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José Crisóstomo de Souza
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A ANTROPOFAGIA AO ALCANCE DE TODOS
Benedito Nunes

“Chacun son tour d'être mangé.”
Ubu Roi

Dos sete escritos doutrinários de Oswald de Andrade reunidos neste volume,* somente os conhecidíssimos Manifestos da Poesia Pau-Brasil (Correio da Manhã, 18-3-1924) e Antropófago (Revista de Antropofagia, maio de 1928) pertencem a fase modernista. Os demais – Meu Testamento (1944), A Arcádia e a Inconfidência (1945), A Crise da Filosofia Messiânica (1950), Um Aspecto Antropofágico da Cultura Brasileira: O Homem Cordial (1950) e A Marcha das Utopias (1953), datam da época imediatamente posterior[**.
O Manifesto Pau-Brasil inaugurou o primitivismo nativo, que muito mais tarde, num retrospecto geral do movimento modernista, Oswald de Andrade reputaria o único achado da geração 22. Nesse documento básico do nosso modernismo, que figura, em forma reduzida, no livro de poesias Pau-Brasil (“Falação”), já se introduz uma apreciação da realidade sociocultural brasileira. O Manifesto Antropófago trouxe um diagnóstico para essa realidade, e motivou a Revista de Antropofafia, na sua primeira fase(maior de 1928 a fevereiro de 1929) dirigida por Alcântara Machado, circulando posteriormente na chamada “segunda dentição”, como página semanal do Diário de São Paulo e Órgão do Clube de Antropofagia( março a agosto de 1929), com secretários que se revezaram (os “açougueiros” Geraldo Ferraz, Jayme Adour da Câmara e Raul Bopp). Radicalização do primitivismo nativo, aquele Manifesto precipitou, como carta de princípios e filosofia de bolso do grupo da Antropofagia, o mais aguerrido da fase polêmica do Modernismo, sob a licença de Oswald de Andrade, a divisão ideológica latente na sua divergência com as outras correntes do pensamento que então se confrontaram – duas delas, o nacionalismo metafísico, de Graça Aranha, e o nacionalismo prático verdamarelo, reformulado no grupo de Anta (Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo, Plínio Salgado, Cândido Motta Filho, etc.), diretamente ligadas ao Modernismo, e o espiritualismo católico, ligado ao simbolismo e à filosofia de Farias Brito (Jackson de Figueiredo e Tristão de Athayde, principalmente) e com o qual se entrosou a revista Festa aparecida em 1926 (Tasso da Silveira, Andrade Murici e Murilo Araújo, entre outros).
Se não podemos compreender o alcance dos Manifestos, como parte importante da obra de Oswald de Andrade, senão através da atividade intelectual e do papel que esse poeta, romancista e ensaísta, desempenhou no Modernismo, faltar-nos-ia também o correto entendimento de seus escritos pós-modernistas se deixássemos de considerar a opção política que ele fez em 1930.
O nosso autor, após atravessar pelo “lancinante divisor de águas foi a Antropofagia, a crise do liberalismo econômico e político de 1929, quando o craque da Bolsa de New York repercutiu na exportação do café brasileiro, encaminhou-se para a extrema esquerda. E ao firmar-se nesse lado, iniciando uma fase de militância política marxista, abjurou sua atitude de chefe da vanguarda “antropófaga” no Prefácio (fevereiro de 1933) de Serafim Ponte Grande, romance que escrevera no mesmo “primeiro cadinho da nossa prosa nova”, - Memórias Sentimentais de João Miramar – e no espírito da corrente que liderara de 1928 a 1929. Nesse prefácio, confessado ter sido palhaço da burguesia, com Emílio de Menezes e Blaise Cendrars, Oswald diz que, como tantos outros de sua geração, passara pela experiência vanguardista por efeito de uma inquietude mal compreendida, que ignora a origem social e o fundo político dos seus anseios. Em tais condições, a bandeira rebelde, nem preta nem vermelha, do primitivismo nativo por ele sustentada a doses de sarcasmo, fora como uma doença infantil – o “sarampão antropofágico”, que atingira indistintamente aqueles que não tinham recebido a vacina marxista. Mais contraditório que o poeta e não menos do que o homem do partido que se tornara, o romancista Oswald de Andrade compunha o epitáfio de sua posição como “antropófago”, no ato de publicar o livro nela inspirado.
Depois de A Estrela de Absinto, continuação de Os Condenados, cujo estilo era amassado num cadinho não exatamente igual ao que lhe servira para gerar a prosa avançada do Modernismo, Oswald publicará A Escada Vermelha, em 1934 – que se chama simplesmente A Escada, na versão definitiva da Trilogia do Exílio, em 1941 – confirmando, nesse romance, a posição política assumida de “casaca de Ferro na Revolução Proletária”. No entanto, as peças de teatro, que datam de 1934 (O Homem eu Cavalo e A Morta) e de 1937 (O Rei da Vela), bem como os artigos, ensaios e conferências reunidos em Ponta de Lança, parecem submeter o marxismo a uma filtragem “antropofágica”.
Rompendo com a orientação marxista em 1945, proclamava Oswald, dois anos depois, o seu retorno à Antropofagia. A ela já se referira, de maneira simpática e ambígua, no “Meu Testamento” e num diálogo de Chão (1945), segundo volume de Marco Zero, que é um panorama da sociedade paulista entre a Revolução de 1932 (tema do primeiro volume, A Revolução Melancólica, de 1943) e as lutas políticas que antecedem o golpe de 1937, implantando o Estado Novo. Esse retorno à Antropofagia efetivou-se como oposição crítica ao marxismo e como um processo de conversão filosófica do autor, que se dedicou apaixonadamente ao estudo da Filosofia, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, que não trouxera, conforme ele esperava, o ocaso dos imperialismos, das ditaduras e da moral burguesa. Tomando então por base as instituições contidas nos Manifestos de 1924 e 1928, Oswald elabora, em A Crise da Filosofia Messiânica, a sua concepção filosófica de mundo, e continua a desenvolvê-la, principalmente nos artigos que publicou sob o título de A Marcha das Utopias.
Dada a origem dessa concepção, que retoma, quase vinte anos após, o canibalismo modernista, é lícito perguntar se não estamos diante de um resíduo intelectual daquele movimento – diante do fantasma do Abaporu (antropófago), imagem do quadro de Tarsila, que teria acendido a chispa do Movimento Antropófago. É o que tentaremos responder neste prefácio.

A Visão Poética Pau-Brasil
As vanguardas do início deste século fizeram do primitivismo um conceito polêmico. Usaram-no, via de regra, no sentido de traduzir o máximo afastamento da arte nova em relação às tradições e convenções do passado. Representou por isso a tendência para buscar os elementos originários da arte nos sentimentos ou na descarga das emoções, condicionados a necessidades de caráter instintivo ou na franqueza de visão, na simplicidade formal, como fonte de possibilidades à expressão plástica pura, que os cubistas foram encontrar tanto na arte africana quanto no douanier Rousseau. Não se interessou o cubismo, que foi um primitivismo da forma externa, pelo conteúdo animista e pelas qualidades empáticas das máscaras e estatuetas trazidas da África e da Oceania. Ao contrário, o primitivismo dos pintores e poetas expressionistas, dadaístas e surrealistas consistiu na expressão interior dominante, fosse através da emoção intensa, do sentimento espontâneo, fosse através da provocação do inconsciente, que deriva para o automatismo psíquico e a catarse.
Numa sua conferência, feita em 1923, na Sorbonne, em que destacou a presença sugestiva do tambor africano e do canto negro em Paris, como forças étnicas que desembocavam na modernidade, Oswald também afirmou que o século XX estava à procura das fontes emotivas, das “origens concretas e metafísicas da arte”. Além de conceito polêmico, que as vanguardas utilizaram para assinalar essa busca do elemento originário a que Oswald se referia, o primitivismo correspondeu ao sobressalto étnico que atingiu o século XX, encurvando a sensibilidade moderna menos na direção da arte primitiva propriamente dita do que no rumo, por essa arte apontado, em decorrência do choque que a sua descoberta produziu na cultura europeia, do “pensamento selvagem” - pensamento mitopoiético, que participa da lógica do imaginário, e que é selvagem por oposição ao pensar cultivado, utilitário e domesticado.
Oswald de Andrade, condicionado por esse sobressalto, que já marca o Manifesto Pau-Brasil, tanto penderia para o primitivismo de natureza psicológica, quanto para o da experiência da forma externa na estética do cubismo, que Apollinaire estendeu, sem esquecer de associá-la à exaltação futurista da vida moderna nos grandes meios urbanos, às manifestações da nova lírica, do esprit nouveau na poesia.
O Manifesto Pau-Brasil, que é prospecto e amostra da poesia homônima, situa-se na convergência desses dois focos. Pelo primitivismo psicológico, valorizou estados brutos da alma coletiva, que são fatos culturais; pelo segundo, deu relevo à simplificação e à depuração formais que captariam a originalidade nativa subjacente, sem exceção, a esses fatos todos – uns de natureza pictórica, (Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da favela...), folclórica (O carnaval), histórica (Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil), outros étnicos (A formação étnica rica), econômicos (Riqueza vegetal. O minério), culinários (A cozinha. O vatapá...) e linguísticos (A contribuição milionária de todos os erros). Buscando a originalidade nativa nesses fatos, a Poesia Pau-Brasil realizaria “a volta ao material”, já vislumbrada em João Miramar, e que coincide com a volta ao sentido puro e à inocência construtiva da arte. Em tais princípios de sua poética, na acepção ampla do termo, princípios que podem ser aplicados à pintura de Tarsila desse período, encerra o Manifesto, como aspectos complementares de uma só concepção primitivista, um programa de reeducação da sensibilidade e uma teoria da cultura brasileira.
A perspectiva definida pelo Manifesto – sentimental, intelectual, irônica e ingênua ao mesmo tempo – é um modo de sentir e conceber a realidade, depurando e simplificando os fatos da cultura brasileira sobre que incide. Nos meios técnicos de produção, informação e comunicação na sociedade industrial (“O reclame produzindo letras maiores que torres. E as novas formas da indústria, da viação, da aviação. Postes. Gasômetros. Rail. Laboratórios e oficinas técnicas”) tem esse modo de conceber as condições objetivas, histórico-sociológicas, que o possibilitam, e que formam, em conjunto, uma nova escala de experiência perceptiva. Daí não ter a perspectiva pau-brasil, que substitui a naturalista, o feitio de uma receita, com ingredientes dosados a capricho. Ela é sintética como a do cubismo; a invenção de formas assegura-lhe a originalidade, e a surpresa, o choque que subverte o comum, mesmo à custa de parecer trivial. Ambas, invenção e surpresa, que são notas distintivas da lírica moderna, destacadas por Apollinaire, também marcam a inocência construtiva da Poesia Pau-brasil, “ágil e cândida”, na sua volta ao sentido puro de todas as artes, a uma pureza que está tanto no fato poético reduzido à condição de material, quanto ao “acabamento de carrosserie”, mais tecnológico do que técnico, da síntese verbal que o contém e exibe.
A inocência construtiva da forma com que essa poesia sintetiza os materiais da cultura brasileira equivale a uma educação da sensibilidade, que ensina o artista a ver com olhos livres os fatos que circunscrevem sua realidade cultural, e a valorizá-los poeticamente, sem excetuar aqueles populares e etnográficos, sobre os quais pesou a interdição das elites intelectuais, e que melhor exprimem a originalidade nativa. Nasce daí a teoria já crítica da cultura brasileira, focalizando a oposição, que foi um dos móveis a dialética do Modernismo, entre o seu arcabouço intelectual de origem europeia, que integrou a superestrutura da sociedade e se refletiu no idealismo doutoresco de sua camada ilustrada, e o amálgama de culturas primitivas, como a do índio e a do escravo negro, que teve por base.
O idealismo da camada ilustrada aparece como o lado doutor com que o Manifesto representa o estilo importado da vida intelectual e da cultura literária e artística – estilo imitativo, que se desafogou na erudição e na eloquência, na mentalidade bacharelesca, comum ao jurista e ao nosso gramático, o primeiro imaginando o império das leis sobre a sociedade e o segundo o da gramática sobre a linguagem. O bacharelismo, o gabinetismo e o academismo, as frases feitas da sabedoria nacional, a mania das citações, tudo isso serviria de matéria à poesia pau-brasil, que decompõe, humoristicamente o arcabouço intelectual da sociedade brasileira, para retomar, através dele ou contra ele, no amálgama primitivo por esse arcabouço recalcado, a originalidade nativa, e para fazer dessa o ingrediente de uma arte nacional exportável. Nesse método de criação, complemento prático da teoria pela qual o poeta devassa os elementos originais da nossa cultura, repercute um processo mais vasto, a que se acha ligado e de que é um estágio consequente, processo de reacomodação cultural, regido por leis globais que “nasceram do próprio rotamento dinâmico de seus fatores destrutivos”.
Esse processo, verdadeira práxis social revolucionária, “a prática culta da vida”, como o chamou Oswald de Andrade, prática que os engenheiros e os especialistas mobilizam, originou-se na nova escala de experiência condicionada pela máquina e pela tecnologia, por todo esse conjunto dos meios de produção, comunicação e informação da época moderna, que transformaram a natureza circundante, criando a sobrenatureza do meio ambiente técnico da civilização industrial e urbana, a escala não livresca, mas espetacular de um mundo surpreendente e mágico, de coisas mutáveis de objetos que se deslocam no espaço e no tempo, - de um mundo em que a própria ciência funciona como varinha de condão.
Por duas fases passou “a prática culta da vida”. Numa primeira, é a “democratização estética nas cinco partes sábias do mundo”, quando a criação artística entrou em recesso, suplantada que foi pelas técnicas de reprodução - a cópia do naturalismo, a pirogravura, depois a fotografia. Numa segunda etapa, quando a arte, restituída às elites, recobra o seu vigor, é um processo destrutivo, manifestando-se, a partir do impressionismo e até o cubismo, mediante “a deformação, a fragmentação, o caos voluntário”, mas cujos efeitos globais provocaram o “estouro nos aprendimentos”. Essa “prática culta da vida,” que subverteu os moldes tradicionais de pensamento e de experiência, foi a mesma que abalou os sustentáculos do arcabouço intelectual da cultura brasileira, reduzindo-o, tal como aparece no Manifesto, a um conjunto de peças líricas de reposição poética, em estado de material pau-brasil. Efetivamente, o pensamento de Oswald já percorreu aqui o curso dialético desse processo, pois se o poeta agora pode enxergar com olhos livres, deve isso aos efeitos daquela prática., depuradores em última análise. Consequentemente, a reconstrução da poesia e da cultura, na perspectiva decorrente da sensibilidade reajustada à nova escala do mundo moderno, far-se-á da estaca zero, para além das barreiras da sabedoria e da erudição que rebentaram, mantendo a destruição no nível de uma depuração, -se as lentes doutorais que deformam, sem o partis pris dos hábitos da camada intelectual, -do modo brasileiro de ser e de falar.
O sentido puro das artes na época moderna, conquistado na revolução industrial que se prolongou na revolução estética, compreenderia a realidade “natural e neológica” da língua portuguesa falada no Brasil, mola principal do distanciamento humorístico que nos dá a medida do primitivismo pau-brasil como sendo um recuo psicológico e social, que encampa, numa voluntária recusa tática dos valores intelectuais que as camadas ilustradas comprometeram aqueles outros valores mágicos e alógicos da imaginação primitiva, acordes com as súbitas transformações do mundo pela ciência e pela técnica.
O ideal do Manifesto da Poesia Pau-Brasil é conciliar a cultura nativa e a cultura intelectual renovada, a floresta com a escola num composto híbrido que ratificaria a miscigenação étnica do povo brasileiro, e que ajustasse, num balanço espontâneo da própria história, “o melhor de nossa tradição lírica” com “o melhor de nossa demonstração moderna”. E graças ao despojamento do modo de sentir e conceber provocado pela máquina e pela tecnologia, o caráter universal da cultura não dependeria mais de um centro privilegiado de irradiação das ideias e experiências. A universalidade da época deixaria de ser excêntrica para tornar-se concêntrica; o mundo se regionalizara e o regional continha o universal. “Ser regional e puro em sua época,” - eis a fórmula com que o Manifesto quebra a aura exótica da cultura nativa. A poesia consequente a esse programa deixaria de ser a matéria-prima do exotismo, uma especiaria estética destinada a temperar o gosto do europeu num mundo já dividido em províncias, em regiões que se intercomunicam. Produto elaborado de fabricação doméstica, ela entraria, sem concorrência, no mercado mundial, pelas vias econômicas da exportação.
Não será pois o exotismo amável e compreensivo de Blaise Cendrars, mistura de “moteurs et des fetiches noirs”, por sinal o único autor a quem expressamente se refere o texto de 1924, o que vai autenticar a visão poética pau-brasil, desentranhada de peças históricas previamente decompostas, e enquadradas, como material, à perspectiva da inocência construtiva dos poemas de História do Brasil. Colhe-se em Gandavo a impressão de hospitalidade da terra maternal, “que a todos agasalha e convida”, o sentimento de uma existência calma e ociosa como a de certo animal “a que chamam Preguiça”, e em que “todos têm remédio de vida”; em Claude d'Abeville, a imagem da saudável nudez das mulheres indígenas, “merveileusement difforme et déshonnête”; em Pero Vaz de Caminha, a do cordial encontro do civilizado com o primitivo; em Frei Manoel Callado, as sugestões paradisíacas da civilização pernambucana: “tudo são delícias/ não parece esta terra senão um retrato/ do terreal paraíso”.
Essa impressão, essa imagem, essas sugestões, assim isoladas dos textos, de que desentranhou o poeta, como que perdendo, pela leitura autônoma, o poder de remissão ao passado que lhes confere o seu caráter e registro cronológico, configuram a visão poética pau-brasil, em que os tópicos do exotismo, tais como o ócio, a comunhão fraterna, a sociedade dadivosa, a liberdade sexual e a vida edênica, transformam-se em valores prospectivos, que ligam a originalidade nativa aos componentes mágicos instintivos e irracionais da existência humana, ao pensamento selvagem portanto, em torno do qual gravitou a tendência primitivista das correntes de vanguarda que Oswald de Andrade assimilou.
A Metafísica Bárbara
No estilo telegráfico do anterior, os aforismos do Manifesto Antropófago misturam, numa só torrente de imagens e conceitos, a provocação polêmica à proposição teórica, a piada às ideias, a irreverência à intuição histórica, o gracejo à intuição filosófica. Usando-a pelo seu poder de choque, esse Manifesto lança a palavra “antropofagia” como pedra de escândalo, para ferir a imaginação com a lembrança desagradável do canibalismo, transformada em possibilidade permanente da espécie. Imagem obsedante, cheia de ressonâncias mágicas e sacrificiais, com um background de anedotas de almanaque, mas também com uma aura soturna e saturniana, tal palavra funciona como engenho verbal ofensivo, instrumento de agressão pessoal e arma bélica de teor explosivo, que distende, quando manejada, as molas tensas das oposições e contrastes éticos, sociais, religiosos e políticos, que se acham nela comprimidos. É um vocábulo catalizador, reativo e elástico, que mobiliza negações numa só negação, de que a prática do canibalismo, a devoração antropofágica é o símbolo cruento, misto de insulto e sacrilégio, de vilipêndio e de flagelação pública, como sucedâneo verbal da agressão física a um inimigo de muitas faces, imaterial e proteico. São essas faces: o aparelhamento colonial político-religioso repressivo sob que se formou a civilização brasileira, a sociedade patriarcal com seus padrões morais de conduta, as suas esperanças messiânicas, a retórica de sua intelectualidade, que imitou a metrópole e se curvou ao estrangeiro, o indianismo como sublimação das frustrações do colonizador.
Como símbolo da devoração, a Antropofagia é, a um tempo, metáfora, diagnóstico e terapêutica: metáfora orgânica, inspirada na cerimônia guerreira da imolação pelos tupis do inimigo valente apressado em combate, englobando tudo quanto devemos repudiar, assimilar e superar para a conquista da nossa autonomia intelectual; diagnóstico da sociedade brasileira como sociedade traumatizada pela repressão colonizadora que lhe condicionou o crescimento, e cujo modelo terá sido a repressão da própria antropofagia ritual pelos Jesuítas, e terapêutica, por meio dessa reação violenta e sistemática, contra os mecanismos sociais e políticos, os hábitos intelectuais, as manifestações literárias e artísticas, que, até à primeira década do século XX, fizeram do trauma repressivo, de que a Catequese constituiria a causa exemplar, uma instância censora, um Superego coletivo. Nesse combate sob forma de ataque verbal, pela sátira e pela crítica, a terapêutica empregaria o mesmo instinto antropofágico outrora recalcado, então liberado numa catarse imaginária do espírito nacional. E esse mesmo remédio drástico, salvador, serviria de tônico reconstituinte para a convalescença intelectual do país e de vitamina ativadora de seu desenvolvimento futuro. A jocosa alternativa do dilema hamletiano parodiado – Tupy or not tupy, that is the question – que parece ter sido a célula verbal originária do Manifesto, resolve-se pois numa rebelião completa e permanente.
Como dada, “Antropofagia” nasceu de “uma necessidade de independência, de desconfiança para com a comunidade”; como dada, é uma palavra-guia que conduz o pensamento à caça das ideias. Precisamos então considerar, na leitura do Manifesto Antropófago, a ocorrência simultânea de múltiplos significados, e ter em mente que o uso da palavra “antropófago”, ora emocional, era exortativo, ora referencial, faz-se nesses três modos de linguagem e em duas pautas semânticas uma etnográfica, que nos remete às sociedades primitivas, , particularmente aos tupis de antes da descoberta do Brasil; outra histórica, da sociedade brasileira, a qual se extrapola, como prática de rebeldia individual, dirigida contra os seus interditos e tabus, o rito antropofágico da primeira.
Nenhuma exposição do conteúdo do Manifesto Antropófago, que é o avesso do discurso lógico, pode compensar a falta de imagens e dos trocadilhos que nos dá o seu texto, cheio de intuições penetrantes. Respeitando-lhe a flexibilidade, o tom apologético, alusividade e o caráter doutrinário, distinguimos nele, para efeito de análise, os três planos seguintes: o da simbólica da repressão ou da crítica da cultura; o histórico-político da revolução caraíba, e o filosófico, das ideias metafísicas.
A sociedade brasileira surge aos olhos de Oswald de Andrade através das oposições que a dividiram, polarizando a sua religião, a sua moral e o seu direito, a partir de uma primeira censura, a da Catequese, que trouxe o cristianismo, e a do Governo-Geral, que trouxe as Ordenações. Da conquista espiritual dos Jesuítas conjugada ao poder temporal dos mandatários da Coroa, decorreu o código ético do Senhor de Engenho, patriarca dono de escravos, reinando sobre a Senzala e a Casa Grande. “Nunca fomos catequizados”, diz o Manifesto num refrão. “Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.” O paganismo tupi e africano subsiste como religião natural na alma dos convertidos, de cujo substrato inconsciente faz parte do antigo direito de vingança na sociedade tribal tupi. Também ficou recolhida nesse substrato, por obra do patriarca puritano e da sua “Moral da Cegonha”, a sexualidade envergonhada que nossos ancestrais indígenas não teriam conhecido, e que esse mesmo Senhor, austero na Casa Grande, soltou no desenfreio sem-vergonha na Senzala... Por baixo do Parlamentarismo do Império, ficou o poder real do tacape; sob o verniz das instituições importadas, a política e a economia primitivas, e sob os ouropéis da literatura e da arte, a imaginação, a lógica do indígena, surrealista avant la lettre. Essas oposições todas podem ser reduzidas a uma contradição única, que figura concomitantemente o processo de civilização e o processo de Catequese, origem “das sublimações antagônicas” - entre o antropófago nu e o índio de roupa inteira, o índio “vestido de senador do império... Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheios de bons sentimentos portugueses”. É por essa contradição que passa o eixo da simbólica da repressão, com seus emblemas e símbolos míticos.
Traduzindo as fixações psicológicas e históricas de nossa cultura intelectual, os emblemas são personalidades e situações consagradas, intocáveis como os tabus: Padre Vieira (a retórica e a eloquência), Anchieta (o fervor apostólico e a pureza), Goethe (o senso de equilíbrio, a plenitude da inteligência), a Mãe dos Gracos (a moral severa, o culto à virtude), a corte de D. João VI (a dominação estrangeira), João Ramalho (o primeiro patriarca, etc.) A esses emblemas, que cabem na categoria de mitos culturais opõem-se os símbolos míticos propriamente ditos – Sol, Cobra grande, Jaboti, Jacy, Guaracy, etc. Estes, que saem das reservas imaginárias instintivas do inconsciente primitivo, catalizaram, quando lançados propriamente contra os primeiros, a operação antropofágica, como devoração dos emblemas de uma sociedade. É a transformação do tabu em totem, que desafoga os recalques históricos e libera a consciência coletiva, novamente disponível, depois disso, para seguir os roteiros do instinto caraíba gravados nesses arquétipos do pensamento selvagem, - o pleno ócio, a festa, a livre comunhão amorosa, incorporados à visão poética pau-brasil e as sugestões da vida paradisíaca, “sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama”.
Mas a rebelião individual, com que acena a Antropofagia, está a serviço da revolução caraíba, de que as revoluções todas são aspectos parciais, incompletos; “maior que a Revolução Francesa”, emprestou seu impulso à rebeldia romântica, à revolução bolchevista, ao surrealismo e, finalmente, a ideia que já conhecemos do Manifesto Pau-Brasil, à ação transformadora da técnica, que produziu, com uma nova escala da experiência humana, o selvagismo da sociedade industrial. Em paralelo à exportação da Poesia Pau-Brasil, transportando ao mercado mundial a originalidade nativa, haveria uma retoma por nós do impulso antropofágico de rebeldia, matéria-prima indígena com que , através de relatos como os de Jean Lerry, missionário da França Antártica où Villegaignon print terre, a imagem da independência e da altivez dos tupis cristalizou-se, depois de elaborada por Montaigne e Rousseau, - percorrendo uma trajetória reconstituída num ensaio de Affonso Arinos, - no conceito do homem natural, sujeito de direitos imprescritíveis, de cuja vontade todo poder político emana. Daí proclamar o Manifesto que “sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem”. Num ato de reintegração de posse, que equivale a uma crítica da razão política do exotismo, pois que a trajetória ideológica do nosso antropófago foi a mesma que introduziu a atração do Novo Mundo na literatura europeia, a revolução caraíba nos devolveria o impulso originário, que “unifica todas as revoltas eficazes na direção do homem”, outrora recebido, de torna-viagem, na rota de nossas importações, como produto intelectualmente elaborado no estrangeiro, e sob o invólucro de uma forma histórica alheia à nossa realidade. Pela abertura do manancial de rebeldia que alimentou, da revolução burguesa ao surrealismo, um ciclo de transformações do mundo, de que o movimento antropofágico seria o último elo, inverteríamos a direção da história, pondo-nos à frente da caminhada mundial que começou em Villegaignon para levar-nos ao matriarcado de Pindorama.
Desse ponto de vista, a revolução caraíba, protótipo das revoluções, das transformações sociais, superaria as anteriores – a Francesa, a Românica, a Bolchevista, e a Surrealista – e assumiria, num surpreendente efeito de humor oswaldiano, a paternidade de todas. No entanto, o pensamento antropofágico, confirmando a prática da deglutição intelectual por parte de Oswald de Andrade, filia-se, quanto a sua gênese, àquelas mesmas ideias que são legítimos rebentos do instinto caraíba a desmarcar o percurso da rebelião universal.
Oswald de Andrade tirou do capítulo XXXI dos Essais de Montaigne a própria ideia da vida primitiva. Costumes sãos quanto à liberdade matrimonial e à propriedade comum da terra, o gosto do ócio e o prazer da dança, virtudes naturais que a “ingenuidade originária” inspirava, instituições sóbrias e sábias que a Platão fariam inveja, formam o retrato que o humanista traçou da sociedade selvagem, equilibrada e feliz, incomparavelmente superior à dos civilizados, não obstante a antropofagia, ato de vindita menos bárbaro do que a crueldade com que os europeus, incapazes de comer um homem morto, torturaram e estraçalharam um corpo humano vivo., “sob pretexto de piedade e de religião”. Vem desse quadro a sobreposição da vida dos tupis, que teria sido o modelo em que Montaigne decalcou a sua interpretação da sociedade primitiva, à mítica Idade do Ouro, matriarcal e sem repressão, cuja violência se descarregaria no ritual antropofágico, que foi a espécie de canibalismo valorizada por Oswald de Andrade.
A transformação de tabu em totem, essência desse ritual, tomou-a o nosso autor de Totem e Tabu, onde Freud, para explicar a passagem do estado natural ao social da Natureza à Cultura, fixou a hipótese mítica do parricídio canibalesco. Ao assassínio e à devoração do pai tirânico, chefe da horda, pelos filhos rebelados, sucedeu a interiorização da autoridade paterna, como Superego coletivo proíbe o incesto. Compelida a expiar aquele crime, a humanidade repete, na devoração antropofágica, transformando o tabu em totem, o parricídio fatídico. Oswald, generalizando indevidamente a antropofagia ritual, - dado que ele próprio sabia que nem todo canibal assume esse aspecto e nem é o canibalismo uma prática universal entre as sociedades “frias” - ligou essa purgação do primitivo à origem da saúde moral do Raubentier nietzschiano, do homem como animal de presa que , segundo a imagem empregada por Nietzsche em A Genealogia da Moral, assimila e digere, sem resquício de ressentimento ou de consciência culposa espúria, os conflitos interiores e as resistências do mundo exterior.
Uma das leituras prediletas da sua juventude, a quem Oswald deve grande parte de sua virulência crítica dirigida contra os padrões morais comuns (Moral de Rebanho), o sacerdócio e as religiões de salvação (de meridiano), Nietzsche não é porém mencionado no Manifesto, ao contrário de Keyserling, expressamente citado, a quem o nosso autor deve a ideia da barbárie técnica na época do chauffeur, colhida em O Mundo quando que nasce, e que por ele foi interpretada num sentido positivo. Os prenúncios de um novo tribalismo, acumulados ao nosso redor, nesta era do chauffeur, para Keyserling redundado num ecumenismo religioso e político, numa arte pré-cultural e no advento de novas “aristocracias”, como a bolchevista e a fascista, são, para Oswald, os prenúncios da abundância dos bens de consumo garantida pelo desenvolvimento tecnológico da produção. Concretizar-se-ia, então, a “vitória política da máquina”, a que ele se referiu num dos ensaios de Ponta de Lança, de nítida inspiração spengleriana, e com que acena outra das sobreposições imagéticas do Manifesto, desta vez entre a Idade do Ouro em que nos encontramos e a Idade do Ouro a que volveríamos em da razão da pletora e da nivelação das condições materiais de vida na época do chauffeur. Nesse trocadilho está toda a esperança da revolução caraíba.
Já podemos divisar nas ideias que Oswald de Andrade pilhou em Montaigne, Freud, Nietzsche e Keyserling, o plano de generalização filosófica da Antropofagia, que passará incólume aos trabalhos doutrinários do autor, na fase que sucedeu ao seu rompimento com o marxismo. Trata-se, no espírito das motivações polêmicas, quase sempre decisivas para o nosso poeta, de uma inversão parodística da filosofia de Graça Aranha, ratificando a metafísica bárbara repelida em A Estética da Vida, como produto híbrido do fetichismo negro e do temor religioso do índio, transformou a imaginação brasileira, presa ao “espírito tenebroso da terra”, numa autêntica “floresta de mitos”. Recuperar essa imaginação, reativando nossa herança latina para sobrepô-la ao fundo mítico que nos legaram o tupi e o africano escravo, eis o que, a juízo de Graça Aranha, tornava-se necessário a fim de que pudéssemos alcançar, através da emoção estética, a integração no cosmos e o estado de alegria que transcende o terror primitivo pelo sentimento de de identidade com o universo, sem o qual o povo brasileiro prolongaria a sua impotência diante da Natureza tropical. Ser brasileiro não significa ser bárbaro, afirmava Graça Aranha em sua famosa conferência O Espírito Moderno, meses depois da publicação do Manifesto Pau-Brasil.
A Antropofagia, metafísica bárbara que assume o terror primitivo, continuará a ser elaborada nos artigos da Revista de Antropofagia (2ª fase), nos quais Oswald e seus companheiros discutem a Gestalttheorie e o bahaviour, concebendo o instinto antropofágico, de que deriva a própria libido, como vínculo orgânico e psíquico ligando o homem à terra. É o vínculo de que nasce o “sentimento órfico”, ressaltado pelo poeta nas suas Memórias, e que talvez nele jorrasse da mesma fonte que alimentava o seu “fundamental anarquismo”. Convertido depois, em A Crise da Filosofia Messiânica, no sentimento existencial de abandono do ser no mundo, já se pode observar o alcance religioso, estranho a concepção cristã, do instinto antropofágico, de que tratam os artigos doutrinários da Revista, que espontaneamente se manifesta, primeiro na consciência do sagrado, como entidade estranha e hostil ao homem, como tabu supremo e interdito transcendente, e em seguida na atitude devorativa pela qual o selvagem, graças ao ritual cabalístico, incorporava, num ato de extrema vingança, a alteridade inacessível dos seus deuses, ficando-os na terra, e com eles estabelecendo a convivência familiar que Oswald imaginava tivessem tido os tupis com Guaracy e Jacy. “É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à ideia de Deus”, eis o paradoxo culminante da metafísica bárbara, expressando a luta, de que fala o Manifesto, “entre o que se chamaria Incriado e a Criatura.”.
Se a religião assim concebida, verdadeira apenas no sentido prático, como instrumento de adaptação vital, entra nos moldes do pragmatismo de William James, autor citado no Manifesto em simetria com Voronoff, a concepção do homem, correspondente à metafísica bárbara, é profundamente nietzschiana. Dominador da natureza, o homem tem a vontade de poder, “escala termométrica do instinto antropofágico”, a força primordial do seu ethos, força ambígua que faz do ser humano ou um rebelde generoso ou um guerreiro cruel. Daí encontrarem-se lado a lado, galeria de honra dos “antropófagos”, os revolucionários, os milenaristas, o Marquês de Sade, o capitão Antônio Ferreira Virgolino (Lampião) e o bandido Tche, salteador de estradas do tempo de Confúcio, êmulo dos canibais de Montaigne, que incendiaram os palácios de Rouen e destronariam o rei da França.
Como animal em contínuo processo de adaptação biopsíquica, reagindo contra o meio e criando seu ambiente, o homem tem a sua existência limitada a coordenadas espaciais que passam pelo lugar em que habita, e que o ligam, para sempre, a uma região determinada. A metafísica bárbara é também localista e tribal: o sentimento órfico se regionaliza, e produz, segundo a terra em que vivemos, uma imagem de Deus. E é ainda nos limites de seus espaço regional que o homem antropofágico se converte no bárbaro tecnizado de Keyserling, ávido de progresso, assimilado a técnica e utilizando-se da máquina para acelerar a sua libertação moral e política. Criaríamos assim, pelo caminho do máximo progresso material, um novo estado de natureza, que nos devolve à infância da espécie, onde, numa sociedade matriarcal, alcançaremos na alegria (veja-se nisso outra réplica parodística à alegria cósmica de Graça Aranha), a prova dos nove de nossa felicidade.
Para o grupo reunido na trincheira da Revista de Antropofagia, já em 1929, o antagonismo dos interesses sociais seria solucionado na fronteira da Economia com a Política. Em suma, nossos “antropófagos” viram a caminho da Utopia, a política em função da distribuição dos bens sociais; e integraram o Poder, já desvestido de autoritarismo, à sociedade. E esta, como grande matriarca, desreprimida pela catarse dos instintos, e liberta, pelo progresso, da instância censora do Superego paternalista, tenderia a tornar-se, numa projeção utópica de suas possibilidades, a livre comunhão de todos.
Antropofagia e Utopia
À luz da perspectiva utópica podemos compreender porque foi a Antropofagia, segundo as palavras de Oswald, o divisor de águas político do Modernismo. No momento em que surgiu o Manifesto de 1928, as correntes europeias de vanguarda, com as quais o primitivismo nativo tinha afinidade, já tendiam a uma aspiração ética: o ideal de uma renovação da vida, que atingisse o todo da existência, individual e socialmente considerada. Os surrealistas não pretendiam outra coisa quando se engajaram, a partir de 1930, na revolução proletária. Entre nós também a politização havia começado.
Em 1927, o grupo Anta, nova denominação do Verdamarelo reformulado, assentou as bases ideológicas de seu nacionalismo numa “política brasileira com raízes profundas na terra americana e na alma da pátria”. O Modernismo, diziam os “antropófagos”, resolvera o problema literário, mas deixara insolúveis os verdadeiros problemas nacionais. Começavam então, pondo termo à indiferença, ao absenteísmo da geração de 22, que não foi tão agudo como Mário de Andrade entenderia, aquelas reações em cadeia, que levaram o Verdamarelo a se transformar no Anta e o Pau-Brasil a se transmudar na Antropofagia. Ambas as reações, com o mesmo sentido mas com direções diferentes, já eram políticas. Esses grupos remanescentes se afastavam na realidade quanto mais parecia aproximá-los o tema do índio que lhes era comum. Não foi o prazer só debate que os colocou em grupos antagônicos; foi um antagonismo que pode ser percebido no próprio sentido étnico invocado pelos dois grupos adversos, que os impeliu ao prazer do debate.
O sentido étnico, para os da Anta, é o mistério vicariante da raça tupi, que deu a primeira transfusão de sangue no colonizador e deixou-nos por herança o substrato biológico, psíquico e espiritual da nacionalidade. Teria havido como que um acerto providencialista entre a chegada dos portugueses e a descida dos tupis para o Atlântico - “uma fatalidade histórica pré-cabraliana”. Após contribuírem para a composição étnica do Brasil, os aborígenes perdem sua vida objetiva mas interiorizam-se como espírito nacional.
Dois mitos de instrumentação ideológicas conjugam-se nessa figura eleita indígena: o da síntese do passado com o presente e o da conquista do futuro. Pelo primeiro, fez-se do passado a reserva das forças de que necessitamos para caminhar em direção ao futuro; pelo segundo, nosso destino político refletiria a evolução providencial de que o índio foi o primeiro agente. É uma evolução já concluída, da qual resultaram, como órgãos vitais da nação, as instituições existentes. Dela viria igualmente a grande raça harmoniosa do futuro, gerada em terras americanas. Núncio messiânico desa “raça cósmica”, a cargo da qual está a redenção étnica da humanidade, tornava-se o descendente de Peri, depois de ter sido, com Alencar, um ilustre varão ad Independência, com sentimentos e ademanes de nobre português, um guardião das instituições conservadoras.
O que os partidários da Anta mitificavam então era o trajeto da história brasileira, transformando-a numa gesta indígena custodiada pela Providência. Esse mito encampava a história para imobilizá-la. Oswald interiorizou na antropofagia o índio, mas como imagem do primitivo vivendo numa sociedade outra, e movendo-se num espaço demográfico ilimitado, que se confundia com o inconsciente da espécie. Por esse lado, seu primitivismo reproduziu o distanciamento crítico do antropólogo moderno relativamente aos padrões da sociedade a que se acha vinculado e dos quais se dessolidariza; por outro lado, aliou-se, recuando a um pensamento selvagem, ao desnudamento do homem que a psicanálise empreendia. Dessa forma, o tupi ou caraíba, longe de representar a alma comum sedimentada, conota as energias psíquicas que animam e impulsionam o desenvolvimento humano. Estamos, de certo, diante de um novo mito, porém de um mito que, incidindo sobre a história para criticá-la, encontra sua matéria no arquétipo mesmo do homem natural. Em comparação com o tupi sublimado pelo Verdamarelismo na figura do primeiro antepassado, o “antropófago” é um antimito. E não apenas por ser a inversão de seu oposto, mas porque, remontando ao passado imemorial da humanidade, tira da imagem da sociedade primeva, haurida em Montaigne, o apelo igualitarista que o arquétipo do homem natural comporta, e descerra, através dele, o horizonte da utopia como motor de possibilidades humanas.
Afinal, o tupi verdamarelo ainda é o “índio de tocheiro” contra o qual se levanta Oswald, no Manifesto; e o tupi antropófago, destruindo o pedestal dos sentimentos nobres no qual o nosso indianismo colocara Pery e Y-Juca-Pirama, ainda manava do senso étnico que inspirou a Gonçalves Dias, no seu paralelo entre O Brasil e a Oceânia, aquele ponderado juízo sobre as condições da cultura dos aborígenes, a que não falta uma censura velada aos métodos da Catequese como conquista espiritual. Não sendo um neoindianismo, a Antropofagia converge porém com o romantismo no aspecto da rebeldia, do espírito refratário à ordem. O Verdamarelo, como neoindianismo, que continha as sementes de uma ideologia da ordem, olhou por isso desconfiadamente para a nossa herança romântica, achando, como fez um dos seus porta-vozes, que chegara o momento de superarmos o permanente desequilíbrio que ela impunha à evolução do pensamento nacional em demanda de autonomia.
Quanto à sua ideologia, o “antropófago” é parente consanguíneo, pelo lado do homem natural, do bom selvagem. Este, ao contrário do animal feliz da interpretação errônea corrente, já é o primitivo socializado de Rousseau, no Discours sur l'origine et les fondements de l'inégalité parmi les hommes, que conseguira viver num estado de equilíbrio, entre Cultura e Natureza, na fímbria da sociedade política nascente, onde a piedade e o amor próprio se contrabalançavam, porque aí não havia nem propriedade privada da terra nem concentração do poder no Estado. Vem desse locus indeterminado da sociedade nascente, o potencial revolucionário da existência primitiva concebida por Oswald, potencial antecipado pela sua visão poética pau-brasil em torno das sugestões edênicas da terra nova, que vão constituir, delineando as possibilidades futuras, os valores essenciais de uma utopia a realizar. Daí ter o radicalismo dessa concepção primitivista, bem patente no estilo ofensivo da Revista de Antropofagia em sua “segunda dentição”, provocado, antes mesmo de 1928, a reação de Tristão de Athayde, que nele entreviu um lamentável reflexo da dissolução, da “anarquia dos tempos modernos”, contra a qual se lançava a ideologia reacionária de Jackson de Figueiredo, - por sua vez reflexo do menosprezo de Maurras pela “petites libertés individuelles”, e da ideia, esposada por Farias Brito, do valor da religião como guardiã da ordem social – que preparou terreno ao conservadorismo verdamarelo.
O divisor de águas político do modernismo passa, justamente, às vésperas da Revolução de 1930, no auge de uma crise, pela tendência utópica da Antropofagia. Essa tendência, que logo após descerrou a Oswald o caminho do engajamento político à esquerda, tanto quanto o empenho conservador conduziu o verdamarelo para a direita, levou-o a uma compreensão da História absorvida na pré-História, pelo que diz respeito ao passado, e dirigida a uma transhistória, pelo que diz respeito ao futuro. Podemos denominar de transversal essa concepção, porque pré-história e a sociedade primitiva que lhe deram elementos para a contrastação do processo histórico brasileiro e a contestação de sua sociedade patriarcal, serviram-lhe também como meio de acesso à História mundial.
Foi através da História mundial que a história e a sociedade do país puderam ser compreendidas, do ponto de vista da Antropofagia, como parte de um ciclo evolutivo da humanidade, - de um ciclo que, iniciado na fase do expansionismo colonizador da era moderna, completar-se-ia quando fossem absorvidos, em concomitância com a universalização da técnica, o poder político e o poder religioso, como últimas manifestações do Superego patriarcal. Espontaneísta, ocorrendo pelas próprias condições da imaginação liberada e da concentração industrial, a “revolução caraíba”, que nos conduziria do histórico ao transistórico, da cronologia da civilização ao tempo da vida primeva por ela restabelecida, consumaria, antes de chegar a esse estágio, sob a forma de uma vingança tribal imaginária, que ritualizou a violência romântica da rebelião individual, uma reação anticolonialista, deglutidora dos imperialismos.
Vamos encontrar essa linha de pensamento já assimilada ao marxismo, em “Meu Testamento”, precursor do restabelecimento da antropofagia como Weltanschauung, e que secciona a evolução histórica mundial em duas faixas geográficas, uma ao norte do “Trópico de Câncer”, outra ao sul do Trópico de Capricórnio, situando na primeira, sobre um eixo que corta os Estados Unidos, a Europa e o Japão na época moderna, e a Judeia e o Egito na antiguidade, a trajetória do progresso, e na segunda, sobre um eixo que corta a China, a Índia, a África e o Brasil, a atividade colonizadora pela qual o progresso da primeira se reflete sobre a segunda faixa. Nessa repartição do Globo pela fronteira econômica que separa os países desenvolvidos e centrais dos países subdesenvolvidos e periféricos, está igualmente traçada a fisionomia cíclica de que se revestiria, para Oswald, o desenvolvimento da História considerado em sua totalidade.
No eixo septentrional por onde passam a cultura intelectual e o desenvolvimento material, o mesmo do progresso técnico e da revolução burguesa, o processo histórico subentende momentos alternados de individualismo e de coletivismo, em que ora se impõe o primado do social sobre o indivíduo, como no Medievo, ora do individual e da liberdade, como no Humanismo renascentista. Deve-se a passagem de uma para outra dessas tendências a revoluções, que abatem, munidas no aríete de uma ideologia, os sistemas sociais, quando já abalados pelas contradições em suas bases econômicas. Mas em contraste com a interpretação marxista, reforça-se, no “Meu Testamento”, o caráter cíclico da História, que desvia a direção retilínea do progresso para a órbita de quatro períodos, dois de caráter coletivista, que têm sua expressão “pela Judeia dos profetas e pela Idade Média europeia”, e dois outros de caráter individualista, um coincidindo com a civilização greco-romana e outro “do Renascimento à atualidade.”
O espontaneísmo da “revolução caraíba” continuaria na ação libertadora e igualitária da máquina, num período que tenderá a “um padrão geral de vida civilizada”, extensiva e planetária, de modo a compensar, à entrada de um novo e quinto período, que será “eminentemente social”, as deficiências dos povos periféricos.
Já no início da época moderna, os pródromos do romantismo, ala novecentista da “revolução caraíba”, repercutiram na periferia, alcançando o Brasil, quando Portugal, que se tornara o arauto da Contra-Reforma, indiferente à era da máquina que havia começado, obscurantista e tirânico, explorava o ouro das Minas Gerais. Foram então os poetas mineiros, sobretudo Tomás Aquino Gonzaga, aqueles que, atingidos pelo sopro da rebeldia romântica, quebraram o arcadismo, intelectualmente atônico, pelo gesto da Inconfidência. É a tese sustentada em A Arcádia e a Inconfidência.
Não podemos separar aquele gesto público do sentimento da terra, que já passara, embebido à emoção nova de Rousseau, aos versos de Gonzaga. Por eles transita a cultura da liberdade, como Oswald chamou, por oposição à cultura da servidão nos períodos do coletivismo, ao Humanismo, que ligou o Renascimento ao Romantismo. Essas duas culturas emaranharam-se com as linhas de força dos quatro períodos do mundo civilizado, e integram-se, finalmente, em A Crise da Filosofia Messiânica, como pequenos ciclos episódicos, em dois maiores, verdadeiras formas orgânicas que perfazem o completo giro da História: o Matriarcado e o Patriarcado, blocos ou hemisférios através dos quais, num movimento dialético em que o primeiro é a tese e o segundo a antítese, realiza-se, em última instância, o confronto do pré-histórico com o histórico, cuja síntese, reintegrando a vida primitiva na civilização, é a sociedade matriarcal da era da máquina.
Condensa-se agora no Matriarcado, entidade mítica recriada com os sinais reunidos por Bachofen, a quem Oswald terá conhecido lendo Engels, cujo esquema de evolução de família adotou – condensa-se no Matriarcado, cuja existência real Oswald defendeu como matéria de fé, contra as evidências etnográficas, a imagem da sociedade primitiva decalcada no humanismo de Montaigne e de Rousseau. No entanto, o sentido tão poético quanto mítico emprestado a essa entidade, de acordo com Bachofen, que associou a primeira grande crise da humanidade à perda do privilégio que a mulher possuía nos primórdios, após a descoberta da agricultura, como avatar das deusas-mães, passa àquele plano de expressão psicológica das tendências fundamentais da espécie, onde, ao lado da hipótese freudiana do parricídio originário, também cabe a antropofagia ritual, como operação metafísica que exprimiu “um modo de pensar, uma visão do mundo, que caracterizou certa fase primitiva de toda a humanidade”. Vê-se, por essa tentativa de enfeixar a vida primitiva no casamento conceptual do Matriarcado com a Antropofagia, o que tem muito de jogo intelectual, que o “antropófago” do movimento de 1928 já se desgastara como ideia-força que havia sido, como verdadeiro mito, na acepção soreliana de imagem verbal, canalizadora das energias individuais ou coletivas.
Adotando o ponto de vista da totalização simultânea do pensamento e da realidade, típico da filosofia hegeliana da História, A Crise da Filosofia Messiânica explicita, no curso circular do Primitivo ao Civilizado e do Civilizado ao Primitivo, que globaliza o desenvolvimento humano, as direções constantes que marcaram, segundo o que temos visto até aqui, desde o Manifesto Pau-Brasil, as sortidas de Oswald de Andrade no campo teórico. A primeira negação que decorre desse movimento dialético circularizado, origina-se da ruptura que a divisão do trabalho e a escravidão provocaram no equilíbrio natural da sociedade nascente. E o que irrompe por essa fenda aberta pelas forças produtivas, que estarreceu Rousseau, é o “fecundo progresso dialético da humanidade”, feito à custa das contradições da sociedade dividida em classes e dirigida pelo Estado: progresso que imprime à aventura humana o caráter de história da civilização, até o momento em que as estruturas iniciais renascem do próprio dinamismo desta, já como negação destinada a superá-la, e reintroduzindo-se pela fenda outrora aberta, reabsorvem toda essa trajetória e, síntese definitiva, encerram a fase do destino histórico do homem.
Nesse percurso simples, entre o Patriarcado, como esquema sócio-histórico da civilização, e o Matriarcado, como esquema mítico da vida primitiva, - percurso ritmado por uma dialética em três tempos (tese: homem natural; antítese: homem civilizado; síntese: homem natural tecnizado), está contido, se abstrairmos a viva e pitoresca trama de fatos e ideias que o acompanham, e que muito divertirá o leitor, todo o pensamento oswaldiano anterior.
No Patriarcado, como esquema da civilização, reaparece o patriarcalismo da sociedade brasileira, com a sua índole repressiva, que o governo colonial manifestou no plano sociopolítico e a Catequese no religioso; no Matriarcado, como esquema da vida primitiva, reflete-se o caráter maternalista da visão poética pau-brasil, que servirá de núcleo à cristalização do barbarismo técnico na forma de uma sociedade ideal. E porque a ruptura da primitiva sociedade matriarcal deu-se quando o homem deixou de comer o seu semelhante para escravizá-lo, pode-se ver na falta de catarse pela antropofagia ritual a causa que fixou, no trauma do sentimento de culpa, o poder do pai como Superego, e portanto como princípio exterior de realidade, coercitivo e inibitório do princípio interior de prazer.
O principal veículo da negação dialética do mundo civilizado e do consequente restabelecimento da sociedade sem classes seria uma nova catarse. Como derivativo da antropofagia ritual teríamos a “prática culta da vida” levada ao paroxismo, e que já começou a desarticular, por efeitos das “leis que nasceram do próprio movimento dinâmico dos seus fatores destrutivos” - abrindo-se com isso uma picada para o Matriarcado sem complexos de Pindorama - todos os padrões éticos e estéticos dominantes. Observa-se ainda, não somente que os dois hemisférios, Matriarcado e Patriarcado, que correspondem a distintos universos culturais, permutáveis dentro de uma alternância cíclica - o do homem primitivo ou natural aquele e do homem civilizado este – conduzem apenas pelo espontaneísmo de suas forças, sem violência, ao terceiro e último universo – o do homem natural tecnizado – mas que também cada um deles contém estruturas inversamente simétricas às do outro, estruturas que são formas de vida completas, no gênero das formas orgânicas de cultura concebida por Spengler, contrastando com o estado inarticulado da barbárie técnica segundo Kayserling.
Revela-se, finalmente, a conjunção de todos os aspectos do pensamento de Oswald de Andrade, dispersos nos manifestos modernistas e reunidos em “Meu Testamento”, escrito já vinculado ao marxismo, na qualificação de antropofágica que se dá à concepção-do-mundo baseado no conjunto das estruturas do matriarcado primitivo, e de messiânica à concepção-do-mundo correspondente ao Patriarcado.
A Weltanschauung messiânica, que une duas instâncias de dominação, - a temporal de uma classe, através do Estado, e a espiritual do sacerdócio - com o fundamento comum no poder do Superego, por sua vez ligando a autoridade do pai à de Deus no céu, reproduz o modelo colonial de governo. E é a conquista espiritual dos Jesuítas que se transfere a ação e ao pensamento do messianismo, suporte ideológico e expressão filosófica de uma superestrutura de que são aspectos integrantes o regime da propriedade privada no Direito, da família monogâmica quanto aos mores e do monoteísmo quanto à religião. São messiânicas as religiões de salvação e as filosofias da transcendência, que traduzem, até nos seus sucedâneos, - as doutrinas paternalistas do Estado forte, inclusive a ditadura do proletariado – os derivados soteriológico ( a figura do mediador, sobrenatural ou carismático) e o escatológico (transfiguração sobrenatural ou histórica devida ao mediador), com que o mesmo conteúdo ideológico envolve e resolve, mediante os instrumentos morais e jurídicos da repressão dele próprio extraídos (moral da obediência, direito paterno), e em proveito da continuidade da ordem que o tem por substrato, os conflitos da consciência desorbitada, joguete dos antagonismos de classes que cindem a sociedade e o indivíduo.
O curso da Civilização, que compreende a história propriamente dita, entre a ruptura com a sociedade primitiva e a reviravolta da sociedade industrial primitivizada, tem na luta de classes o seu dinamismo causal explicativo. Vê-se porém que a mola propulsora do regime patriarcal de que até mesmo aquele dinamismo depende, foi o recalcamento dos instintos primários, que sem a válvula de escape, agressiva e defensiva de que os munia a operação antropofágica no matriarcado primitivo, derivaram para a violência nas relações sociais. Assim, a violência do homem como Raubentier não é puramente natural ou instintiva. Ela espelha e devolve a violência generalizada nas relações sociais. Nisso reside o sentido amigo da Antropofagia, que deixou perplexo o próprio Oswald, quando considerou que aquela concepção, favorável ao ímpeto de todas as revoluções generosas, poderia também justificar o canibalismo político de Hitler.
A Weltanschauung matriarcal é a rasa expressão, sem o falseamento ideológico da consciência que o fenômeno da superestrutura comporta, da sociedade que ligava o homem à Natureza e os indivíduos entre si, graças ao comum sacrifício do totem. Como tal, ela realiza a máxima aproximação do natural e do humano dos aspectos organicamente entrelaçados – o direito materno, a propriedade comum da terra – que compõe a cultura antropofágica, lúdica e festiva, garantindo-se periodicamente contra o desequilíbrio por meio da transgressão dos banquetes orgiáticos e tendo no trabalho espontâneo um prolongamento das atividades vitais. Nessa cultura, onde vamos encontrar os valores da visão poética pau-brasil, - valores acordes com a vida social em estado nascente, onde há um mínimo de repressão, e que está quase ao nível das relações de reciprocidade, que no Patriarcado se transformam em relações de antagonismo, - o ósseo e a festa assinalam de um lado os alvos da utopia na Era da Máquina, e, de outro lado, a vivência intersubjetiva, misto de receptividade intelectual e de extroversão sentimental do homem cordial - lhano de trato, hospitaleiro e generoso – em que se converterá o bárbaro tecnizado. Representaria isso a culminância de um processo inverso ao da história, como possibilidade de absorção da violência social.
Libertado do trabalho, que se tornara meio e fim da existência, pelo trabalho da máquina, o qual veio destruir, realizando a predição de Aristóteles, o último reduto da escravidão que inicialmente ofereceu ao Patriarcado o seu ponto dialético de apoio, o homem recuperaria não apenas a liberdade real e o sentimento lúdico, pai da criação artística, como “brinco e problema emotivo”, mas, na sua condição de animal fideísta, “que vive entre dois grandes brinquedos – o amor onde ganha e a morte onde perde”, recuperaria também, já na perspectiva da comunicação de Oswald ao Primeiro Congresso Brasileiro de Filosofia (Um aspecto antropofágico da Cultura Brasileira – o homem cordial), o seu “medo ancestral”. Depois que o tivesse acedido à nova sociedade sem classes, na qual se resolveriam pela prática, isto é, pelo estabelecimento de relações sociais não opressivas, as contradições do Patriarcado e da filosofia messiânica em crise, esse homem seria devolvido ao sentimento órfico, ainda sentimento religioso, mas desvinculado o ser humano da transcendência, para entregá-lo à imanência de um mundo sem Deus, mundo em que Oswald de Andrade projetou, com a imagem de desafio existencial retirado de suas leituras filosóficas posteriores a 1945, uma outra vertente de seu utopismo, precisamente aquela do socialismo proudhoniano que ao fazer de Deus o inimigo jurado e por isso real da humanidade, viu na teologia um obstáculo mais prático do que teórico à libertação social da espécie humana.
Se no momento em que, descomprometido com o marxismo, abandonando um passado de lutas políticas que durara 15 anos, e sentindo-se ainda mais distante do modernismo de que fora um dos líderes, em meio a uma nova geração que já procedia ao balanço histórico desse movimento, Oswald encontrou na Weltanschauung antropofágica, sob a instigação de seu temperamento inquieto e da preocupação com o prestígio do seu nome e da sua obra, o modo de realizar uma espécie de volta ao tempo de todas as militâncias perdidas, não deixou igualmente de recolher, nessa sua concepção filosófica do mundo, além do ímpeto da fase heroica de 22 a 29, os salvados de seu ardoroso catolicismo juvenil. O mas deste readmitiu o que já admitira como “antropófago”: o sentimento órfico, fundamento comum das formas primitivas da consciência religiosa e do ritual católico.
Indicando à humanidade as trilhas utópicas, o homem cordial conserva essa consciência religiosa, mas sacrifica, como o antropófago outrora, o inimigo sacro, porém numa atitude de desafio humanístico que o anteteísmo de Oswald de Andrade fixou, depois de haver tido contato com os teólogos Kierkegaard e Proudhon, “dois estudiosos da adversidade metafísica, que se avizinham da formulação do conceito do primitivo sobre Deus, que é afinal o tabu, o limite, o contra, que as religiões todas tentam aplacar com os seus ritos e sacrifícios”.
A Marcha das Utopias, série de artigos que complementam A Crise da Filosofia Messiânica, pois que a esta são paralelos na ordem das ideias, desenvolvem, na direção do futuro, como busca dos sinais da utopia, a Errática dos sinais do matriarcado primitivo, que Bachofen inspirou a Oswald, e mostram-nos em episódios históricos (as descobertas marítimas, a república comunista dos Jesuítas no Paraguai, a luta dos brasileiros contra os holandeses, etc.), em tendências e movimentos filosóficos-religiosos (o Milenarismo, o Humanismo, a Contra-Reforma), as trilhas para a vida utópica.
Admitindo a existência de um ciclo das utopias, que novamente redistribuem o individualismo e o coletivismo, tendências já nossas conhecidas, Oswald reabilitou, em função desse ciclo, a ação catequética da Companhia de Jesus, que nos trouxe (uma religião de caravelas), e a sociedade Patriarcal enquanto o Brasil constitui a “primeira promessa da utopia em face do utilitarismo mercenário e mecânico do Norte”. A favor da Contra-Reforma do catolicismo, que se opôs à usura, condenando o Protestantismo, em cuja ética Marx Weber ensinou-lhe a enxergar um fator de acumulação capitalista, distinguiu o ensaísta de A Marcha das Utopias, nessas duas correntes, a partilha que Ortega y Gasset faz remontar à Antiguidade, entre o nec-otium (negócio) e o otium (ócio), “que não é a negação do fazer, mas ocupar-se em ser humano do homem”. Contributo do imaginário matriarcado primitivo, e dos povos periféricos que dele teriam descendido, à libertação do homem, o ócio, por tudo quanto a esse respeito vimos, constitui, para Oswald de Andrade, como valor proeminente da sociedade nova, o próprio índice ético da existência humana realizada, de intersubjetividade recuperada sobre os últimos resquícios da violência social de que a escravidão foi o começo. Sob esse aspecto, a valorização oswaldiana do ócio coincide com o ponto de vista de Bertrand Russell, quando afirma que “a moralidade do trabalho é a moralidade dos escravos e o mundo moderno não tem necessidade de escravidão humana”.
A oposição entre o Ócio e o Negócio recortará, sem com ela coincidir, a oposição entre os dois hemisférios culturais do Matriarcado e do Patriarcado. Estamos na linha desses ensaios de A Marcha das Utopias, nos quais há uma defesa apaixonada, contra Westmarck e Lévi-Strauss, da existência etnográfica e pré-histórica universal do “Matriarcado, diante da contradição fundamental entre o homem primitivo e o homem civilizado, contradição que, remontando ao trauma que marcou a civilização na sua origem, deverá mobilizar a consciência da libertação, como possibilidade permanente aberta ao ser humano”.
Nas condições da sociedade atual, com a decadência do casamento monogâmico e o esfacelamento da moral burguesa, a crise do regime de parentesco, o acúmulo de medidas socializantes, estaríamos mais próximos dessa possibilidade, que um giro histórico, produzindo o recuo da própria História, atualizaria.
Um dos meios mais eficazes para causar esse giro é a tecnocracia dos gerentes, preconizada por James Burnham em A revolução dos gerentes (The Managerial Revolution). Vendo nesse governo dos tecnocratas uma sucessão de golpes destrutivos do Estado de classes, que prenuncia a substituição deste pelo governo como “administrador dos bens coletivos e órgãos da economia de consumo”, Oswald de Andrade ainda está esposando a ideia, que os antropófagos tinham defendido numa crítica ao marxismo, de que a economia de consumo é mais importante que a economia de produção. Independente da identificação ideológica do ex-marxista Oswald com o ex-marxista Burnham, que lhe daria, com “o melhor esquema para uma sociedade controlada que suprima pouco a pouco ou o Estado, a propriedade privada e a família indissolúvel”, o trampolim para chegar ao reino da liberdade e da igualdade, o inventor da Antropofagia projeta na tecnocracia dos gerentes a ideia da função política libertadora da máquina, que estava latente no processo espontâneo da “prática culta da vida”, no Manifesto Pau-Brasil. Ainda que, portanto, encontramos, no pensamento tardio de Oswald de Andrade, um substancioso conteúdo que vem do modernismo.
A filosofia antropofágica não é contudo em que pesem as evidências anteriormente coligidas, apenas uma elaboração residual feita com os destroços da Antropofagia de 1928. Há, principalmente em A Crise da Filosofia Messiânica, a par de um trabalho de síntese e de crítica, que entrelaça o poético ao teórico, intuições fulgurantes que nos descerram, através do esboço quase profético de novos conceitos, uma perspectiva atual sobre os problemas de hoje.
A originalidade de A Crise não está tanto na pilhagem intelectual “antropofágica”, que continua a do Manifesto, de conceitos dos autores já nossos conhecidos (Nietzsche, Freud, etc.) e de outros como Spengler, Dilthey e Max Weber, nos quais Oswald de Andrade sustenta a sua oposição crítica ao marxismo ortodoxo. Muito menos podemos encontrá-la na conformação orgânica dos dois ciclos históricos, semelhante às formas de cultura à Spengler, ou na hermenêutica diltheyana, aplicada, em certos casos, à história da filosofia, cuja interpretação, marxista em suas grandes linhas, inclui, numa abrangência totalizadora, inspirada em Hegel, a história política e a história social.
Na verdade, ao abandonar o marxismo, por uma reação contra a ditadura do proletariado e a dogmática obreira do Estado soviético, Oswald não abandonou o pensamento de Marx, por ele conservado naquilo que tem de essencial. É que o poeta, e eis onde começa a originalidade do seu pensamento, mesmo como marxista, o que pode ser confirmado pela leitura dos inscritos da fase em que durou a sua militância partidária, nunca deixou de ser utopista e jamais fez na realidade, a distinção, sabidamente estratégica, entre socialismo utópico e socialismo científico. Manteve ele no marxismo a dimensão ética das doutrinas do chamado socialismo utópico (Proudhon, sobretudo), e o anti-estatismo anarquista de um Kropotkin. Se o socialismo jamais deixou de ser, fundamentalmente, o da rebeldia do indivíduo contra o Estado, mais interessado numa sociedade nova, cuja vida passasse na morte da organização estatal, do que no fortalecimento de uma ditadura do proletariado. Daí ter ele assimilado o marxismo ao ciclo das utopias, e isso reagindo ao caráter messiânico de que se revestira na Rússia como ideologia do Estado.
As instituições de Oswald referem-se, sobretudo, a tendências dos tempos novos: o tribalismo da sociedade de massas, ávida de mitos, mas também devoradora de tabus: a essência humana, tal como entrevista por Marcuse, à luz da conciliação do princípio da Realidade com o princípio do Prazer numa sociedade sem repressão; e a conquista social do ócio canalizando, para a atividade criadora, lúdica e artística, a energia dos instintos liberados. Mas talvez não seja menos significativa do que as anteriores intuições, a concepção que, unificando a filosofia antropofágica, faz da utopia, “sinal de inconformação e um prenúncio de revolta”, o sentido prospectivo da existência humana em sua totalidade.
Princípio e fim, a utopia, no pensamento oswaldiano, formam espaço transhistórico, onde se projetam “todas as revoltas eficazes na direção do homem” - também ontológico, entre o que somos e o que seremos, entre, diria Oswald, a “economia do Haver” e a “economia do Ser”. Transformando-se nesse espaço, de impulso biopsíquico em impulso espiritual, o instinto antropofágico tende à sua própria negação como vontade de poder, na medida em que ele próprio conduz à utopia, e na medida em que utopia significa a absolvição, na liberdade e na igualdade, da violência geradora dos antagonismos sociais.
Não busque porém o leitor no pensamento de Oswald de Andrade a latitude do discurso reflexivo-crítico, a delimitação cuidadosa de problemas e pressupostos, nem “essas longas cadeias de raciocínio” que caracterizam a filosofia stricto sensu. Busque, isto sim, a cadeia das imagens que ligam a intuição poética densa à conceituação filosófica esquematizada, aquém de qualquer sistema e um pouco além da pura criação artística. E, sem confundir seriedade com sisudez, aceite que o tempero da sátira tenha entrado, em altas doses, nesse banquete antropofágico de ideias, presidido pelo humor de Serafim Ponte Grande que fundiu o sarcasmo europeu de Ubu-Roi com a malícia brasileira de Macunaíma.

Fonte: NUNES, Benedito. A Antropofagia ao Alcance de Todos (Introdução) in Obras Completas de Oswald de Andrade, vol. VI, Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias. 2ª ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970. (pág. xi - liii)
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