesmente negada. Portanto, devemos avançar para a idéia da vontade particular que se identifica com a vontade racional (e, por isso, universal) e que visa o bem-estar universal (ver FD, subseção 3, “O bem e a consciência”). A unidade da vontade particular com o conceito de vontade em si (isto é, com a vontade enquanto tal) é o bem, o qual pode ser descrito como “a liberdade realizada, o fim e o objetivo absoluto do mundo”. (FD §129)
A vontade racional como tal é a vontade verdadeira de um homem, a sua vontade como um ser livre e racional. E a necessidade de conformar sua vontade particular, sua vontade como um indivíduo particular, à vontade racional (ao seu verdadeiro eu, poderíamos dizer) apresenta-se como dever ou obrigação (FD §133). Como a moralidade abstrai de qualquer dever positivo, conclui-se que devemos cumprir o dever pelo próprio dever. Um homem deve conformar sua vontade particular à vontade universal, que é a sua verdadeira vontade, e deve fazê-lo simplesmente porque é seu dever. Mas isso, naturalmente, não diz nada sobre o que um homem deve fazer em particular. Podemos dizer apenas que a vontade boa está determinada pela certeza interior do sujeito, que é a consciência (Gewissen).

A consciência é a expressão do direito absoluto da autoconsciência subjetiva de conhecer, em si mesma, e a partir de dentro de si mesma, o que é direito e obrigatório; a dar reconhecimento apenas ao que ela conhece dessa maneira como bem, e ao mesmo tempo a sustentar que aquilo que ela dessa maneira conhece e quer é em verdade direito e obrigatório. (FD §137)

Hegel incorporaria, assim, na sua exposição da Moralidade, o momento da interioridade e da absoluta autoridade da consciência. Mas o puro subjetivismo e a pura interioridade são rechaçados por ele. Hegel trata logo de sustentar que apoiar-se numa consciência puramente subjetiva é ser potencialmente mau (FD §139n). Ele não diz simplesmente que a consciência pode errar e que algum tipo de norma objetiva ou critério objetivo é necessário. Mais que isso, ele procura estabelecer uma conexão entre a interioridade moral pura e a maldade, pelo menos uma conjunção possível. O ponto positivo central do seu desenvolvimento, porém, parece ser mesmo a idéia de que não se pode dar um conteúdo definido à moralidade no nível da pura interioridade moral. Para fazê-lo, é preciso passar à idéia da sociedade organizada. (§137)
Assim, tanto o conceito da moralidade (abstrata) como o conceito do direito abstrato são para Hegel noções unilaterais que devem ser unificadas, num nível mais alto, no conceito da vida ética (Sittlichekeit). Ou seja: no desenvolvimento dialético da esfera do espírito objetivo, eles se revelam como momentos ou fases no desenvolvimento do conceito da ética concreta, fases que devem ser, ao mesmo tempo, negadas, preservadas e elevadas.

6. CONCLUSÃO: A AVALIAÇÃO GERAL DE KANT, POR HEGEL

Já na introdução da Filosofia do direito, Hegel caracteriza o ponto de vista kantiano como limitado: “Em toda filosofia da reflexão, como a de Kant privada de toda a sua profundidade por [Jacob Friedrich] Fries, a liberdade é apenas essa auto-atividade vazia.” (FD §15) Hegel refere-se à liberdade entendida como “arbitrariedade”, capacidade para se fazer o que apraz, livre autodeterminação. Na nota ao § 33 da Filosofia do direito, Hegel afirma que, “desde quando os princípios da ação na sua (de Kant) filosofia estão sempre limitados à concepção da moralidade (esfera da vontade consciente de si como princípio da ação), eles tornam o ponto de vista da vida ética completamente impossível, na verdade eles explicitamente o anulam e o desprezam.”
Apesar de tudo, Hegel está de acordo com Kant num ponto fundamental:

Do meu ponto de vista, a essência da vontade é o dever. Agora, se meu conhecimento se detém no fato de que o bem é meu dever, ainda não estou indo além do caráter abstrato do dever. Eu deveria cumprir com o meu dever pelo dever mesmo e, quando eu cumpro com meu dever, estou, num sentido verdadeiro, realizando a minha própria objetividade. Ao cumprir o meu dever, estou comigo mesmo e estou livre. Ter enfatizado este significado do dever constitui o mérito da filosofia moral de Kant e a superioridade de sua concepção. (§133, adendo)

A ressalva, porém vem pouco mais abaixo:

Enquanto acima [Hegel está se referindo ao adendo do § 133] pusemos ênfase no fato de a concepção da filosofia kantiana ser uma concepção elevada, pelo fato de ela propor uma correspondência entre o dever e a racionalidade, todavia devemos observar aqui que esse ponto de vista é falho por lhe faltar articulação. A proposição ‘age como se a máxima de tua ação pudesse ser fixada como um princípio universal’ seria admirável se já tivéssemos princípios de conduta determinados ...

Por fim, Hegel parece colocar Kant praticamente ao lado dos jesuítas e dos românticos (o que para Hegel é uma severa condenação), na extensa nota explicativa do § 140 da Filosofia do direito. Embora, segundo Knox, Hegel esteja aí se referindo mais à “perversão da doutrina ética de Kant pelos românticos” (FD, p. 344). Hegel, naquela nota, trata do que chama de estágio, ou de formas principais da subjetividade que se absolutiza (poderíamos dizer, formas de subjetivismo moral), envolvendo a perversão da consciência no sentido do mal, como no caso da hipocrisia e outros. Hegel trata primeiro do fazer o mal com uma má consciência, a vontade escolhendo conscientemente o particular que conflita com o universal (letra a). O segundo caso (b), trata da hipocrisia propriamente dita, onde entram ainda outros dois elementos: a falsidade de apresentar o mal como bem, e a própria justificação habilidosa da subjetividade, que transforma o bem em mal aos olhos do próprio agente moral. O terceiro caso (c) é o “probabilismo”, uma doutrina da teologia moral dos jesuítas, que pretende encontrar justificativa para uma ação na autoridade de uma razão de peso ao seu favor, mesmo que existam outras em contrário. “Provável”, aqui, como diz a nota de Knox, significa “muito possivelmente verdadeiro”. Knox acha que Hegel pode estar criticando uma caricatura da verdadeira posição do probabilismo. (Ibid.) O quarto caso (d) é, então, o que nos oferece maior interesse, nessa progressão do subjetivismo na moral. Nesse caso, a ação é justificada como boa pela vontade boa, pelo querer o bem abstrato.
Lembremo-nos que Kant abre a Fundamentação da metafísica dos costumes com a declaração de que “neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação, a não ser uma só coisa: uma boa vontade.” (FMC, p. 203) Ao que Hegel contrapõe: “Como vontade de alguma coisa determinada, a ação tem um conteúdo, mas o bem em abstrato nada determina. Donde ele devolve à subjetividade particular a incumbência de dar a esse conteúdo o seu caráter e os seus elementos constituintes.” (FD, p. 96) Para Hegel, o conteúdo da intenção é apenas um dos muitos elementos que compõem uma ação, e não é suficiente para qualificá-la. Qualquer ação envolve algum aspecto positivo, ainda que seja tão somente a satisfação da vontade do agente. Por aí, qualquer ação poderia ser justificada, pelo ardil de fazer daquele aspecto positivo a intenção do agente. “Um mínimo de inteligência apenas é suficiente para descobrir em qualquer ação, como podem fazer aqueles eruditos teólogos, um lado positivo, e assim uma boa razão para ela e uma boa intenção por trás dela.” (FD, p. 97)
Em seguida, Hegel acrescenta a sua conclusão forte: “Simplesmente desejar o bem e ter uma boa intenção ao agir é mais afim ao mal que ao bem, porque o bem desejado é apenas aquela forma abstrata do bem e, portanto, o torná-lo concreto volta a ser uma atribuição da vontade arbitrária do sujeito.” (FD, p. 97) Diante disso é que André Kaan acha necessário advertir que a crítica conjunta de Hegel ao rigorismo kantiano e ao probabilismo moral “não foi jamais a última palavra de Hegel sobre a filosofia prática kantiana.” (DN, p. 23) Como vimos, Kaan acredita que, de um modo geral, Hegel pretendeu menos apresentar uma refutação da moral kantiana que mostrar como “a insuficiência de seus fundamentos especulativos a expõe a interpretações restritivas.” (DN, p. 24) Essa parece ser, realmente, a opinião final de Hegel sobre o formalismo moral kantiano.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HEGEL, G. W. F. Hegel’s Philosophy of right. Tradução e notas de T. M. Knox. Nova York: Oxford University Press, 1980.
______. Principes de la philosophie du droit. Tradução, apresentação e notas de Robert Derathé. Paris: Vrin, 1982.
______. Le droit naturel. Tradução, introdução e notas de André Kaan. Paris: Gallimard, 1982.
______. Fenomenologia del espírito. México: Fondo de Cultura Económica, 1973.
______. Précis de l’enciclopédie des sciences philosophiques. Paris: Vrin, 1978.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Col. Os pensadores)
______. Critique de la raison pratique. Paris: Presses Universitaires de France, 1960.
KAAN, André. Introduction. In: HEGEL, G. W. F. Le droit naturel. Tradução, introdução e notas de André Kaan. Paris: Gallimard, 1982.
MASPÉTIOL, Roland. Esprit objectif et sociologie hégélienne. Paris: Vrin, 1983.
WALSH, W. H. Hegelian ethics. Londres: Macmillan, 1969.
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