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José Crisóstomo de Souza
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Trecho inicial de “A filosofia e a evolução histórica nacional”, de João Cruz Costa
Conferência realizada na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, em agosto de 1943, e publicada em A filosofia no Brasil - Ensaios. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1945, p. 15-72. (...)Faz algum tempo, num dos corredores desta nossa Faculdade, ou mais exatamente, desta velha, respeitável e tradicional Escola Normal, fui abordado por um estudante que, na maviosa fala do nosso Norte, me convidava, à queima-roupa, para que viesse aqui palestrar com os meus futuros colegas, acerca de um problema nacional. Antes de aceitar o convite, estive a pensar que era grande temeridade minha assumir essa incumbência. Não aceitar, seria faltar à confiança e à gentileza dos meus futuros colegas. Além disso, voltavam sempre novamente, ao meu espírito, os termos do convite “Ficará a seu cargo um tema nacional”. Iam essas palavras crescendo; tomavam variados aspectos. O vago “tema nacional” ia engendrando uma série de formas, muitas e variadas, todas elas apaixonantes. Ficavam, assim, a bailar no meu espírito aquelas palavras mágicas do convite. Quanta curiosidade, quanto interesse, e, sobretudo, quanta dúvida... Mas, por isso mesmo que havia dúvida seria interessante arriscar. Era uma oportunidade tentadora: eu viria contar-lhes as dúvidas que me acodem quando penso nas “realidades” dos nossos “problemas”. Era tentador vir aqui, ao lume da nossa lareira, conversar sobre as dúvidas que a meditação da nossa história sugere. Acabei, desse modo, aceitando o amável convite que me fizeram os estudantes da nossa Faculdade. Fica, agora, combinado que esta nossa prosa será um pouco de prosa fiada, à boa maneira brasileira, sobre um tema nacional. Mas, passemos ao tema. É sabido que o mercado anda, nos dias atuais, curto de produtos estrangeiros. É preciso, pois, que a gente se vá acostumando à prata de casa. É dessa prata velha, que passa de pais a filhos, alguma dela boa e lavrada, que veio ainda do velho Portugal, que irei me ocupar. Lembrei-me de que não seria de todo descabido conversarmos acerca de algumas questões que formam a grossa trama e o bordado da nossa evolução histórica intelectual. Não seria inútil, pensei, examinar, resumidamente, alguns aspectos das relações da filosofia com a evolução histórica da nossa terra. Talvez isto nos possa dar mais confiança para os dias do futuro. Talvez encontremos, a partir da grossa trama portuguesa, alguns dos fios do desenho complicado que vimos bordando há quatro séculos. Vejamos, pois, uma das nossas dúvidas: existe uma filosofia brasileira? Teria havido filósofos no Brasil? Esta pergunta é feita por minha gente. Quase todos que a fazem demonstram que a curiosidade pode caminhar, muita vez, em boa camaradagem, com a ingenuidade. Mas, o fato é que a pergunta é feita. Nós brasileiros, desejaríamos, como os outros povos, ter a nossa lista de filósofos. O brasileiro é um homem, já o disse alguém, que tem desconfiança das suas próprias virtudes, que tem medo da originalidade e que prefere sempre um defeito que nos confunda com toda a gente a uma virtude que nos distinga do resto do mundo. Desejaríamos, pois, ter a nossa galeria de filósofos... E, com esforço e boa vontade, chegamos até a fazer uma lista deles. Mas, enquanto nos filósofos da Europa, encontramos sempre a terra, as lutas, as crises da história do momento em que esses filósofos viveram, aqui, nos nossos, nada encontramos, ao que parece, da terra e do homem nacional. Mas para quê serviram, então, os nossos filósofos? Para alguma coisa serviram, por certo, esses homens. Não nos deve causar, pois, tristeza verificar, por exemplo, que Ueberweg, o mais informado dos historiadores da filosofia, nem sequer se ocupa conosco. Nas seis microscópicas linhas, que dedica à filosofia centro e sul-americana, o Brasil não aparece. Todavia, o erudito Padre Leonel Franca, com louvável esforço patriótico, conseguiu encher 113 páginas da última edição do seu livro, com nomes, biografias e “sistemas” de filósofos nacionais...[1] Resulta, porém, da leitura dessas páginas do erudito jesuíta que os nossos filósofos revelaram sempre uma acentuada falta de originalidade. Viveram todos, como o diz o Pe. Franca, a reboque de doutrinas estranhas. A filosofia no Brasil viveu sempre, é certo, sujeita às chegadas dos paquetes da linha da Europa. Mas por que havemos nós de nos entregar à apagada e vil tristeza da inquietação quando verificamos que os nossos filósofos nunca se mostraram originais? É talvez cedo ainda para que possa existir filosofia em nossa terra. Ela é tão vasta! Ainda não foi convenientemente trabalhada pelo homem. Os que trabalham são poucos, cansam-se e repousam para, no dia seguinte, recomeçar o trabalho de construir cidades, estradas, lavouras, indústrias. Talvez estejam esses homens a alicerçar também uma filosofia. Há alguma coisa neles que faz julgar que, desse incessante trabalho de construção de um povo, há de surgir também uma visão da vida e do mundo, uma filosofia. Além disso, possuímos uma história. Ela não é longa nem carregada de brilhantes feitos heróicos. É toda feita de trabalho. Não houve aqui torneios, armaduras, variadas e longas lutas de dinastias. Houve a terra a conquistar, uma terra agressiva. Houve rios a percorrer, rios que se perdiam em florestas de amedrontar. Houve, sobretudo, muita esperança e muita desilusão.
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Ao estudar a evolução da cultura nacional é mister não esquecer que o mundo se renovara com o descobrimento da América. A velha e ilustrada Europa, ao desvendar as nossas terras, vai apresentar novas diretrizes para a sua filosofia, para a sua moral, para a sua política, para a sua economia. Ao descobrir-nos, descobriu-se também. O nosso aparecimento se fez num momento de transformação para a cultura europeia. Os homens que vieram nas caravelas, já possuíam um espírito novo. Impelidos por ele, não temiam aventurar-se nos oceanos, dilatando a terra, a fé e o comércio. Abandonavam a quietude com que no passado se haviam deixado a estar, desejosos de uma felicidade que lhes seria dada, um dia, em compensação à sua miséria terrena. Instruídos por uma ciência nova, confiante na razão e dominadora dos fenômenos naturais, os homens que chegaram às nossas praias, no ano um do século XVI, estavam possuídos por uma nova concepção da vida e do mundo. Para trás haviam ficado os aspectos do mundo medieval. A nossa imensa fachada atlântica vai se abrir, assim, para a civilização ocidental, no momento em que esta passa por uma profunda revolução. Nós seríamos o achado desse momento de transformação cultural que é o Renascimento. Estava traçada a nossa rota. Delineavam-se as grandes linhas do nosso destino. Mas, todo destino é feito de incertezas. Assim, o destino da história nacional - e o de sua cultura - está ligado a duas grandes linhas: há nele uma vocação atlântica, marcada pela larga costa continental que nos obriga a olhar para o vasto horizonte oceânico, para o outro lado do mar. E há a serra, a floresta, o sertão, a imensidão dos horizontes que fica por detrás das serranias da costa e que desde muito cedo alertou a curiosidade e a cobiça do aventureiro. Seria essa a outra grande linha do nosso destino. Percebeu-a cedo um franciscano, frei Vicente do Salvador, daquela ordem religiosa que foi a propulsora, a criadora da mística dos Descobrimentos[2]. Os homens, dizia o frade, “caranguejavam” demais pelas praias do litoral; era preciso procurar a selva. Era mister continuar a aventura que o Infante de Sagres sonhara e traçara. Não iremos - estejam descansados - retraçar aqui uma filosofia da história nacional. Quisemos apenas, indicando estas duas linhas no nosso destino, assinalar uma das primeiras antinomias da nossa história e da nossa cultura. Joaquim Nabuco, no seu belo livro, A minha formação, acentuou essa antinomia e mostrou a eterna instabilidade que nos persegue. À América pertencemos pelo sentimento novo, flutuante do nosso espírito. À Europa pelas camadas estratificadas do nosso espírito[3]. Da Europa, da cultura europeia portuguesa, herdamos língua, costumes, religião e, de mistura com muitos defeitos, algumas das melhores das nossas virtudes. Não teríamos herdado também uma certa visão do mundo e do homem, uma filosofia? Para a realização de tão grande empresa, como foi a dos Descobrimentos, não teria havido uma ideia ou um fio condutor de ideias, que a levasse a cabo? Não estaria na base da empresa das navegações, do século XV e XVI, uma nova concepção do mundo e do homem, uma “filosofia”? Creio que podemos responder afirmativamente. Muitos mais cedo do que os outros povos europeus, os ibéricos, e principalmente os portugueses, sentiram o apelo do oceano. Para os outros povos, é ainda o eixo mediterrâneo aquele em torno do qual eles fazem girar todos os seus interesses. Graças a Portugal, o eixo mediterrâneo da antiga civilização se desloca para o Atlântico[4]. E a aventura das navegações obedece a uma filosofia nova, a uma nova concepção do valor da vida e das dimensões do mundo. Mas quais os traços principais da cultura portuguesa, de sua filosofia? Uma das maiores autoridades em matéria histórica e filosófica de Portugal, o Prof. Joaquim de Carvalho, da velha Universidade de Coimbra, ao estudar, no Desenvolvimento da Filosofia em Portugal durante a Idade Média[5], e nos interessantes capítulos que escreveu sobre a cultura filosófica e científica portuguesa para a História de Portugal[6], que esteve sob a direção do Prof. Damião Peres, traz à luz alguns fatos que indicam, de maneira muito viva, qual o caráter que, desde muito cedo tomou, em Portugal, a investigação filosófica. A filosofia portuguesa é essencialmente prática. Nela prepondera o sentido prático e positivo da vida. Não é a Razão Pura, mas o homem que pensa, o homem que sente, que age, o homem vivo, que interessa ao português. Nunca foi a contemplação, o principal característico da alma portuguesa. Miguel de Unamuno, no seu Sentimento trágico da vida, define admiravelmente o espírito da filosofia dos peninsulares: “Se um filósofo não é um homem, é tudo, menos um filósofo. É, sobretudo, um pedante, isto é, um arremedo de homem. O cultivo de uma ciência qualquer, a química, a física, a geometria, a filologia pode ser obra de especialização. A filosofia, porém, como a poesia, ou é obra de integração, de uma harmonia ou então é filosofice, erudição pseudo-filosófica”[7]. Esta concepção profundamente humana da filosofia é precisamente o oposto do abstracionismo da razão pura, do escolasticismo que se alheia dos problemas vivos da existência. A filosofia portuguesa é viva e não entende o homem como uma das muitas fórmulas que se encontram, eternas e imutáveis, no mundo de fórmulas fechadas, perfeitas, que a razão pura constrói. Não é essa a índole do pensamento português. Percebeu isso, o nosso fino e malicioso João Ribeiro quando disse: “O nosso idealismo não se alonga muito longe da terra nem vai além dos mais próximos planetas; e, fora da poesia condoreira ou do gongorismo dos epítetos, ninguém se preocupa com o infinito”[8]. Estas palavras do mestre João Ribeiro, ditas assim, em tom de troça, encerram todavia muita verdade. (...)

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